Em junho foi publicada a Portaria PGFN 360, dispondo sobre a celebração de negócios jurídicos processuais (NJP) no âmbito da Procuradoria da Fazenda Nacional. A figura dos negócios jurídicos processuais ganhou força com a vigência do novo Código de Processo Civil. No seu artigo 190, o código prevê a cláusula geral de negócios jurídicos processuais; no artigo 191, dispõe sobre o acordo para o calendário processual; e ainda diversos outros dispositivos confirmam a presença dos princípios da cooperação e do princípio dispositivo como bases do sistema processual brasileiro. Mas, ao passo em que a medida é desejável e oportuna, requer também a correta compreensão sobre seus limites e possibilidades.
Não é a primeira vez que o órgão demonstra inclinação pela consensualidade. A Portaria PGFN 502/2016 disciplinou casos de dispensa da atuação contenciosa em casos definidos. Já a Portaria PFGN 985/2016 tratou dos negócios jurídicos entre os órgãos da Procuradoria e autoridades judiciárias, basicamente com o objetivo de racionalizar e otimizar a atuação em demandas de massa. Mas, até então, não havia regulamentação sobre os NJPs entre as unidades da PGFN e os contribuintes. A Portaria PGFN 360 vem atender a esse propósito.
A partir de agora está formalmente autorizada a celebração de acordos acerca de questões estritamente processuais, envolvendo, entre outros, prazos e formas de cumprimento das decisões judiciais, validação de memórias de cálculo, recursos e desistências processuais. De outro lado, a portaria veda expressamente acordos que envolvam a atuação de outros órgãos estatais sem a sua respectiva anuência; que constituam penalidades ao contribuinte; que disponham sobre o direito material da União ou gere custos adicionais; ou, enfim, que extrapolem os limites do artigo 190 e 191 do Código de Processo Civil.
Mas o que seria precisamente o “direito material” da União? O direito material do contribuinte seria negociável? É certo que os negócios jurídicos processuais são válidos em processos sobre direitos disponíveis e se restringem aos atos processuais (artigo 190, CPC), e numa análise rápida poder-se-ia concluir que qualquer acordo seria válido da perspectiva do contribuinte, e somente o crédito da União seria indisponível. Contudo, se a legalidade não permite a disponibilidade sobre o crédito por parte da Fazenda, a legalidade também não permite a celebração de negócios processuais que impliquem distorções de aspectos da regra-matriz tributária ou das demais limitações ao poder de tributar.
Não obstante o direito patrimonial do contribuinte ser disponível, os aspectos constitutivos do crédito tributário estão sujeitos ao princípio da legalidade e, logo, não se pode considerar válido o negócio jurídico que, a pretexto de tratar de questões processuais, altere, em via transversa, a regra-matriz. Se a Fazenda não poderia de ofício praticar qualquer ilegalidade que seja, por coerência ao sistema não poderia também admitir uma ilegalidade negociada.
Questões tais como responsabilidade tributária, constrições sobre bens de corresponsáveis indevidamente incluídos na CDA, suspensão e extinção do crédito e validade formal da CDA não podem ser livremente pactuadas, a despeito da anuência do contribuinte. Tome-se o exemplo da inclusão em CDA de empresa efetivamente não responsável pelo crédito, poderia haver negócio que tenha como objeto sua permanência ou não na execução? E até mesmo firmado o negócio, poderia a empresa insurgir-se e pedir a nulidade?
Outro ponto problemático é o negócio processual sobre os cálculos. Em que consiste precisamente esse negócio? Se a PGFN não poderá dispor sobre o crédito da União, então um cálculo que apresente equívoco de valor a menor pode (e deverá) ser anulado e complementado. Mas o erro a maior poderá ser objeto de restituição pelo contribuinte? Evidente que sim. O negócio sobre o cálculo não pode ser nem maior nem menor, deve ser a exata medida do crédito válido. Logo se percebe que um acordo sobre cálculos não terá uma função prática relevante.
Não se trata de formalismo ou retórica vazia. É sensível o fato de que a Fazenda é parte que possui primeira voz no processo. A CDA, não se questiona, possui presunção de legitimidade. Essa situação, bastante particular na atuação da Fazenda, se distancia da pressuposição de igualdade entre partes e livre exercício da autonomia da vontade que sustenta o paradigma do negócio processual. É factível o risco de empresas que se vejam encurraladas por bloqueios e execuções firmem acordos processuais desvantajosos, admitindo, por vezes, a manutenção de distorções sistêmicas.
A portaria, na forma em que editada, deve ser lida com a atenção necessária e as empresas devem considerar a legalidade sobre o crédito como um “ativo inegociável”.
A dificuldade em delimitar onde se encerra o direito processual e começa o direito material certamente contribuirá para a anulação de muitos NJPs. Como sempre, a relação Fisco-contribuinte caminha a passos curtos e em vias tortuosas, não por escolha do segundo. Esperemos que a portaria alcance apenas o seu potencial facilitador, e não o complicador.
Por Cristiano Luzes e Diogo Hiluey
Cristiano Luzes é coordenador de contencioso tributário no Serur Advogados, doutorando pela PUC-SP, mestre pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Diogo Hiluey é advogado no Serur Advogados e mestrando pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-ago-16/opiniao-negocios-juridicos-processuais-espaco-legalidade