Norma da Receita extrapola Lei do Carf ao restringir benefícios em autuações, dizem tributaristas
José Higídio
13 de agosto de 2024
Uma instrução normativa (IN) da Receita Federal publicada no mês passado promoveu novas restrições a benefícios no pagamento de autuações fiscais após condenações no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) decididas pelo voto de qualidade. E os tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o assunto apontam que as restrições são indevidas, porque vão além das previsões da Lei do Carf.
Instrução da Receita foi além das previsões da lei ao regulamentá-la
A lei em questão, sancionada em 2023, retomou, após três anos, a regra do voto de qualidade: em caso de empate nos julgamentos de disputas tributárias do Carf, o voto decisivo é do presidente da seção — posição sempre ocupada por representantes do Fisco.
Porém, o texto legal estabeleceu que, caso a disputa seja decidida pelo voto de qualidade favorável ao Fisco, as multas aplicadas no auto de infração são excluídas e a representação fiscal para fins penais (RFFP, que consiste em uma comunicação ao Ministério Público sobre possível crime tributário) é cancelada.
Já a IN 2.205/2024 restringiu essas hipóteses e determinou que elas não se aplicam a multas isoladas, aduaneiras, moratórias, por responsabilidade tributária, de existência de direito creditório e nos casos em que for constatada a decadência.
A lei também estabeleceu que a exclusão de multas e o cancelamento da RFFP valem para casos já julgados pelo Carf e ainda pendentes de análise de mérito no respectivo Tribunal Regional Federal até a data da publicação da norma — 20 de setembro de 2023. Mas a nova IN prevê que esses benefícios não se aplicam a casos julgados de forma definitiva no Carf antes de 12 de janeiro do ano passado.
Na contramão
De acordo com Daniel Ávila, sócio-diretor do escritório Locatelli Advogados, as restrições ao afastamento das penalidades estão “na contramão daquilo que foi definido para mitigar os impactos do retorno do voto de qualidade”.
Ele também critica a data de aplicação dos benefícios estipulada pela norma da Receita: “Novamente, surge no Sistema Tributário uma IN em desrespeito à lei, inovando para restringir, em vez de simplesmente instrumentalizar a lei. Sob o pretexto de regular e aclarar, na realidade, a Receita Federal distorce e limita aquilo que foi decidido pelo Poder Legislativo”.
Em artigo publicado na ConJur, as tributaristas Clara Barbosa e Letícia da Gama também ressaltaram que “a lei não estabelece limitações quanto ao tipo de multa aplicada, pelo que qualquer multa deveria ser cancelada”.
Para elas, a instrução normativa, “a pretexto de regulamentar a Lei 14.689/2023”, acabou violando seus preceitos, “retirando do contribuinte parte dos direitos que a lei já lhe havia garantido”.
Na visão das advogadas, “a legalidade de todas essas mudanças introduzidas pela IN 2.205/2024 é questionável, pois a Receita Federal não pode implementar alterações tão significativas por ato infralegal, sob pena de usurpação do Poder Legislativo e extrapolação do decidido pelo Congresso. Noutros termos, uma instrução normativa não pode ser mais dura do que a lei”.
Anete Mair Maciel Medeiros, sócia do Gaia Silva Gaede Advogados, destaca que a Lei do Carf “não discrimina quais multas seriam excluídas” em caso de decisão pelo voto de qualidade. Ela entende que “há um conflito normativo, já que a IN, a pretexto de regulamentar, extrapola o comando legal”.
“As instruções normativas possuem o dever de regulamentar leis e decretos”, explica Anete. “O que não pode ser permitido é a extrapolação, independentemente do viés, do comando legal. A instrução não pode infirmar o comando legal, tampouco conceder a mais.”
Segundo Anali Sanches Menna Barreto, sócia do Menna.Barreto Advogados, a instrução normativa “está em completo descompasso com as disposições da Lei nº 14.689/2023”.
Ela considera que a IN restringiu de forma indevida os benefícios, pois “a Receita não poderia restringir e eleger quais multas seriam passíveis de exclusão”. A advogada também vê como indevida a diminuição da data de “corte”.
Anali lembra que a instrução normativa não pode alterar o que consta da lei. “Portanto, essas restrições, por estarem em desacordo com a lei, não podem ser mantidas.”
“O regramento de uma lei até pode ser estabelecido por meio de uma instrução normativa, no entanto, ela não pode ultrapassar o limite da lei que ela visa q regulamentar”, indica a advogada. Ou seja, qualquer IN deve estar subordinada à lei que regulamenta. E qualquer restrição ao texto da lei “só poderia ser realizada por ato com força de lei”, segundo ela. Por isso, é “impossível” que uma IN “insira mudanças ou extrapole o que a lei já dispôs”.
Julgamento do STJ
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu nesse sentido ao julgar a IN que regulamentou a forma de cálculo dos preços de transferência.
“O fato de que a Lei 14.689/2023 não fez qualquer restrição quanto às multas excluídas no julgamento por voto de qualidade já induz à conclusão pela ilegalidade das restrições da IN 2.205/2024”, pontua Cristiano Luzes, sócio do Serur Advogados.
Ele recorda que “o regulamento deve se prestar à execução da lei” e “não poderia inovar ou restringir, sobretudo quando se trata de uma regra de garantia que regulamenta o in dubio pro reo em matéria de multa fiscal”.
Regras como as da IN 2.205/2024, “que estabelecem dispensa ou redução de penalidades, somente podem ser instituídas por lei”. Isso é estabelecido pelo inciso VI do artigo 97 do Código Tributário Nacional.
No caso dos efeitos temporais, Luzes vê uma ilegalidade “mais explícita”, pois a própria lei já havia determinado que as regras se aplicam a casos pendentes de julgamento nos TRFs.
“Infelizmente, esse tema continuará produzindo tensões entre a Fazenda e os contribuintes, com litígios que devem ser levados às cortes judiciais”, avalia o advogado.
Daniel Ávila também acredita que a “violação ao princípio da legalidade poderá desaguar no Poder Judiciário, que, mais uma vez, terá de impor limites às instruções normativas que extrapolam sua razão de ser”.
José Higídio é repórter da revista Consultor Jurídico.