É por todos sabido que, em 2017, o Brasil enviou à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) um pedido para ingresso em seu quadro de países-membros. Ao que tudo indica, esta decisão da equipe econômica do então presidente Michel Temer não foi precedida de grandes debates com as áreas impactadas pela eventual entrada do Brasil na OCDE, as quais tiveram que lidar com os reflexos dessa iniciativa sem terem participado da tomada de decisão original, ou terem tido a chance de alertar sobre as suas possíveis consequências.
Dada minha pesquisa acadêmica na área da tributação internacional, não raro sou questionado sobre se vale ou não a pena nos tornarmos membros da OCDE. Minha resposta é sempre a mesma: a entrada na OCDE não é, em si, uma decisão tributária. Ela é uma decisão política com potenciais efeitos tributários.
Da perspectiva fiscal, o fato é que o Brasil já tem participação ativa nos principais grupos de trabalho da organização, gozando hoje de uma posição confortável para seguir seu próprio caminho, quando assim entende ser mais vantajoso. Mesmo a abordagem multilateral que percebemos atualmente no Direito Internacional Tributário, notadamente após os trabalhos do Fórum Global para Transparência e Troca de Informações Tributárias e do Inclusive Framework do Projeto BEPS, não impõe a entrada do Brasil na OCDE. Afinal, em ambos os casos foram constituídos grupos paralelos, incluindo mais países não membros do que membros da organização, todos, ao menos em teoria, em igualdade de participação (equal footing), de modo que a participação como um país não membro da OCDE não é, necessariamente, uma desvantagem.
Nada obstante, como apontei acima, entrar na OCDE não é uma decisão tributária. Sendo uma decisão política com efeitos tributários, resta questionar: quais efeitos tributários?
Logo no início dessa aproximação entre o Brasil e a OCDE ficou muito claro qual seria a questão central, do ponto de vista tributário, no caminho da possível entrada do país na organização: as regras brasileiras de preços de transferência e sua característica mais marcante, as margens fixas, que resultam num desalinhamento importante com o padrão da OCDE.
Tenho insistido que a globalização de princípios, regras e práticas adotadas pelas economias mais desenvolvidas deve levar sempre em conta as capacidades institucionais dos países, principalmente daqueles menos desenvolvidos.[1] Não adianta estabelecer, na lei, um modelo sofisticado de controle de transações entre partes vinculadas se o país não tiver a infraestrutura de pessoal e de tecnologia necessária para aplicá-lo.
A Lei 9.430, que até hoje estabelece a estrutura básica do controle de preços de transferência no Brasil, é de 1996. Entendo que, naquele momento, o Brasil não possuía infraestrutura para adotar um sistema muito sofisticado e aberto de controle de preços de transferência. Mesmo o regime simplificado que adotamos não foi incorporado à prática das autoridades fiscais durante um bom tempo. Portanto, bastante justificável a opção por um modelo mais simples, redutor da complexidade para as empresas e para a própria fiscalização, mesmo que gerador de externalidades negativas: bitributação e dupla não tributação.
Hoje, contudo, a situação é completamente diferente. O estudo da tributação internacional no Brasil deu um enorme salto, quantitativo e qualitativo. Em 1996 podíamos contar os livros sobre a matéria usando os dedos das mãos. Talvez os dedos de apenas uma das mãos. Atualmente, só sobre preços de transferência temos incontáveis livros, artigos, monografias, dissertações e teses.
A compreensão da matéria internacional pelas autoridades fiscais também deu um grande salto qualitativo, para o qual a participação mais intensa nos grupos de trabalho da OCDE teve um papel fundamental. Sem perder contato com os pontos de partida históricos da política fiscal internacional brasileira[2], percebe-se uma nítida evolução nos(as) auditores(as) da Receita Federal do Brasil — notadamente aqueles que integram a equipe que representa o Brasil nessas discussões com a OCDE.
Não foi só o estágio dos debates sobre tributação internacional no Brasil que mudou. A economia mudou drasticamente de 1996 para 2019. Durante todo esse período a legislação não foi alterada para se adaptar à digitalização da economia. Pelo contrário, as regras brasileiras que regem transações com intangíveis entre partes vinculadas data das décadas de 1950 e 1960. A mudança parece inevitável.
Foi nesse contexto que, nos dias 28 de fevereiro e 1º de março de 2018, foi dado início ao trabalho conjunto entre a Receita Federal do Brasil e a OCDE para a revisão das regras brasileiras de preços de transferência.
Em 11 de julho deste ano, a Receita Federal e a OCDE apresentaram um resultado parcial deste trabalho conjunto. Em verdade, o objetivo deste encontro era divulgar conclusões preliminares sobre os gaps da legislação brasileira, considerando como pano de fundo os Transfer Pricing Guidelines da OCDE. Anunciaram, em um concorrido evento em Brasília, que havia sido decidida a migração do modelo brasileiro para algo mais próximo ao padrão da OCDE.
Talvez a comunicação neste encontro não tenha sido tão clara, mas a percepção de que o Brasil simplesmente migraria para o padrão da OCDE gerou reações de setores do mercado, da prática e da academia. Juntamente com os professores Heleno Torres, Luís Eduardo Schoueri e Romero Tavares, publiquei na ConJur um manifesto onde nos posicionamos contra uma pura e simples adoção do padrão da OCDE, sem levar em conta as possíveis vantagens da utilização da experiência brasileira como ponto de partida.[3]
A bem da verdade, talvez a expectativa sobre o que seria comunicado em julho estivesse equivocada. Esperava-se a apresentação de um novo modelo quando, de fato, só se estava dando satisfação do que tinha sido feito naquele um pouco mais de um ano e qual a diretriz que seria adotada na sequencia do projeto.
Estamos, agora, na véspera do encerramento deste ciclo inicial do projeto de preços de transferência entre a Receita Federal e a OCDE. O grande marco da mudança de fase deve ocorrer no mês de dezembro, com a publicação de um detalhado estudo sobre o modelo brasileiro, suas fragilidades, diferenças em relação ao padrão da OCDE e razões para a mudança. Não se deve esperar, de maneira alguma, que seja apresentado o desenho normativo do que se pretende propor para debate e implementação no Brasil, para que evitemos frustrações. O que se apresentará é uma detalhada radiografia sobre o padrão brasileiro de controle de preços de transferência, em comparação aos standards da OCDE, a qual será o ponto de partida para uma nova etapa de trabalho, onde se iniciará a elaboração das novas regras — que, por enquanto, não existem. Este relatório — que é a formalização dos resultados preliminares apresentados em julho — será, por si só, alvo de estudos, análises e críticas, os quais serão importantíssimos para avançarmos no debate.
Pois bem. E quais serão as linhas mestras desta nova fase do projeto de reforma das regras brasileiras de preços de transferência?
Como disse acima, não há, por enquanto, caminhos fechados. Há um grande espaço de construção, onde a participação da Receita Federal, da OCDE, das empresas, da academia e dos profissionais que trabalham no dia a dia com preços de transferência será fundamental. No último dia 14 de novembro tive a oportunidade de debater com as equipes da Receita Federal e da OCDE alguns dos alguns pilares em que se baseia o trabalho que será desenvolvido, que comentarei brevemente a seguir.
1. Evitar a dupla tributação e a dupla não tributação
Uma das características mais marcantes da tributação internacional contemporânea, notadamente no período pós-BEPS, é a consolidação da dupla não tributação como uma questão tão relevante quanto a dupla tributação. Ou seja, da mesma maneira que a bitributação da renda deve ser evitada, o regime fiscal internacional deve ser desenhado de maneira tal que sejam afastados hiatos impositivos não intencionais.
O modelo brasileiro de controle de preços de transferência tem deficiências nas duas áreas. Com efeito, as margens predeterminadas, a falta da ajustes correspondentes e a incipiente utilização do procedimento amigável acarretam casos de dupla tributação, da mesma maneira que são explorados como instrumentos de planejamento tributário agressivo.
Portanto, uma das metas que guiam o trabalho de reforma das regras brasileiras é reduzir o espaço para situações de dupla tributação e de dupla não tributação.
2. Um único regime
Logo no lançamento do projeto conjunto da Receita Federal com a OCDE no ano passado, havia uma percepção de que um possível caminho a ser seguido seria a adoção de um sistema dual. Ou seja, seriam mantidas as regras brasileiras e acrescidas no sistema outras seguindo o padrão da OCDE. Nesse caso, o contribuinte poderia eleger qual regime adotar: o brasileiro ou o inspirado nos standards da OCDE.
Esta alternativa está, atualmente, fora de discussão, decisão que nos parece acertada.
De fato, uma das virtudes do modelo brasileiro é a dita simplicidade, tanto para o contribuinte, quanto para a administração tributária.[4] Ora, a coexistência de dois conjuntos de normas, com premissas, conceitos, pontos de partida e de chegada diferentes, certamente transformaria o sistema em algo extremamente complexo, principalmente para os órgãos de aplicação, mas também para os contribuintes. Mal comparando, vejo um paralelo no que aconteceu com a apuração do PIS e da Cofins com a chegada da sistemática não cumulativa de cálculo.
Esta razão — a ultracomplexidade de um sistema dual — já deveria, por si só, ser suficiente para que se abandonasse a ideia de dois regimes. Entretanto, talvez a mesma nem seja a razão mais relevante.
Com efeito, como mencionamos no item anterior, a premissa da mudança é evitar a dupla tributação, prevenindo, igualmente, a dupla não tributação.
A manutenção de dois regimes teria a seguinte consequência: aqueles contribuintes que sofrem com a dupla tributação, como efeito das margens presumidas brasileiras, migrariam para o sistema baseado nos padrões da OCDE. De outra parte, aqueles contribuintes que conseguem transferir lucros para jurisdições de baixa tributação, também em razão das mesmas margens fixas, provavelmente seguiriam utilizando o modelo atual, gerando uma assimetria no sistema.
Percebe-se, portanto, que não é eficiente, da perspectiva de desenho do sistema tributário, ter dois conjuntos de regras em vigor, razão pela qual não se cogita a implementação de um modelo dual, passível de arbitragem pelo contribuinte, que seria gerador de oportunidades de planejamento tributário agressivo.
3. Inspiração na simplificação do regime brasileiro e para além da experiência nacional
O fato de se descartar um sistema dual, com dois regimes simultaneamente em vigor, não significa que a experiência brasileira vá ser descartada. A utilização de modelos simplificados transcendeu a experiência nacional e encontrou seu espaço nos próprios trabalhos recentes da OCDE. Há, também, regras de simplificação em diversos países, que também podem ser incorporadas no futuro. Dessa maneira, uma das premissas do trabalho concreto que será desenvolvido adiante é que a aplicação do padrão “OCDE full” somente deve ter lugar quando efetivamente necessário. Mais uma vez, não se sabe, por enquanto, qual será o desenho das regras de simplificação no novo modelo. Em princípio, não se está cogitando uma mera replicação de algo atualmente existente. Nada obstante, busca-se evitar complexidades desnecessárias, reconhecendo a especificidade de determinados setores, transações e de negócios, que podem vir a ter um tratamento simplificado, em busca de maior segurança jurídica.
4. Capacitação administrativa e mecanismos de solução de disputas são fundamentais
Há uma nítida percepção de que a mudança de regime não pode vir desacompanhada de maciços investimentos em capacitação do pessoal da Receita Federal do Brasil. Uma mudança de modelo, sem o devido investimento em treinamento e sistemas, terá impactos dramáticos sobre segurança jurídica dos contribuintes. Especialmente neste período de transição, a Receita Federal seja muito rápida na resposta a consultas formuladas pelo contribuintes e que se antecipe dando transparência a suas interpretações por meio de pareceres normativos e outros atos administrativos.
Nada obstante, não é só no campo da administração fazendária que investimentos serão necessários. A solução de disputas será uma área fundamental. Desde o evento de lançamento do projeto conjunto Receita Federal/OCDE, venho insistindo que não temos órgãos julgadores, administrativos ou judiciais, capacitados para rever autos de infração de preços de transferência baseados nos standards da OCDE. Um dos pilares da próxima fase do trabalho certamente será o desenho dos mecanismos de solução de disputas, não apenas domésticos, mas também internacionais, os quais serão essenciais para o desenvolvimento do novo modelo em um ambiente de segurança e estabilidade.
Fora do campo dos preços de transferência, há certamente outros temas a serem debatidos, mas que não estão no centro do palco no momento. Por exemplo, sabe-se que o Brasil tem uma política importante e consolidada de tributação na fonte sobre o rendimento bruto de não residentes. Será que faz sentido manter esta política inalterada quando há uma mudança na orientação das regras de preços de transferência, tendo como pano de fundo uma distribuição mais justa de receitas tributárias entre os países? Este é um debate que teremos que iniciar.
Conclusão
Este artigo não tem nenhuma pretensão exaustiva. Creio que a grande mensagem deste texto é que todos que lidamos com o tema devemos colaborar com o trabalho que será desenvolvido a partir de 2020. O relatório que será publicado em dezembro deve dar muito material para estudo crítico e espero que a academia e a sociedade tenham a oportunidade para contribuir com as próximas etapas do trabalho.
Vivemos um período complicado. Reformas por todos os lados. Os pilares 1 e 2 do unified approach da Ação 1 do Projeto BEPS ameaça, finalmente, mudar as bases do regime fiscal internacional. Domesticamente, todos os tributos relevantes em termos arrecadatórios são objeto de propostas de reforma. A modificação das regras de preços de transferência é algo tangível, talvez com uma chance de materialização superior a outras propostas de reforma,mas que exigirá um grande esforço para o seu desenho e futura implementação. Que a apresentação do relatório decorrente do trabalho conjunto da Receita Federal com a OCDE seja mais um avanço em direção ao novo regime brasileiro de controle de preços de transferência.
[1] Sobre o tema, ver o artigo International Taxation, Epistemologies of the South, and Institutional Capacities: Transfer Pricing and the Universalization of the OECD Standards, que publiquei no Kluwer International Tax Blog. Disponível em http://kluwertaxblog.com/2018/05/07/international-taxation-epistemologies-south-institutional-capacities-transfer-pricing-universalization-oecd-standards/. Acesso em 22 de novembro de 2019.
[2] Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Política Fiscal Internacional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Disponível em: http://www.sarocha.com.br/pt/publicacoes/.
[3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-25/opiniao-seguranca-juridica-isonomia-relacao-brasil-ocde. Acesso em 22 de novembro de 2019.
[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Política Fiscal Internacional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 163-201. Disponível em: http://www.sarocha.com.br/pt/publicacoes/.
Por Sergio André Rocha
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2019.