“O arrolamento de bens e direitos no âmbito fiscal tem despertado interesse em face da recente atitude da Receita Federal de recuperar elevados créditos tributários ainda não pagos e que, somente no ano passado, representavam a cifra de quase cento e cinquenta bilhões de reais. Por isso, o assunto ganhou relevo tanto em posicionamentos administrativos fiscais quanto na formação da jurisprudência decorrente de litígios judiciais, bastando citar como exemplos a orientação administrativa segundo a qual “o arrolamento de direitos decorrentes de contrato de compra e venda com alienação fiduciária deve subsistir ainda que a propriedade do bem venha a se consolidar na pessoa do credor fiduciário”, e o entendimento jurisprudencial no sentido de que “a suspensão da exigibilidade do crédito tributário superior a quinhentos mil reais para opção pelo Refis pressupõe a homologação expressa do comitê gestor e a constituição de garantia por meio do arrolamento de bens”.
Esse modo de proceder da Administração Fiscal indica uma provável tendência do uso mais intenso de dois apetrechos legais existentes há tempos, mas até então manejados com parcimônia, quais sejam, o arrolamento administrativo fiscal e a medida cautelar fiscal, ferramentas essas que trazem em suas engrenagens nítidos mecanismos de garantia do crédito tributário, e em maquinaria diversa da execução fiscal, eis que, tanto no arrolamento fiscal quanto na medida cautelar fiscal se tem uma espécie de preparação ou antecipação do momento em que a ordem jurídica impõe a imobilização de bens ou direitos do contribuinte ou do responsável tributário para a plena satisfação do crédito, e essa ocasião se dá justamente quando do ajuizamento da execução fiscal. É certo que o percurso entre o nascimento e a extinção da obrigação tributária, com os diversos momentos de exteriorização dessa relação jurídica – fato imponível, lançamento, constituição do crédito etc –, impõe a previsão de garantias para o pleno cumprimento dessa obrigação. Entretanto, nessa trajetória, existe um constante embate: de um lado, o Fisco, em busca de meios que assegurem a plena realização de atos visando a satisfação do crédito tributário; e de outro, o contribuinte, almejando uma espécie de imprecaução, ou seja, a não permissão de exagero na fixação dessas garantias.
É de se presumir, pois, que o contribuinte há de lutar pela fixação de critérios de restrições da garantia do crédito tributário, ainda mais diante desse quadro de múltiplos atos com que se assegura o cumprimento da obrigação tributária, e que surgem antes e durante a execução fiscal, seja no âmbito administrativo ou na esfera jurisdicional.
Daí porque utilizo como fonte metafórica desse cenário a música destacada no início deste texto, onde a personagem que se encontra no “salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas”, de repente se vê naquela “casa de espelhos”, e justamente ao perceber várias projeções de seu rosto em razão de tantos espelhos, realiza um jogo mental de falso desdém em multiplicidade, e finge que finge que finge não se achar tão bonita assim. É o caso do responsável pelo adimplemento do crédito tributário, esse alguém que se vê numa espécie de casa dos espelhos, a refletir mágoas geradas pelas múltiplas imagens das garantias, notadamente aquela mirada sob o título de arrolamento fiscal. Analisar como seria possível viabilizar critérios de limitação dessas garantias, eis o propósito deste trabalho.”
Mantovanni Colares Cavalcante é Mestre em Direito Público – UFC/CE, Doutor em Direito Tributário – PUC/SP, Professor Conferencista do IBET e Juiz de Direito de Vara da Fazenda Pública.