O encerramento de antigas discussões tributárias de maneira favorável aos contribuintes, principalmente a exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS e da COFINS, reacende a discussão sobre o momento em que os ganhos decorrentes das ações devem ser reconhecidos contabilmente e levados à tributação.
No entendimento da Receita Federal do Brasil (“RFB”), manifestado na Solução de Divergência COSIT nº 19/2003, o reconhecimento contábil e a tributação dos ganhos devem ocorrer no período em que se verifica o trânsito em julgado da decisão judicial.
Ocorre que a premissa que levou à essa conclusão é absolutamente falsa. De acordo com aquela Solução de Divergência, “a sentença que declara o direito à compensação se constitui em título líquido e certo, uma vez que declara a existência de créditos compensáveis e já define o seu montante”, o que tornaria o crédito líquido e certo, passível, portanto, de contabilização.
Ora, é de conhecimento de todos aqueles que militam na área tributária que a maioria das discussões judiciais são travadas via mandado de segurança, cuja sentença apenas garante o direito do contribuinte de compensar os valores recolhidos indevidamente, sem se imiscuir na sua quantificação, que fica relegada à esfera administrativa, sem interferência do Poder Judiciário. Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, firmado no REsp 1.124.537/SP, submetido à sistemática dos recursos repetitivos.
Logo, a decisão judicial que reconhece o direito à compensação, sobretudo em sede de mandado de segurança, não pode ser considerada um título líquido e certo, tendo em vista que não há definição acerca do montante que será passível de ressarcimento.
Com a conclusão do processo judicial, o contribuinte deverá realizar os cálculos pertinentes (que são de relativa complexidade), sendo certo que até a quantificação do montante e a respectiva aceitação pela Autoridade Tributária não se pode dizer que a sentença judicial, mesmo que transitada em julgado, é líquida e certa.
Tanto é assim que a RFB, na própria Solução de Divergência, define “crédito líquido e certo como aquele que tem o seu ‘quantum’ reconhecido pelo devedor, podendo tal reconhecimento ser feito de modo voluntário ou pela via judicial”. Ainda que a opção do contribuinte seja a compensação, o mero trânsito em julgado da sentença não faz com que o Ente Tributante tenha ciência acerca do montante a ser restituído.
Nesse mesmo sentido já se manifestou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), no acórdão nº 1201-00.178, ao fazer a seguinte afirmação:
“…para haver o reconhecimento de um elemento patrimonial, no caso um direito, é necessário, além da certeza da sua existência, a certeza também do seu valor; e tal certeza não é estabelecida pelo trânsito em julgado de uma sentença em que se concede um direito não liquidado” (grifou-se).
Além disso, antes de transmitir a declaração de compensação (“DCOMP”), instrumento pelo qual se aproveita os créditos reconhecidos pela sentença, o contribuinte deve formular um pedido administrativo de habilitação do crédito, na forma do art. 100 da Instrução Normativa RFB nº 1.717/2017, que assim prevê:
“Art. 100. Na hipótese de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, a declaração de compensação será recepcionada pela RFB somente depois de prévia habilitação do crédito pela Delegacia da Receita Federal do Brasil (DRF) ou pela Delegacia Especial da RFB com jurisdição sobre o domicílio tributário do sujeito passivo.” (grifou-se)
Aliás, a própria Administração Fazendária sustenta que a habilitação do crédito é o procedimento pelo qual a sentença judicial ganha liquidez, conforme se observa do Parecer Normativo COSIT nº 11/2014:
“PEDIDO DE HABILITAÇÃO PRÉVIA
4. Para a correta solução da presente consulta, preliminarmente, deve-se analisar a questão do poder de polícia da RFB e seu enquadramento na atividade de liquidação de um crédito judicial do contribuinte. (…)
4.1. No caso aqui tratado (crédito de tributo administrado pela RFB reconhecido por sentença transitada em julgado), há o exercício legítimo do direito de o contribuinte realizar a compensação (vale dizer, o pagamento daquele valor a ele com a quitação de seus débitos tributários), mas que deve ser limitado mediante análise percuciente da Administração Pública se aquele crédito efetivamente existe e se sua quantificação está escorreita (no caso de sentença ilíquida), conforme conceito apontado acima. O interesse público, nesse caso, evidentemente não é impedir essa compensação, mas sim que seja feita corretamente.
4.2. O servidor público que atua nessa situação está reconhecendo e quantificando uma dívida da Fazenda Nacional. Por tal motivo, a RFB possui o denominado poder de polícia (ou polícia administrativa), que se dá quando determina que o sujeito passivo realize uma declaração (o que é denominado obrigação acessória pelo § 2º do art. 113 do CTN, com a instituição pela RFB determinada pelo art. 16 da Lei nº 9.779, de 1996).
4.3. A habilitação prévia de créditos decorrentes de ação judicial, que está dentro do procedimento para reconhecimento desses créditos contido no art. 82 da IN RFB nº 1.300, de 2012, na atribuição conferida pelo § 14 do art. 74 da Lei nº 9.430, de 1996, é típico procedimento estabelecido a fim de garantir que a declaração de compensação de crédito reconhecido judicialmente não ocorra de forma que possa lesionar o interesse público. (…)”
Logo, pode-se afirmar que até a decisão administrativa que homologa a habilitação creditória do contribuinte, os valores reconhecidos pela decisão judicial não são certos, líquidos e exigíveis.
Ademais, na visão do Fisco, considerando o disposto no art. 187 da Lei nº 6.404/1976, as regras contábeis são relevantes para se definir o marco temporal da tributação dos ganhos no contexto do regime competência. Nesse cenário, deve-se buscar as normas aplicáveis ao reconhecimento de ativos, pois é no momento da constituição do ativo que se registra a respectiva receita, a qual é passível de tributação.
A esse respeito, o Pronunciamento nº 00 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, no item 4.44, define que “um ativo deve ser reconhecido no balanço patrimonial quando for provável que benefícios econômicos futuros dele provenientes fluirão para a entidade e seu custo ou valor puder ser mensurado com confiabilidade”.
Como se vê, de acordo com a melhor regra contábil, são dois os requisitos para a contabilização de um ativo:
1. quando for provável que benefícios econômicos futuros dele provenientes fluirão para a entidade; e
2. o valor puder ser mensurado com confiabilidade.
Como relação ao pressuposto apontado no item “b”, cremos que o valor somente é mensurável com confiabilidade no momento do protocolo do pedido de habilitação.
Já o atendimento ao pressuposto do item “a” pode depender do entendimento que os gestores contábeis tenham sobre a probabilidade de ocorrência do benefício econômico. Conservadoramente, cremos que tal requisito somente se perfectibiliza no momento em que o pedido de habilitação do crédito é deferido.
É certo, porém, que divergências quanto aos critérios contábeis no reconhecimento do ativo não alteram o fato de que a aquisição da disponibilidade jurídica sobre a respectiva receita somente ocorre com o deferimento do pedido de habilitação, momento em que o crédito se torna líquido, certo e exigível.
Ante ao exposto, entendemos que somente a partir da manifestação da RFB quanto à habilitação do crédito é que os contribuintes estarão obrigados a reconhecer contabilmente os créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado, com a consequente contabilização da receita que integrará o lucro líquido para fins de determinação das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, pois é nesse momento em que o direito creditório da pessoa jurídica passa a ser líquido, certo e exigível.
Fonte: Jota- 19/08/2019
RAFAEL ALVES DOS SANTOS
RODOLFO JUNQUEIRA
RAFAEL ALVES DOS SANTOS – Advogado e Contabilista. Sócio de Abreu, Freitas, Goulart & Santos – AFGS Advogados. Coordenador e Professor do Curso Avançado de Jurisprudência Tributária (PJT). Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).
RODOLFO JUNQUEIRA – Advogado, graduado em direito pela Universidade Candido Mendes, especializado pelo Curso Avançado de Jurisprudência Tributária (PJT), ministrado pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) em parceria com o Grupo de Debates Tributários (GDT) e graduando em ciências contábeis pela Faculdade FIPECAFI.