Com o advento do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, surge a oportunidade de visitarmos e revisitarmos novos e antigos institutos processuais, inspirados nas alterações que o acompanham. Dentre eles, cumpre tratar da nova “cláusula geral de negociação processual”, prevista no artigo 190, segundo o qual “versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”.
Amparado por princípios democráticos, o CPC/15 quebrou o paradigma publicista e diminuiu o excessivo protagonismo judicial, instituindo um modelo de processo claramente cooperativo e mais adequado às peculiaridades da causa, aos litigantes e às necessidades do direito material. Inspirada no direito francês, outros países, como Itália, Portugal e Alemanha, também possuem este mecanismo de negociação que incentiva o protagonismo das partes no processo.
O CPC anterior já previa negócios jurídicos processuais típicos, que foram consideravelmente ampliados, como a instituição do juízo arbitral; a eleição convencional do foro; a fixação de calendário processual entre o juiz e as partes; a anuência das partes para que o juiz reduza os prazos peremptórios; a renúncia da parte ao prazo estabelecido exclusivamente em seu favor; a suspensão do processo pela convenção das partes; a delimitação consensual das questões de fato e de direito; dentre outros.
A Fazenda Pública é livre para realizar negócios jurídicos processuais, desde que não envolvam o crédito tributário em litígio
Porém, os negócios jurídicos atípicos passaram a existir no ordenamento jurídico brasileiro apenas com o advento do CPC/15, não havendo uma prévia estipulação quanto aos direitos, os ônus, as faculdades e os deveres que podem ser convencionados. O legislador também não previu o alcance nem os limites desses negócios jurídicos processuais.
A questão que se levanta é a possibilidade de aplicação da cláusula de negociação processual nas lides que envolvem a Fazenda Pública em matéria tributária. Um primeiro óbice poderia ser levantado por uma interpretação mais restritiva é que, tratando-se o direito tributário de matéria de ordem pública e considerando-se o princípio (não positivado) da indisponibilidade do interesse público, vedada estaria a sua aplicação em matéria tributária.
Ocorre que o objeto da negociação processual não é o mérito da causa (relação jurídica material), que em matéria tributária configuraria verdadeira transação com o crédito tributário, mas sim a relação jurídica processual, que envolve os “ônus, poderes, faculdades e deveres” das partes em juízo. Ademais, o princípio da supremacia do interesse público não impede que, em determinados casos, esse interesse se confunda com o interesse particular, hipótese em que o princípio da eficiência pública tornaria imperativa a utilização da cláusula de negociação processual.
Ademais, mesmo em se tratando de interesse público, diversos são os casos em que a legislação credenciou o ente público a realizar transações sob o pálio do mesmo princípio. Basta citar a possibilidade de acordo em contratos administrativos (Lei n° 8.666/93, artigos 65 e 79), os acordos perante o Cade (artigo 53 da Lei Federal n° 8.884/94), bem como os acordos de leniência (Lei n° 12.846/13) e colaboração premiada (Lei n° 12.850/13). Se já eram possíveis em âmbito administrativo, também devem ser permitidos no Judiciário, onde não se exige sequer a homologação judicial. Bem por isso foi aprovado o Enunciado n° 256 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”.
Dessa forma, a Fazenda Pública é livre para realizar negócios jurídicos processuais, desde que não envolvam o crédito tributário em litígio. Assim, por exemplo, poderia a Fazenda Pública: dispor sobre os bens a serem aceitos em garantia da execução fiscal; sobre a forma de apuração da responsabilidade tributária dos sócios nos autos da execução fiscal, diferentemente do regramento previsto nos artigos 136 a 137 do CPC/15; sobre a forma de penhora e apuração do faturamento da empresa quando cabível, de forma a não se impedir a atividade econômica do contribuinte; sobre o reconhecimento do pedido em caso de tese firmada em sede de recurso repetitivo, aguardando-se eventual modulação efeitos, hipótese em que, exemplificativamente, poderia se dar a sentença quanto ao mérito principal, ressalvada a apreciação do direito à compensação após análise de eventual pedido de modulação de efeitos nos tribunais superiores (nesse sentido já dispõe, inclusive, a Lei n° 10.522/02 no âmbito federal), dispensando-se o recurso para instância superior; dentre outras possibilidade que a prática, com o tempo, irá nos apresentar.
O que não se pode e perder a oportunidade de acompanhar a evolução do direito para manter o apego a velhos dogmas que não mais se sustentam, como a velha dicotomia entre direito público e privado, e interesse público e particular, como se fossem coisas opostas e inconciliáveis. A sociedade moderna, cada vez mais complexa, requer do direito instrumentos mais flexíveis e adaptáveis, sendo que a participação da sociedade no processo por meio de institutos consensuais proporciona não apenas a solução da lide, mas a pacificação daqueles que participaram do processo na consciência de realmente terem contribuído para o seu resultado, ainda que, eventualmente, contrário aos seus interesses.
Por Camila Rodrigues e Marcelo Campos
Camila de Souza Rodrigues e Marcelo Hugo de Oliveira Campos são, respectivamente, sócia no escritório Anacleto Rodrigues Advogados, especialista em direito público pela PUC-MG e mestranda pela Faculdade de Direito Milton Campos; e sócio no escritório Henriques Advogados, diretor do Instituto Mineiro de Direito Tributário (IMDT) e mestrando pela Faculdade de Direito Milton Campos.
Fonte : Valor – 16/04/2018