Com o intuito de dar um basta à guerra fiscal no âmbito do ICMS – competição predatória entre estados e Distrito Federal (DF) e que decorre da concessão de benefícios ao arrepio de convênio celebrado no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) – vieram à lume a Lei Complementar 160/17, o Convênio ICMS 190/17 e a Resolução Conjunta PGE/SP Nº 1, de 07.05.19.
Mediante atendimento a específicos requisitos, aludidas normas facultaram às unidades federativas (i) a remissão (‘acerto do passado’) de créditos tributários irregulares, constituídos ou não, relativos a benefícios instituídos até a publicação da LC 160/17 (8.8.18); e (ii) a reinstituição dos créditos remidos e em vigor até 8.8.19.
Apesar dos aspectos positivos da legislação em comento – flexibilização da regra do quórum em convênio, ‘acerto do passado’, prazo de fruição de benefícios, extensão e adesão aos incentivos –, as novas normas poderão trazer incertezas jurídicas ao contribuinte do ICMS, além de novos desdobramentos ao conflito.
A remissão implicará em desprestígio ao contribuinte que agiu em consonância com a legislação. É o caso daquele que, diferente de seus concorrentes, não se apropria integralmente do crédito do ICMS destacado na nota fiscal (NF), pela ciência de que, em razão da existência do benefício irregular, apenas parte da carga tributária informada na NF foi efetivamente suportada pelo fornecedor da mercadoria. A vedação legal ao aproveitamento extemporâneo do crédito do ICMS, à restituição ou à compensação do tributo desprestigia quem agiu com lisura (boa-fé) e acentua o desequilíbrio concorrencial.
Vários estados divulgaram, na imprensa oficial, relação de atos normativos instituidores de benefícios fiscais unilaterais (irregulares), além de efetuarem o registro e depósito.
O registro e depósito dos documentos comprobatórios dos atos normativos e concessivos dos benefícios (estes últimos, endereçados ao contribuinte individualmente ou de forma mais generalizada, ainda que delimitada, como a específico setor econômico) é publicado no Portal Nacional da Transparência Tributária (PNTT), da Secretaria Executiva do Confaz.
Não raras são as críticas ao fato do PNTT, disponibilizado no site do Confaz, conter informações e documentos de acesso reservado às administrações tributárias das UF.
À sociedade deve ser assegurado direito ao pleno conhecimento do que renuncia, inclusive para averiguar se se justifica específica abdicação para setor econômico em particular.
Mas não é toda informação contida no ato concessivo que deve ser tornar pública, sob pena de exposição da estratégia de crescimento e da saúde financeira da empresa.
Penso que (i) não se deve exigir a publicidade: do número de funcionários empregados pelo contribuinte, mesmo que a garantia de geração de emprego condicione a concessão do benefício; do ato concessivo que autorize a suspensão de atividades da empresa em situação delicada, sem que a mesma perca o benefício; (ii) devem ser públicos: os atos que concederam a fruição de benefício a partir de determinado momento (data da primeira emissão da nota fiscal de venda de produto acabado, p.ex.) ou que estenderam a fruição do benefício para prazo maior (15 para 25 anos, p.ex.); e (iii) não deve ser objeto de convalidação (sequer há que se cogitar de publicidade): os apoios locacional e de infraestrutura ao contribuinte, ainda que inseridos em programa criado por ato normativo com apoio fiscal (suavização da carga tributária).
O acesso público de todo conteúdo do ato concessivo poderá expor dados sigilosos do contribuinte, notadamente quando a concessão do benefício estiver atrelada a requisitos de várias naturezas (investimento em meio ambiente, tecnologia, nível de emprego, etc.). O dissabor do contribuinte que vê negado pedido de transparência de concorrente poderá, somado a outros fatores, despertar interesse na atuação em outra UF, acirrando o conflito.
A divulgação de informações, sob a assertiva de atendimento à transparência do registro e depósito requer, portanto, cautela.
Quanto à reinstituição, são estabelecidos diferentes prazos máximos de fruição do benefício (chegando até 31.12.32), conforme a atividade realizada.
Não é tarefa simples o enquadramento da atividade do contribuinte no setor da economia descrito em lei, para definição do referido prazo. Há dificuldade, p. ex., na compreensão dos vocábulos ‘fomento’ e ‘incremento’, ambos voltados às atividades portuária e aeroportuária e cada qual com seu prazo máximo de aproveitamento do benefício reinstituído (até 31.12.25, para o ‘incremento’, e até 31.12.32, para o ‘fomento’). Assim, a UF ‘A’ poderá enquadrar o contribuinte ‘A’ como ‘fomento’ (prazo máximo de fruição mais longo), enquanto a UF ‘B’ poderá enquadrar o contribuinte ‘B’ como ‘incremento’, não obstante os contribuintes ‘A’ e ‘B’ exerçam a mesma atividade. A situação gerará insatisfação do contribuinte ‘B’ em relação à UF ‘B’ e, desta, em relação à UF ‘A’. A falta de critério das UF poderá culminar na migração de empresas para outra UF, revelando nova faceta da guerra fiscal. Até o momento, há mais de 380 contestações de UF junto ao Confaz relativas a enquadramentos de atividades. Além disso, não há que descartar eventual sobrevida aos referidos prazos. Plenamente possível a extensão dos termos finais de fruição, com o consequente aumento da renúncia fiscal.
Não é plausível o enquadramento de contribuinte no segmento do comércio (prazo máximo de fruição de benefício inferior à indústria), se o mesmo, antes da venda das mercadorias, as industrializa. Deve ser considerada a atividade do contribuinte de forma global, como um todo.
A ‘cola regional’ é a adesão do benefício concedido ou prorrogado por outra UF da mesma região geoeconômica. A condição (mesma região) é controversa porque a curta distância entre players (estabelecimentos separados por alguns bairros, p.ex.) pode ser suficiente para que estejam localizados em diferentes Estados e, mais do que isso, em distintas regiões, o que impedirá a ‘cola’ e prestigiará o desequilíbrio concorrencial. Não pode ser permitida a cola cumulativa (somatória de adesões para que o contribuinte aproveite diferentes benefícios de terceiros).
A ‘extensão’ busca a isonomia tributária, uma vez que consiste na ampliação do benefício para outros contribuintes localizados no mesmo território da UF que concedera a desoneração tributária. Para tanto, os contribuintes devem se encontrar ‘sob as mesmas condições’.
A expressão, vaga, permite ampla margem de liberdade de atuação às UF, gera insegurança ao contribuinte, além de fragilizar a relação entre os entes tributantes. Em termos concretos, o Decreto (SP) nº 63.342/18 estendeu crédito presumido de ICMS na carne bovina para o pescado em operações internas, sob a alegação de que ambos dizem respeito à proteína animal. Com a devida vênia, não vejo existência de circunstâncias semelhantes (‘mesmas condições’) entre contribuintes que comercializam um e outro produto. Outras UF, que comercializam pescado para o Estado de São Paulo, poderão questionar o Decreto que estendeu o benefício. Talvez seja mais adequado interpretar ‘sob as mesmas condições’ como ‘mesmo produto’, evitando novos contornos da guerra fiscal.
A Resolução Conjunta PGE/SFP nº 1, de 07.05.19, trata dos procedimentos para o reconhecimento de créditos do contribuinte adquirente paulista, decorrentes de operações com benefícios concedidos em desacordo com a Constituição Federal de 1988 (art. 155, § 2º, XII, ‘g’) e a Lei Complementar 24/75. Para tanto, o contribuinte deverá formular pedido de verificação de reconhecimento dos créditos do ICMS (Anexo da Resolução), além de renunciar expressamente à Defesa/Recurso em processos administrativo e judicial e desistir daqueles já interpostos.
Constará do pedido informações atinentes (i) aos atos normativos e concessivos relacionados ao benefício concedido; (ii) ao ato (publicado na imprensa oficial) que relaciona o referido ato normativo; e (iii) à comprovação de registro e depósito dos atos normativos na Secretaria Executiva do Confaz, nos termos da LC 160/17 e do Convênio ICMS 190/17.
Enquanto não for analisado, o pedido suspende o julgamento do processo (acusações fiscais relacionadas à guerra fiscal), o encaminhamento para inscrição em Dívida Ativa e o prosseguimento de ação judicial, conforme o caso.
A Resolução deve ser interpretada de forma teleológica, alcançando o espírito da LC 160/17 e do Convênio ICMS 190/17 consistente no fim da competição nociva entre as UF.
Nesse sentido, apesar da norma fazer menção a benefícios fiscais decorrentes de ‘operações’, o pedido contido em seu anexo também alcançará o crédito apropriado pelo tomador de serviço tributado pelo ICMS (serviços de transporte intermunicipal, interestadual e de comunicação). Igualmente, abarcará o ICMS-ST que o Estado de destino cobra do substituto tributário que se aproveitou de benefício concedido unilateralmente no Estado de origem e vendeu mercadoria em operação interestadual (hipótese das montadoras de veículos autuadas).
Por Eduardo Soares de Melo
Eduardo Soares de Melo é advogado do Honda, Teixeira, Araujo, Rocha Advogados, professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e juiz da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-set-09/opiniao-novas-dimensoes-guerra-fiscal-incertezas-juridicas