O presente artigo consiste na análise a respeito da aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica do Código de Processo Civil vigente em ações de execução fiscal, em face de flagrantes incompatibilidades de natureza processual e fática que contornam esse tema.
A execução fiscal e a desconsideração da personalidade jurídica são veiculadas no Código Nacional Tributário e na Lei 6.830/80, de que trata especificamente da execução fiscal. No entanto, em 2015, o CPC trouxe nova redação abordando o mesmo, a fim de assegurar direitos pertinentes à ampla defesa e o contraditório, mas tornando o desenvolvimento do processo de execução mais complexo e lento.
E surge no Código de Processo Civil de 2015 (previsto nos artigos 133 a 137 do diploma), dentro do título de intervenção de terceiros, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica, figurando como instrumento assecuratório do contraditório e ampla defesa dos sócios sobre os quais recaem a pretensão de responder em juízo, através de seu patrimônio pessoal, por débitos originariamente das empresas que integram ou integravam.
Como dito, o incidente de desconsideração de personalidade jurídica fora introduzido para que fosse possível o contraditório e a ampla defesa da parte. Com efeito, dispõe o artigo 135 que: “Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias”. Entretanto, é importante observar os possíveis riscos que trariam para execução fiscal.
O primeiro deles seria a mora, pois como se trata de um instrumento assecuratório do contraditório prévio dos sócios, assim o fazendo, a ação fica suspensa até que seja decidido o incidente, o que dificultaria a satisfação do crédito. O segundo risco seria a dilapidação dos bens dos sócios enquanto instaurado o incidente, que se caracteriza como fraude apenas quando da citação válida. Nesse sentido, os sócios podem proteger seu patrimônio pessoal, impedindo que seus bens materiais sejam atingidos.
Nesse quadrante, é oportuno levar a efeito os conceitos que envolvem a pessoa jurídica, a desconsideração da personalidade jurídica — tradicional e inversa —, trazendo seus requisitos e efeitos, de forma a enxertar a jurisprudência concernente à matéria.
Fixadas tais premissas, indaga-se: quais as principais incompatibilidades da desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução fiscal ante a redação do Código de Processo Civil vigente sobre o tema?
Uma das hipóteses está na grave violação do princípio constitucional da duração razoável do processo judicial, em conformidade com o artigo 5º LXXXVIII, por conta que o artigo 134, §3, do CPC vigente dispõe acerca da suspensão do processo principal quando determinada a desconsideração da personalidade jurídica.
Ressalte-se, outra possibilidade a ser destacada é no sentido de que quando o processo principal estiver suspenso provocará o aumento significativo do tempo da marcha processual, dificultando a satisfação do crédito tributário para a Fazenda Pública.
Por conseguinte, o princípio da celeridade processual, aliado à eficiência, restará prejudicado na busca de satisfação do crédito tributário, em severo contraste com o que precifica a Constituição Federal de 1988.
Nesse raciocínio, outra hipótese é o princípio da especialidade, segundo o qual a lei especifica prevalece sobre a anotação da lei geral, eis que a lei de execução fiscal e o Código Tributário Nacional são legislações com conteúdos significativos — específicos — na seara de execução fiscal, afastando, desse modo, a aplicabilidade do Código de Processo Civil vigente.
Afigura-se o objetivo geral no tocante a verificar a compatibilidade da desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução fiscal, trazendo a legislações do Código de Processo Civil, do Código Tributário Nacional e da Lei de Execução Fiscal.
Os objetivos específicos são examinar os conceitos da pessoa jurídica, as legislações pertinentes à compatibilidade ou não do tema em apreço; abordar as distorções que foram trazidas CPC/15 sobre a desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução fiscal; esclarecer como a Constituição Federal atual descreve na hipótese aqui mencionada; e analisar a jurisprudência sedimentada dos tribunais superiores que toca a execução fiscal, nos termos supracitados.
A respeito da desconsideração da personalidade jurídica em decisão do Superior Tribunal de Justiça, é possível observar que o Código Civil adotou a teoria maior, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva, senão vejamos:
“Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de falência.
Embargos de declaração. Omissão, contradição ou obscuridade. Não ocorrência. Desconsideração da personalidade jurídica. Inviabilidade. Incidência do artigo 50 do CC/02. Aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Alcance do sócio majoritário. Necessidade de demonstração do preenchimento dos requisitos legais.
1) Ausentes os vícios do artigo 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração. 2) A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pelo recorrente em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial. 3) A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro, prevista no artigo 50 do CC/02, consagra a teoria maior da desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva. 4) Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (teoria maior subjetiva da desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (teoria maior objetiva da desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. 5) Os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio majoritário ou controlador. 6) Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido” (grifo do autor).
Insta salientar que o Código de Processo Civil prevê no artigo 794, §1º, que quando o sócio é responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, ele tem o direito de exigir que excuta primeiro os bens da sociedade
Já no âmbito do Direito Tributário, a desconsideração da personalidade jurídica, apesar de muitos doutrinadores rechaçarem a aplicabilidade nessa seara, é perfeitamente aplicável, pois não há o que se falar em violação do princípio da legalidade estrita, visto que a aplicação do CPC é excepcional e subsidiária, conforme previsão no Código Tributário Nacional, bem como na Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980) quando em seu primeiro artigo profere:
“Artigo 1º — A execução judicial para cobrança da dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios e respectivas autarquias será regida por esta lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil“ (grifo do autor).
A lei é clara ao prever a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. Tal entendimento é corroborado pelo artigo 4º, §2º, onde afirma-se que a dívida ativa da Fazenda Pública aplica às normas, em primeiro lugar, a tributária, depois civil e comercial:
“Artigo 4º — A execução fiscal poderá ser promovida contra: (…)
§2º. À dívida ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial”.
Importante dizer que, sem contar que no Código Tributário Nacional a previsão de possibilidade de desconsideração está prevista nos artigos 134 a 137, ou seja, como já mencionado, existem regras específicas para desconsiderar, tanto na LEF quanto no CTN.
Mas é possível que haja casos em que não caberá fundamentar nas regras tributárias por não haver os requisitos, por exemplo: certidão de dívida ativa que não tem nome dos sócios e se quer considerar, mas pelo CTN não é possível (não obstante a possibilidade das autoridades fiscais poderem alcançar a desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, o fato é que muitas das vezes a desconsideração é pleiteada somente na esfera judicial, uma vez que só com o desenvolver da marcha processual são detectados indícios do uso abusivo da personalidade jurídica). E, para continuar o processo do exemplo na esfera judicial, aplicaria subsidiariamente o CPC.
Gomes (2018) [1] faz uma perfeita conclusão do assunto em questão, apreciemos:
“O ordenamento jurídico está em constante evolução, de forma que os operadores devem, nas lições do professor Carlos Maximiliano, interpretar o texto legislativo de maneira inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência ou conclusões inconsistentes e impossíveis.
Entender que o novo instituto não tem aplicabilidade na seara tributária é desconsiderar por completo a evolução do Direito e negá-lo na sua própria essência”.
De pronto, notemos que não seria problema algum o uso do CPC subsidiariamente quando verificadas hipóteses que não caberiam no CTN e LEF, portanto, é inegável o uso da desconsideração da personalidade jurídica aos processos da seara tributária.
É primordialmente, por oportuno, justificável o título veiculado neste artigo em função da possibilidade de aprofundar a análise de diversas legislações, enxugando-as, compactando-as, trazendo de um lado a desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal e, do outro, a novel redação do CPC/15 sobre o mesmo tema, de forma que um trabalho dessa envergadura desnuda, com afinco, as diversas incompatibilidades geradas a partir da aplicação, de uma ou outra, legislação no caso concreto. Notadamente ganha o mundo jurídico e o estrato social com essa análise.
[1] GOMES, Renato Rodrigues. A desconsideração da pessoa jurídica no processo de execução fiscal. Consultor Jurídico: 7 de jun de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-07/renato-gomes-desconsideracao-pessoa-juridica-execucao-fiscal>. Acesso em: 14/3/2020.
Por Caroline Barros Olah e Horacio da Silva
Caroline Barros Olah é assessora jurídica na PGM de Maceió e pós-graduada em Direito Público pelo Cesmac.
Horacio da Silva é pós-graduado em Direito Público pelo Cesmac.
Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-out-26/opiniao-cpc2015-acoes-execucao-fiscal