O constituinte originário da Constituição Federal de 1988 foi sensível à necessidade do estabelecimento de mecanismos jurídicos para a proteção dos pequenos empreendedores, assegurando-lhes as condições de competitividade na economia de mercado, dominada pelas grandes corporações com sua economia de escala e poder econômico, ao estabelecer como um dos princípios da ordem econômica o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país” (artigo 170, IX). Já o artigo 179 da mesma Constituição Federal ordena que os entes políticos dispensem tratamento jurídico diferenciado com foco na simplificação no cumprimento de obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, eliminando-as ou reduzindo-as por meio de lei, visando ao incentivo do pequeno empreendedor, e pautem o caminho para o seu desenvolvimento.
O reconhecimento da necessidade de tratamento diferenciado para o segmento produtivo constituído pelas micro e pequenas empresas [1] vem de longa data.
A primeira regulamentação desses preceitos constitucionais ocorreu através da Lei nº 9.317/1996, com a criação do Simples Federal, que visava a descomplicar o recolhimento de tributos federais, cabendo aos Estados e municípios, através de convênio, aderir a este sistemática simplificada no cumprimento das obrigações tributárias [2].
Mas foi a Constituição Federal de 1988 que consolidou este tratamento diferenciado de forma ampla, amenizando as obrigações nas diversas áreas de controle acima já mencionadas, removendo parte dos entraves jurídicos e burocráticos para o desenvolvimento do pequeno empreendedor, que não pode manter uma estrutura especializada, ou mesmo um programa de compliance para operar em conformidade com as normas de maneira geral.
Recorre-se aqui a um corte metodológico da matéria para abordar as obrigações tributárias a serem cumpridas pelas micro e pequenas empresas, segundo o que segue regulado pela LC nº 123/2006, editada em complemento à Constituição Federal (artigo 146, III, “d”), e de forma específica, o direito ao crédito de ICMS, pelo regime normal de apuração, na determinação do imposto a ser exigido via lançamento de ofício, em razão da constatação de prática de sonegação fiscal por promover vendas de mercadorias ou prestação de serviços sem emissão de nota fiscal própria.
Os fundamentos deste direito se originam da interpretação da legislação específica do Simples Nacional, em harmonia com o princípio da não cumulatividade do imposto estadual [3].
Na cobrança do ICMS de ofício, em decorrência de sonegação fiscal por vendas realizadas sem emissão de documento fiscal — que é o procedimento mais usual nas evasões fiscais —, a LC nº123/06 determina a observância da legislação aplicável às demais pessoas jurídicas, ou seja, legislação do regime normal de tributação, sem o benefício da tributação simplificada, nos termos do artigo 13, §1º, XIII, “f”, que segue transcrito.
“Artigo 13 — O Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante o recolhimento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições:
(…)
1º . O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsáveis, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
(…)
XIII. ICMS devido:
f) na operação ou prestação desacobertada de documento fiscal”.
A conduta de sonegação do contribuinte afasta o benefício da tributação menos gravosa, à qual se submete a empresa enquadrada no Simples Nacional, com relação às operações ou prestações promovidas sem a emissão de nota fiscal (evasão fiscal), as quais deverão ser submetidas ao regime normal de tributação, apurando o ICMS a partir dos débitos (pela venda de mercadorias ou prestação dos serviços), e apropriação do crédito com relação às operações de entrada e às tomadas de serviços.
Registre-se de passagem que o marco de exclusão da lei é estranho e um tanto ilógico. Ao se referir à operação ou prestação desacobertada de documentos fiscais, o legislador delimitou a espécie de infração como excludente do tratamento tributário diferenciado, desprezando as demais modalidades de evasão fiscal, o que cria distorções no sistema. Numa compreensão literal da lei, se o contribuinte não declarar o tributo e nem o recolher, ou se praticar subfaturamento, ou ainda, se emitir documentos fiscais de forma fraudulenta, todas essas condutas não são determinantes para a tributação pelo regime normal, fora do sistema do Simples Nacional, desde que haja a emissão de documento fiscal. Para essas infrações, o ICMS deverá ser cobrado dentro do regime do Simples Nacional, aplicando-se o percentual previsto na tabela em conformidade com o seu faturamento. Melhor seria conectar a exclusão à prática de sonegação fiscal em geral, sem especificar a conduta.
Voltando ao tema central dessa reflexão, é comum que as administrações tributárias estaduais apliquem a legislação do regime normal de tributação, no caso de vendas sem emissão de notas fiscais, somente com relação ao débito, constituindo o lançamento de ofício por meio da aplicação simples da alíquota do regime normal, sobre a base de cálculo obtida pela constatação da infração, sem considerar o crédito relativo às entradas das mercadorias vendidas sem documento fiscal.
Esse procedimento viola frontalmente o princípio da não cumulatividade do imposto, visto que o contribuinte não se apropriará do crédito para a compensação na apuração do imposto devido. Suportará ele a alíquota cheia, sem o crédito correspondente. Será ele duplamente penalizado: pela multa aplicada e pela carga tributária mais gravosa e pela frustração da aplicação do princípio da não cumulatividade, lembrando que não se pode exigir tributo como meio sancionatório [4]. Viola também, esse procedimento fiscal, o princípio da isonomia, na medida em que o contribuinte enquadrado no Simples Nacional suportará uma carga tributária mais elevada do que aquele regido pelo regime normal de tributação, por conta da não apropriação do crédito. O regime normal de tributação, à qual a lei se refere, deve ser aplicado na sua integralidade, tanto com relação aos débitos como aos créditos, e não somente na parte que favorece ao Fisco.
É fato que os agentes fiscais normalmente não consideram o crédito nas ações fiscais promovidas nos contribuintes regidos pelo regime normal de tributação, e nesse caso o fazem sem frustrar o princípio da não cumulatividade, visto que o contribuinte tem o direito potestativo de se apropriar do crédito, via conta gráfica, a qualquer momento, dentro do prazo decadencial. O regime do Simples Nacional não comporta o mecanismo de compensação; a sua base tributária é o faturamento [5], estando dispensado dos registros fiscais convencionais. Essa circunstância obriga o reconhecimento do crédito para o Simples Nacional, por ocasião do lançamento de ofício que exige o imposto pelo regime normal de tributação.
Com relação à operacionalização do sistema, cabe ao Fisco e, no caso do Simples Nacional, ao Comitê Gestor previsto pelo artigo 2º, da LC nº 123/2006, estabelecer o regramento dos procedimentos fiscais, nos quais se observará o princípio da não cumulatividade do imposto, sendo vedado o estabelecimento de regras unilaterais dos entes tributantes, nos termos do artigo 26, §4º, LC 123/2006.
Concluindo, cada caso merece uma análise específica, visando à correta aplicação da legislação, respeitando o direito do Fisco de exigir o seu crédito tributário, sem violar os direitos do contribuinte, em especial, sem impor à empresa enquadrada no Simples Nacional um grave tributário desproporcional, a ponto de anular o mecanismo de incentivo estatuído pelo constituinte nacional.
[1] Segundo o Sebrae, as micro e pequenas empresas são responsáveis por 53,4% do PIB do comércio; na indústria e nos serviços, esta participação é de 22,5% e 36,3%, respectivamente. São 13 milhões de empresas optantes pelo Simples Nacional.
[2] Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/historico-da-lei-geral.
[3] Artigo 155, § 2º, I, da CF/88.
[4] Segundo o artigo 3º, do CTN, Lei nº 5.172/66, “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
[5] Artigo 18 da Lei Complementar nº 123/2006.
Por Deonísio Koch
Deonísio Koch é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de SC (TAT) e ex-auditor fiscal do Estado.
Revista Consultor Jurídico, 15 de outubro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-out-15/deonisio-koch-credito-icms-simples-nacional