A grande problemática do ICMS-ST tem sido, ao longo do tempo, a questão de saber se somente a não realização do fato gerador enseja a restituição prevista no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88, ou se a venda da mercadoria com preço inferior àquele estabelecido pela autoridade administrativa também gera esse direito.
Como todos sabem, a questão havia sido debatida no STF por meio da ADI 1.851/AL (rel. min. Ilmar Galvão), julgada em 2002. Nessa oportunidade, entendeu o tribunal que somente a não realização do fato gerador garantia o direito à restituição. O argumento central era a questão da eficiência e praticidade: deveria ser assim porque os estados não possuem capacidade de averiguar individualmente todas as operações sujeitas ao ICMS-ST.
A decisão, de certa forma, já nasceu “prejudicada”, uma vez que em 1995 e 1996, respectivamente, os estados de São Paulo e Pernambuco instituíram em suas legislações o mecanismo de devolução do imposto, mesmo no caso de venda inferior àquele estabelecido pela autoridade fiscal. Ou seja, demonstraram que tinham, sim, condições de fazer a verificação individual. Outros dois estados do Sul seguiram a mesma linha.
A questão ficou mal resolvida e não foi por outra razão que, em outubro de 2016, o STF revistou o assunto e alterou seu entendimento, quando do julgamento do RE 593.849/MG (rel. min. Luiz Edson Fachin), com repercussão geral. O tribunal passou a entender que a restituição ocorre tanto no caso de não realização do fato gerador quanto no de venda a menor.
Após a derrota, inconformadas, algumas Fazendas passaram a exigir a aplicação do artigo 166 do CTN aos pedidos de restituição.
A questão que passo agora a debater é se o artigo 166 do referido diploma se aplica ou não aos casos de pedido de restituição do ICMS-ST com fundamento no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. Veja que a discussão não é sobre qualquer pedido de restituição do ICMS-ST, mas somente aquele com fundamento no dispositivo constitucional citado.
Essa distinção é relevante. De fato, há no STJ algumas discussões sobre a devolução de ICMS recolhido sob a sistemática da ST, mas que não se relaciona à restituição imediata e preferencial tal como disposta no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. É o caso, por exemplo, da discussão sobre a restituição solicitada pelos contribuintes em virtude da majoração da alíquota de ICMS no estado de São Paulo, de 17% para 18%, que foi afastada pelo STF. A título de ilustração: REsp 447.704/SP, rel. min. Eliana Calmon, DJ 11/10/2004; REsp 464.417/SP, rel. min. Teori Zavascki, DJ 23/8/2004. Nesses casos, o STJ entendeu que o artigo 166 do CTN é aplicável.
No entanto, não se pode estender indistintamente esse entendimento à hipótese de restituição prevista no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. Há particularidades nessa restituição que não se encontram em outros pedidos de restituição do ICMS. Esse é outro ponto que merece destaque.
Há na jurisprudência do STJ precedentes mais antigos e mais recentes que fazem um tipo de “aplicação automática” do artigo 166 do CTN toda vez que se está diante de um pedido de restituição de ICMS. São casos que não analisam as particularidades da discussão colocada. Todavia, essa “aplicação automática” vendo sendo mitigada pelo próprio STJ. É o caso, por exemplo, da discussão sobre a devolução do ICMS-ST incidente sobre mercadorias dadas em bonificação, debatida no REsp 1.366.622/SP, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho. Nesse caso, dadas as particularidades da situação colocada, o tribunal entendeu por afastar a aplicação do artigo 166 do CTN.
No caso da restituição do ICMS-ST com base no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88, há também particularidades que devem ser analisadas, para identificar se o artigo 166 do CTN é ou não aplicável. Por exemplo, veja que nesse caso o pedido de restituição não decorre de um pagamento a maior, mas de uma venda inferior ao preço presumido. Ou seja, a restituição não é de uma quantia que o contribuinte pagou a mais. O imposto também não é pago pelo próprio contribuinte, mas pelo responsável pela cadeia anterior. Em suma, há particularidades que devem ser consideradas.
Pode-se contar mais de 70 acórdãos em que o STJ debate a aplicação do artigo 166 do CTN aos pedidos de restituição do ICMS recolhido pela sistemática da ST. Mas há apenas 17 acórdãos que tratam especificamente do pedido de devolução com base no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. Desses 17, em 11 deles o STJ faz a “aplicação automática” do artigo 166 do CTN, ou seja, não analisa nenhuma particularidade. Em apenas seis acórdãos proferidos até hoje essas especificidades foram devidamente apreciadas pelo STJ. Passo agora a uma breve análise sobre esses acórdãos.
O primeiro acórdão sobre a questão é o REsp 443.766/MG. Nesse precedente, a corte cita os Edcl no AgRg no AI 611.472/SP, que trata da restituição do ICMS majorado em 1% no estado de São Paulo, que — como vimos acima — em nada se relaciona com a restituição prevista no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. Já nesse primeiro acórdão, pode-se ler a seguinte frase: “(…) o acórdão recorrido decidiu em conformidade com a orientação jurisprudencial desta Corte (…)”. Ora, que orientação jurisprudencial é essa se se trata da primeira decisão sobre o assunto, que ainda cita um precedente que não se relaciona com a discussão? Esse é um típico caso de erro na identificação de jurisprudência.
O segundo precedente é o REsp 840.045/RJ, que cita o primeiro. O terceiro precedente é o AgRg no REsp 401.428/MT, que cita o primeiro e o segundo; cita também outras três decisões que tratam da restituição em virtude da majoração do ICMS de 17% para 18% (REsp 997.244/SP, REsp 886.034/SP e AgRg no AI 911.330/SP). O quarto precedente (AgRg no REsp 807.584/RJ) cita também apenas o primeiro. O quinto precedente (AgRg no REsp 948.984/BA) cita o primeiro e o segundo; o sexto (Edcl no RMS 30.755/PE) cita o segundo e o terceiro. O sétimo precedente (REsp 1.209.607/RJ) cita o primeiro, o segundo e o terceiro; aqui neste sétimo precedente, também pode-se ler a seguinte frase:
“(…) a jurisprudência desta Corte é no sentido de que os tributos ditos indiretos, dentre eles o ICMS, sujeitam-se, em caso de restituição, compensação ou creditamento, à demonstração dos pressupostos estabelecidos no artigo 166 do CTN”.
Ora, já estamos no sétimo precedente; em dois deles já se fala de uma jurisprudência pacífica, quando na verdade a discussão sequer foi analisada!
O primeiro precedente em que o STJ se debruçou sobre as particularidades da restituição do ICMS-ST com fundamento no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88 foi o REsp 1.250.232/PR, relatado pelo ministro Herman Benjamin. No caso, o tribunal entendeu que o artigo 166 do CTN deve ser aplicado, expondo para tanto seus fundamentos. Contudo, na referida decisão, o relator cita o AgRg no REsp 1.237.117/RJ, que trata de um pedido de restituição de PIS/Cofins; na sequência, menciona o sexto e o sétimo precedentes, acima indicados; ato contínuo, invoca também o RMS 33.026/ES, que trata da ilegitimidade de todo o regime de substituição instituído no estado do Espírito Santo; por fim, alude ao AgRg no REsp 1.168.537/RJ, que trata de um pedido de restituição de Finsocial. Neste precedente, o relator afirma: “(…) o entendimento atual e pacificado no STJ é pela aplicação do art. 166 do CTN também no caso de substituição tributária para frente, em que o valor da operação se deu em montante menor que o presumido”.
Todavia, conforme demonstrado, o REsp 1.250.232/PR é o primeiro precedente favorável à tese das Fazendas, ou seja, o primeiro precedente em que a questão é devidamente analisada, tendo sido decidido que o artigo 166 do CTN é, sim, aplicável. Mas esse precedente isolado está longe de constituir entendimento pacificado do STJ. Esse é o equívoco que deve ser afastado. Pelo contrário, o entendimento atual é favorável ao contribuinte, isto é, pela não aplicação do referido dispositivo legal. É o que passo a demonstrar.
Como dito no início, há seis precedente em que o STJ se debruça sobre a aplicabilidade do artigo 166 do CTN nos casos de substituição tributária para frente, com base no artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88. O primeiro é o AgRg no REsp 1.091.781/SP, relatado pela ministra Eliana Calmon, em que o tribunal afastou a necessidade de aplicação daquele dispositivo. Do voto, colhe-se o seguinte trecho:
“Assiste razão à parte recorrente quanto ao argumento subsidiário empregado pela Corte de origem, uma vez que no regime de substituição tributária, no qual houve o recolhimento a maior do ICMS é evidente que não há a repercussão total do tributo ao consumidor de fato, de modo que não é de se afastar a possibilidade do contribuinte de direito de postular o ressarcimento devido.
Aliás, nesse sentido o próprio comando sentencial e o disposto no art. 10, § 1º, da LC 87/96, que conferem ao contribuinte de direito (aquele que recolheu o tributo a maior diante da inexistência do fato gerador) a legitimidade para pleitear o pronto ressarcimento”.
O segundo precedente é o REsp 1.250.232/PR, já analisado acima, favorável à aplicação do artigo 166 do CTN. No voto, o ministro Herman Benjamin asseverou:
“De fato, a venda da mercadoria a preço menor que aquele presumido para fins da substituição tributária não faz concluir que o ônus econômico do tributo tenha sido suportado pelo alienante, como sustentam os recorrentes.
A redução do preço pode ter ocorrido por diversos motivos, como diminuição de custos ou estreitamento da margem de lucro por conta da concorrência acirrada. Isso não significa que o montante do ICMS cobrado não haja sido repassado ao consumidor”.
A terceira decisão é o RMS 34.389/MA, relatado novamente pela ministra Eliana Calmon. Nesse precedente, a relatora desenvolve ainda mais seus argumentos no sentido do afastamento do dispositivo legal e faz constar no voto:
“Cabe enfatizar que a hipótese dos autos não corresponde àquela em que a parte requer a devolução de crédito de ICMS (tributo indireto) embutido no preço praticado, mas incidente sobre o valor do desconto (diferença entre base de cálculo presumida e preço praticado). Para aqueles casos, em que houve a aplicação, pelo substituído, da base de cálculo presumida, não desconhece este julgador que esta Corte exige, para o reconhecimento da legitimidade, que a parte demonstre, nos autos, a inexistência de repasse do encargo tributário ao consumidor final (…)”.
A quarta decisão é também favorável ao contribuinte. Trata-se do AgRg no REsp 630.966/RS, relatado pelo ministro Gurgel de Faria. Veja-se trecho do voto:
“O indicado art. 166 do CTN, a meu sentir, não tem aplicação na espécie, porquanto inviável o repasse da repercussão econômica, e por uma simples razão, qual seja, na sistemática da substituição tributária para frente, quando da aquisição da mercadoria, o contribuinte substituído antecipadamente recolhe o tributo de acordo com a base de cálculo estimada, de modo que, no caso específico de revenda por menor valor, não tem ele como recuperar o tributo que já pagou, decorrendo o desconto no preço final do produto da própria margem de lucro do comerciante.
(…)
Acresço, ainda, que o art. 150, § 7º, da Carta Política é expresso ao assegurar “a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerado presumido”, o que, a meu ver, afasta a aplicação de dispositivo infraconstitucional tendente a limitar a fruição de direito oriundo de norma constitucional de eficácia plena”.
O quarto acórdão é também relatado pelo ministro Gurgel de Faria e igualmente favorável ao contribuinte. Dos fundamentos — replicados no sexto e último precedente (AgInt no REsp 1.426.465/PR) —, colhe-se o trecho a seguir:
“No presente caso, todavia, discute-se o direito à restituição do contribuinte substituído que praticou preço menor que o estimado. Nessa hipótese, o encargo econômico de fato assumido pelo consumidor está limitado ao valor do imposto incidente sobre a operação realmente praticada, sendo certo que o valor a maior do ICMS antecipadamente recolhido pelo substituído somente pode ser por ele absorvido”.
Como se nota, há uma falsa notícia — reproduzida sem critério em diversas decisões — de que a jurisprudência pacífica do STJ é pela aplicação do artigo 166 do CTN no caso debatido, quando na verdade é o oposto: a orientação do tribunal socorre ao contribuinte. O placar atual é de 5 (contribuintes) vs. 1 (Fazendas). É preciso que magistrados, promotores e advogados públicos e privados se atentem para esse tipo erro, que inaugura o que se pode chamar — parafraseando um conhecido termo jornalístico — de fake precedent. Para finalizar, cito trecho de um excelente artigo publicado pelo grande jurista Washington de Barros Monteiro:
“Muitas vezes, inquestionavelmente, ela [a jurisprudência] revela-se contraditória, formalista, retrógrada e mesquinha, merecendo o apôdo de SHAKESPEARE, que a comparou à Bíblia, onde o próprio diabo pode encontrar argumentos que lhe justifiquem os atos.
(…)
Essas fraquezas da jurisprudência, porque não dizer essas misérias, não lhe neutralizam, porém, seus incontestáveis méritos”[1].
[1] MONTEIRO, Washington de Barros. “Da Jurisprudência”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 56, nº 2, 1961, p. 91/92.
Por Luciano Gomes Filippo
Luciano Gomes Filippo é advogado, doutor e mestre em Direito pela Universidade Panthéon-Assas (Paris 2) e pesquisador do Instituto Superior de Ciências Sociais Políticas da Universidade Técnica de Lisboa e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal. Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e da Associação Francesa de Doutores em Direito (AFDD).
Revista Consultor Jurídico, 23 de maio de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-mai-23/luciano-filippo-falsa-jurisprudencia-artigo-166-ctn