A mais recente polêmica no direito tributário reside em determinar o alcance do novo artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no que se refere ao lançamento fiscal. O dispositivo tem como objeto a “revisão quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”. Esta revisão “levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”.
O parágrafo único considera como orientação geral, além dos atos normativos e das práticas reiteradas, também a “jurisprudência majoritária” – é neste último ponto que o art. 24 efetivamente pretende inovar no ordenamento tributário, pois o art. 100 do Código Tributário Nacional (CTN) já contempla os atos normativos e práticas reiteradas, prevendo as consequências de sua observância pelo contribuinte.
O que se pretende é uma vinculação plena da autoridade administrativa à jurisprudência pretérita
O art. 24 da LINDB não se adapta ao peculiar procedimento de constituição do crédito tributário. Aqueles que defendem o contrário ainda não se desincumbiram de definir, no âmbito do lançamento fiscal: Qual seria o ato de revisão a que a Lei se refere? Qual seria o ato revisto? Qual seria a situação plenamente constituída, cuja invalidação é vedada? De qual época será a jurisprudência majoritária a ser considerada?
Qualquer tentativa de realizar a subsunção dos atos do Processo Administrativo Fiscal (PAF) ao texto legal, de maneira coerente e respeitando as demais normas do ordenamento, levará a situações absurdas, contrassensos e inclusive inconstitucionalidades.
Isto porque o que se tem pretendido é uma vinculação plena da autoridade administrativa à jurisprudência pretérita. Não é isso que o art. 24 determina.
A expressão “levará em conta as orientações gerais da época” não tem esse alcance, nem essa pretensão. A expressão indica, na realidade, que a autoridade julgadora deverá sensibilizar seu critério de decisão pela circunstância de que houve, antes, orientações divergentes.
Isto, todavia, só interfere onde há espaço para juízo discricionário do aplicador da lei tributária (por exemplo, onde a lei permita a gradação de multa). O CTN qualifica o lançamento como atividade vinculada e obrigatória. Assim, as orientações gerais da época jamais poderão obrigar a decisão do Fisco ou do julgador no sentido de ter ocorrido o fato gerador ou não; de ser devido o tributo ou não; de ter havido infração tributária ou não. Violaria o próprio exercício da competência.
No direito, é conhecida a máxima segundo a qual norma geral (como a LINDB) não se sobrepõe à norma especial.
Neste sentido, não parece possível que a autoridade administrativa possa, sem violar diversas normas específicas que regem o direito tributário, concluir pela ocorrência do fato gerador e, ao mesmo tempo, afastar a tributação, sob suposta autorização do art. 24 da LINDB.
Cite-se, por exemplo, o art. 150, § 6º da Constituição Federal, que define que toda supressão de tributos ou anistia de multas fiscais há de ser objeto de lei específica. Portanto, se a decisão é pela ocorrência do fato gerador, a exclusão do tributo ou da multa não poderá decorrer de lei geral, como é a LINDB. Tampouco é possível afastar a incidência de multa e juros fora das hipóteses do art. 100 do CTN, se a lei assim não determina expressamente.
Nem caberia afirmar que o art. 24, implicitamente, elevou a jurisprudência majoritária ao status de decisão normativa, nos termos do art. 100, II. Basta ver que do art. 103, II, do CTN, se infere que as decisões normativas dependem de publicação para entrar em vigor. Pergunta-se: quando se daria essa publicação no caso da fluida e etérea jurisprudência majoritária? Sem a publicação de um hipotético compêndio que a caracterize e dê publicidade, a suposta decisão normativa jamais entrará em vigor. Aliás, a problemática definição do termo “jurisprudência majoritária” demandaria um capítulo à parte.
Na prática, o que se tem buscado extrair do polêmico art. 24 da LINDB é uma regra geral, imperativa e automática, de modulação de efeitos no caso de alteração de jurisprudência – um arremedo mal feito e piorado do art. 927, § 3º do Código de Processo Civil, que dá apenas aos Tribunais, e em caráter excepcional, a iniciativa da modulação, quando assim impuserem critérios de interesse social e segurança jurídica. Não é isso que o art. 24 veicula.
Não se está, aqui, a negar a possibilidade de que venham leis para regular os efeitos da mudança de jurisprudência no PAF. O que se defende é que a hipotética norma teria que ser pensada especificamente para o sistema tributário e seus subsistemas, respeitando suas peculiaridades, avaliando seus efeitos, e respeitando a reserva de Lei Complementar, onde necessário. O que não se afigura possível, nem razoável, é forçar a aplicação, ao PAF, de norma que se pretende genérica, mas que a ele simplesmente não se ajusta.
Por Rodrigo de Macedo e Burgos
Rodrigo de Macedo e Burgos é procurador da Fazenda Nacional
Fonte: Jornal Valor Econômico-27/09/2018