A coluna de hoje reproduz quase na íntegra o prefácio do livro Federalismo (s)em Juízo, que tive a honra de coordenar em conjunto com o Professor Heleno Torres (Professor da USP e também colunista da ConJur), a Professora Misabel Derzi e o Professor Onofre Batista (ambos da UFMG), e conta com a valiosíssima colaboração de cinquenta e oito renomados autores de todo o Brasil.
O livro já foi lançado em Belo Horizonte em junho e em agosto na Biblioteca do STF, em Brasília (https://youtu.be/LKkxlyVZfGw) , e tem lançamentos agendados no Rio de Janeiro no dia 26 de agosto, entre 18 e 20h (auditório da OAB/RJ, rua Marechal Câmara, 210, Centro), em São Paulo no dia 05 de setembro, a partir das 19h (Livraria Noeses, rua Bahia, 1.282, Higienópolis) e em Belém no dia 10 de outubro (local e horário a serem determinados). Claro que todos os leitores estão convidados para os lançamentos, que ocorrerão com a presença de vários dos autores.
A obra apresenta uma multiplicidade de questões federativas judicializadas, tema que seguramente não se esgotou, pois o debate federalista permanece como um problema insolúvel, entre sístoles e diástoles sucessivas ao longo da história brasileira. Nesta fase de acesa discussão sobre reforma tributária, seguramente muito material novo haverá de surgir.
Espero que o leitor aprecie esta introdução à obra, cuja capa reproduzo abaixo:
O federalismo como uma forma de organização do poder
O direito existe para regular o poder e o debate federalista é um dos âmbitos dessa relação de tensão acerca de sua concentração ou repartição.
Existem dúvidas sobre sua gênese. Fábio Konder Comparato destaca o federalismo como uma grande criação política da fundação dos Estados Unidos da América[1], enquanto Silvio Meira assevera que mesmo a federação norte americana surgiu com os olhos voltados à civilização romana[2], o que aponta para um tempo muito mais remoto do que os duzentos e poucos anos da fundação daquele país.
Mesmo sob a perspectiva histórica, não basta analisar a questão da distribuição geográfica do poder, mas lhe dar uma função, isto é, apontar sua finalidade. O tema de fundo, portanto, é saber qual a melhor forma de organizar politicamente o exercício do poder dentro de certo espaço territorial, com vistas à melhor atender às necessidades humanas.
Nesse sentido, o debate é mesmo anterior aos romanos, se perdendo na história da humanidade. Surge a partir dos primeiros povoamentos e com as cidades “com todos os meios de se abastecer em si (…) nascida principalmente da necessidade de viver, (…) para uma vida feliz”[3], como afirmava Aristóteles, que conclui seu raciocínio com uma frase que se tornou uma referência obrigatória no estudo das ciências humanas: “A cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade”[4]. É nesse sentido que Platão havia definido o homem como um zoon politikon, um “ser da pólis, capaz da palavra, destinado a alcançar a eudaimonia (felicidade) na medida em que age dentro da cidade e a favor dela”[5].
Deve-se atentar para a expressão zoon politikon, pois ela é de extrema importância para a compreesão das relações entre o direito e a política. Segundo Hannah Arendt[6] ela não significa que o homem é um “animal social”, como usualmente se traduz; mas que o homem é um “animal político”, isto é, com duas características: a práxis, entendida como ação, e a lexis, entendida como discurso. Portanto, “ser político, viver em uma ‘polis’, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não força e violência”.[7] Diversos animais se organizam em sociedades, porém de forma natural, como as abelhas e as formigas, porém só o homem se organiza politicamente, através da persuação e do convencimento de seus pares. Daí surge a fronteira entre o direito e a política, pois, uma vez decidido políticamente, o direito serve para dar estabilidade nas relações sociais, dentre outras funções. Assim, não existe um federalismo, mas diversos federalismos, a partir da decisão política de cada Estado, com perfis mais centrípetos (concentradores) ou centrífugos (repartidores) do poder. O ordenamento jurídico de cada país revela e ordena tais decisões.
Há sempre o risco de o federalismo não ser utilizado para sua finalidade essencial, que é a melhor convivência humana na polis, mas para a manutenção do poder das elites locais, com a captura do governo, que passa a agir no interesse das corporações públicas e/ou dos monopólios e oligopólios empresariais e/ou de clãs familiares. A descentralização geográfica do poder tem que vir acompanhada de efetivos instrumentos de controle público, e, em especial, de controle social, isto é, exercido pela sociedade civil em face das ações governamentais, a fim de que sua finalidade primordial seja cumprida.
No Brasil esse tema é relevantíssimo em razão da extrema desigualdade regional, e da não menor desigualdade social. Pode-se até pensar que a dimensão social e a regional representam problemas estanques, o que não é correto. Em Estados ricos, como São Paulo, existem cidades com um PIB elevado, como em sua capital, onde convivem favelas ao lado de condomínios de luxo, e cidades pobres, mas com boa qualidade de vida medida pelo IDH[8]. Exatamente por essas assimetrias é que não se deve pensar em regional como expressão conectada apenas às cinco grandes regiões do Brasil, pois existe grande desigualdade internamente a cada qual. Basta ver que na Região Amazônica (ainda) existem vastos espaços territoriais de florestas, com regramento ambiental específico, inclusive no âmbito constitucional (art. 225, §4º), porém ao mesmo tempo coexistem cidades com problemas urbanos candentes, como congestionamento de trânsito e criminalidade, como nas duas metrópoles regionais, Manaus e Belém. Isso se repete em todas as cinco grandes regiões do país.
Exatamente em razão desse entrelaçamento é que a Constituição (art. 3º, III) estabelece ser um dos objetivos fundamentais de nossa sociedade reduzir as desigualdades sociais e também as regionais. No Brasil o federalismo há de ser assimétrico, de modo a permitir que haja tratamento desigual entre as regiões, bem como internamente a elas, visando permitir que as desigualdades sociais sejam revertidas.
Analisando o contexto histórico brasileiro, constata-se grande preocupação com a questão da autonomia dos entes subnacionais, motivo pelo qual a forma de organização do espaço territorial foi estabelecida como uma federação desde a Constituição de 1891, o que se mantém e permanece como cláusula pétrea constitucional (art. 60, §4º, I, CF 88).
Essa preocupação autonomista, mais caracterizada como um anseio federativo, se verifica desde o Império, quando as lutas tinham este objetivo descentralizador, como se pode verificar no Ato Adicional de 12-08-1834 (Lei 16) que abriu esse processo centrífugo, conferindo muitos poderes às Assembleias Legislativas Provinciais, tendo sido precedido por um projeto datado de 1831, que propunha a instituição de uma “monarquia federativa” sob o reinado do Imperador Pedro II. Até mesmo no Manifesto Liberal de 1870 pregava-se que “no Brasil, antes da ideia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo”[9].
Nesse sentido, relata José Murilo de Carvalho que D. Pedro II, quando convidou o Conselheiro Saraiva em 1885 para organizar um novo gabinete parlamentar, lhe deu amplos poderes para pôr em prática um programa visando “aplainar o terreno para a república, inclusive com a adoção do federalismo”[10], o que se tornou mais acerbo com o início do processo de deslocamento do centro econômico para São Paulo, fruto da cultura do café, remanescendo o centro político no Rio de Janeiro, pois “o federalismo era a principal reivindicação dos republicanos paulistas”[11] ancorados no PRP – Partido Republicano Paulista. Até mesmo a proclamação da República se deu em um ambiente de disputas entre os entes subnacionais, conforme leciona Orlando Bitar, para quem “toda a gênese da República é dominada pelo ideal federalista”[12].
Ocorre que, como se vê ao longo da história brasileira, nem sempre o discurso federalista visava a redução das desigualdades sociais, mas a manutenção das oligarquias locais, com maior autonomia em face do poder central, tornando-se mais opaca ao controle da sociedade, fruto dos pactos políticos localmente estabelecidos. Obra clássica nesse sentido é a do advogado e ex-Ministro do STF, Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, na qual analisa as relações entre o voto e o poder municipal até a Constituição de 1946[13]. De lá para cá, o Brasil vivenciou espasmos de organização federativa centrífuga e centrípeta, como se pode ver nas sistoles e diástoles pós-Constituição de 1988, que foi fundada sob bases descentralizadoras, mas, ao longo desses trinta anos vem se acentuando o movimento concentrador de poderes na União.
Dentro do estudo do federalismo um capítulo se destaca, que é o do federalismo fiscal, curioso nome para significar a descentralização do poder financeiro dentre os entes subnacionais. A curiosidade decorre do fato de dois aspectos: (1) tal repartição de poder existe mesmo em países que não se organizam sob o sistema federativo, como ocorre com a Espanha[14], e, (2) por outro lado, não se refere apenas às receitas tributárias, pois existem outras dimensões desse fenômeno descentralizador, como no âmbito das receitas patrimoniais (como os royalties da extração petrolífera e mineral[15]), das despesas, da dívida pública, dos consórcios públicos (CF, art. 241), dos fundos de participação, de rateio e de equalização, e muitos outros, extrapolando a usual perspectiva centrada apenas no âmbito da repartição das receitas tributárias.
Uma síntese desse debate pode ser vislumbrada na busca por um orçamento que seja republicano, sob a ótica da repartição territorial das riquezas, pois, se houver maior arrecadação das regiões mais pobres para realizar primordialmente gastos públicos nas regiões mais ricas do país, estar-se-á defronte de um orçamento oligárquico; de outra banda, se houver maior arrecadação nas regiões mais ricas para primordialmente realizar gastos nas regiões mais pobres, estar-se-á diante de um orçamento republicano.[16]
Alguns desses temas são debatidos ao longo do livro, reunindo 34 trabalhos de extraordinário valor para o debate contemporâneo sobre federalismo, inclusive sobre aspectos do federalismo fiscal. A ótica central é a análise das questões já em debate perante o Poder Judiciário.
A ideia deste livro surgiu a partir de reportagem divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo intitulada “Em 55 ações, estados deflagraram guerra judicial à União por dinheiro público”[17]. A reportagem tinha por base uma Nota Técnica do Ministério da Fazenda, assinada pelo economista Marcos Mendes, que havia sido anexada pela Advocacia Geral da União na ADPF 523, de relatoria da Ministra Rosa Weber[18], e decorreu da liderança do Estado de Minas Gerais, em conjunto com o Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais[19], na qual afirmavam que a DRU havia se tornado permanente, e com isso, se habilitavam a receber a quantia de R$ 20 bilhões utilizada com desvio de finalidade. A reportagem publicada em meados de agosto de 2018 mencionava que apenas naquele ano já haviam sido concedidas liminares contra a União em ações que beneficiavam sete estados e envolviam a discussão de R$ 2,3 bilhões.
Daí surge este livro, cujo título, Federalismo (s)em Juízo, bem espelha o estado de coisas atualmente existente no Brasil, presidido por uma intensa judicialização interfederativa causada pela centralização das finanças públicas nas mãos da União, em conflito com as disposições da Constituição Financeira[20].
Espera-se, com isso, contribuir para um debate mais atento às realidades e diversidades regionais, permitindo que cada pessoa que habite o território nacional, onde quer que ela deseje ou tenha condições de morar, receba os serviços públicos necessários para fruir sua vida com dignidade. Não basta repartir federativamente o poder, é preciso também estar atento às finalidades de tal divisão.
Os organizadores
[1] Comparato, Fábio Konder: “Como todos sabem, o estabelecimento do regime federativo nos EUA foi uma grande criação política. Até aquele momento não havia federações, havia confederações. Não havia, portanto, um poder central interno na confederação. E quando as 13 colônias se tornaram independentes na América do Norte, surgiu esta alternativa de confederação ou federação, e o debate tomou conta de todo o século XIX norte-americano e até hoje é um problema grave” (Educação, Estado e poder. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 47).
[2] Meira, Silvio. Federalismo e centralização. Revista de Direito Público, São Paulo: RT, n. 32, p. 73, nov.-dez. 1974: “Observa-se, dessa forma, que a federação não constitui fórmula mágica oferecida ao mundo pelos americanos, que apesar de sua origem anglo-saxônica, foram buscar, para o seu Direito Público, muitas riquezas do tesouro romano. […] Muito do que hoje existe, ou do que se faz, ou do que se pensa, já foi vivido, feito e pensado pela civilização romana”.
[3] Política, Livro I, Capítulo I, § 7º (2. ed. Bauru: Edipro, 2009, p. 15).
[4] Política, Livro I, Capítulo I, § 9º (2. ed. Bauru: Edipro, 2009, p. 16).
[5] Nunes, Benedito. Prefácio à 1ª edição, reproduzida na 3ª edição. In: Platão. A República. 3. ed. Belém: Ed. Universidade Federal do Pará, 2000. p. 6.
[6] Arendt, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 27-29. Segundo a autora, a palavra “social” é de origem romana, e não tem equivalente na língua e no pensamento grego clássico, muito embora existisse a palavra “societas”, que significava “uma aliança entre pessoas para um fim específico, como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime”.
[7] Arendt, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 31.
[8] Um exemplo, dentre vários outros, é cidade de Orlândia, que tem o 132º PIB municipal do Estado de São Paulo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_munic%C3%ADpios_de_S%C3%A3o_Paulo_por_PIB), porém possui o 66º IDH municipal do Estado (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_munic%C3%ADpios_de_S%C3%A3o_Paulo_por_IDH-M).
[9] Meira, Silvio. Federalismo e centralização. Revista de Direito Público, São Paulo: RT, n. 32, p. 70-72, nov.-dez. 1974.
[10] Carvalho, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 204.
[11] Carvalho, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 206.
[12] Bitar, Orlando. Obras completas. Brasília: Conselho Federal de Cultura, 1978. v. 3, p. 55.
[13] Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1986. É dele a afirmação: O fortalecimento do poder público não tem sido, pois, acompanhado de correspondente enfraquecimento do “coronelismo”; tem, ao contrário, contribuído para consolidar o sistema, garantindo aos condutores da máquina oficial do Estado quinhão mais substancioso na barganha que o configura. Os próprios instrumentos do poder constituído é que são utilizados, paradoxalmente, para rejuvenescer, segundo linhas partidárias, o poder privado residual dos “coronéis” (p. 255).
[14] Para uma análise sobre o sistema espanhol e de alguns países latino-americanos, inclusive o Brasil, ver REVENGA, Miguel; PAJARES, Emilio (Coords.). Organización territorial en España y latinoamérica: perspectivas constitucionales y comparación de sistemas. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. ISBN: 978-84-9004-116-1
[15] Scaff, Fernando Facury. Royalties do Petróleo, Minério e Energia – aspectos constitucionais, financeiros e tributários, São Paulo: RT, 2014, em especial o capítulo 3. E também SCAFF, Fernando Facury. O federalismo fiscal patrimonial e fundos de equalização. O rateio de royalties de petróleo no Brasil. In: HORVATH, Estevão; CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Org.). Direito financeiro, econômico e tributário: estudos em homenagem a Regis Fernandes de Oliveira. São Paulo: Quartier Latin, 2014. p. 179-206.
[16] Para o conceito de orçamento republicano ver SCAFF, Fernando Facury, Orçamento republicano e liberdade igual (Fórum: Belo Horizonte, 2018, Capítulo 3).
[17] Folha de S.Paulo 16/08/2018, caderno Mercado, reportagem de Willian Castanho: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/08/em-55-acoes-estados-deflagram-guerra-judicial-a-uniao-por-dinheiro-publico.shtml.
[18] O assunto foi analisado por Scaff em uma coluna na revista eletrônica Consultor Jurídico em 10 de julho de 2018: https://www.conjur.com.br/2018-jul-10/contas-vista-desconfianca-legitima-federalismo-fiscal-adpf-523
[19] Consta que apenas os Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo não aderiram à ação.
[20] Sobre o tema, ver TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro – Teoria da Constituição financeira. São Paulo: RT, 2014.
Por Fernando Facury Scaff
Fernando Facury Scaff é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-ago-20/contas-vista-federalismo-juizo-predomina-brasil