Como continuação ao artigo anterior, em que tratamos da não discriminação entre residentes e não residentes, faremos aqui uma breve análise de outra aplicação desse princípio a casos concretos.
Nos últimos anos ganhou força no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais a tese do “real adquirente”, sustentada pelo Fisco para impedir a dedutibilidade do ágio em operações de incorporação que envolvem empresas de capital estrangeiro. Argumenta-se que não seria legítima a dedutibilidade do ágio pago, pois não haveria confusão patrimonial com o “real adquirente”, que seria a empresa estrangeira. Na visão do Fisco, se os recursos empregados na aquisição vierem de empresa estrangeira, esta seria a real adquirente, e não a sociedade constituída no Brasil.
A primeira vez que me deparei com esse argumento, fiquei bastante surpresa e subestimei-o. Achei-o frágil, porque não condiz com a realidade. Em grupos internacionais é usual, até mesmo regra, o financiamento externo. Isso não faz que o banco estrangeiro ou a controladora residente no exterior sejam os “reais adquirentes” da empresa brasileira. Independentemente da origem dos recursos financeiros, a “real adquirente” é a empresa brasileira, salvo quando comprovada fraude ou simulação.
Outra falha é que esse argumento impõe tratamento mais oneroso ao capital estrangeiro. Historicamente, o Brasil incentiva investimentos estrangeiros. Até dependemos deles para aumentar a produtividade e desenvolver a infraestrutura. De acordo com relatório das Nações Unidas, o Brasil é o quarto destino de investimentos estrangeiros no mundo[1]. Em 2018, o total de investimentos diretos no país foi de US$ 738 bilhões[2].
Toda empresa que deseja expandir seus negócios precisa de capital, o qual pode ser obtido no mercado de capitais (mediante a emissão de ações ou debêntures), por um empréstimo ou por investimentos dos próprios sócios. A forma de financiamento é uma decisão econômica da empresa, que tem ampla liberdade para optar de acordo com sua conveniência.
Como mencionamos aqui, empresas estrangeiras que pretendem atuar no Brasil, em geral, constituem uma sociedade residente no Brasil, por exigência da lei, e não para efeitos de planejamento tributário.
Essas empresas brasileiras com capital estrangeiro frequentemente recorrem aos seus sócios para obter os recursos necessários para grandes negócios, seja por intermédio de aumento de capital, seja por empréstimos dos controladores. Nesse sentido, dados do Banco Central do Brasil demonstram que, em 2018, o total líquido dos investimentos estrangeiros em empresas brasileiras foi de US$ 78,2 bilhões, ou seja, 4,18% do produto interno bruto (PIB).
Obter financiamento de seus sócios no exterior para adquirir uma participação societária não é ilícito nem planejamento tributário. É ato usual de gestão que deve ser respeitado, tendo em vista a ampla liberdade e autonomia privada.
No contexto das privatizações, para fomentar a economia, foi autorizada a dedutibilidade do ágio pago nos termos do artigo 7º da Lei 9.532/97. Um dos requisitos era que o ágio tivesse como fundamento a rentabilidade futura, e outro era a “absorção do patrimônio”, ou seja, a incorporação ou fusão da investidora na investida. Não há, nem poderia, restrição legal quanto ao país de origem do capital investido.
Uma sociedade brasileira de capital estrangeiro pode, então, obter recursos no exterior, adquirir participação societária com ágio fundamentado em rentabilidade futura, incorporar a investida e amortizá-lo, tudo conforme as Leis 9.532/97 e 12.973/2014.
O fato de os recursos terem sido obtidos da controladora no exterior não afasta a dedutibilidade do ágio. A empresa brasileira de capital estrangeiro não é uma “empresa veículo”, artificial. É uma exigência das leis brasileiras. Muitas vezes o ágio é aproveitado por uma empresa brasileira operacional e atua há anos no mercado interno[3]. Atende-se, então, o objetivo de incentivar o investimento estrangeiro e fomentar a economia nacional.
Considerar como “real adquirente” a empresa estrangeira que financiou a operação implica desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade brasileira, sem nenhum amparo legal e tampouco indício de ilicitude.
Em última análise, essa “tese”inviabiliza as operações internacionais, pois nos grupos plurinacionais a origem dos recursos será um investidor ou uma instituição financeira no exterior.
Aplica-se, portanto, o princípio da não discriminação (artigo 24 do Modelo de Convenção para Evitar a Dupla Tributação e a Evasão Fiscal da OCDE), cujo parágrafo 4º dispõe:
4. As empresas de um Estado Contratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por uma ou várias pessoas residentes do outro Estado Contratante, não ficarão sujeitas, no primeiro Estado, a nenhuma tributação ou obrigação correspondente diversa ou mais onerosa do que aquelas a que estiverem ou puderem estar sujeitas as outras empresas da mesma natureza desse primeiro Estado.
A cláusula de não discriminação das controladas e coligadas prescreve que as sociedades pertencentes ou controladas por residentes no exterior terão tratamento equivalente aos das sociedades similares pertencentes ou controladas por residentes no país. Devem, então, estar sujeitas a tributo calculado sobre a mesma base de cálculo e à mesma alíquota de incidência, submetendo-se às mesmas regras para determinação do lucro tributável (com o mesmo regime de dedução de despesas, amortização, provisões e aproveitamento de prejuízos fiscais) e com direito de gozar dos mesmos benefícios e incentivos fiscais concedidos às empresas similares.
Como alertou Manuel Pires, “evita-se a discriminação entre empresas residentes, consoante a titularidade ou o controle do respectivo capital. Não se visa aqui a equiparação dos capitais estrangeiros aos nacionais ou as pessoas que detêm ou controlam o capital das empresas, mas sim evitar a discriminação entre empresas residentes do mesmo Estado”. [4]
Uma empresa brasileira com capital estrangeiro deve ter o mesmo tratamento tributário de uma empresa de capital nacional. Assim, se uma empresa que captou recursos no mercado interno para aquisição de participação societária pode deduzir o ágio, outra que obteve financiamento externo também pode.
Impedir a dedutibilidade do ágio sob o argumento de que o “real adquirente” seria a empresa estrangeira é ignorar os fatos e o contexto econômico, esbarra no princípio da não discriminação e no artigo 2 da Lei 4.131/62, que confere ao capital estrangeiro tratamento idêntico ao do nacional.
[1] Os três primeiros são Estados Unidos da América, China e Hong Kong, respectivamente. Disponível em https://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=2130
[2] Banco Central do Brasil. Relatório de Investimento Direto – novembro 2019. Disponível em https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioid
[3] Parece-nos ser o caso da Aperam Inox América do Sul S.A., antes denominada ArcelorMittal Inox Brasil S/A, Acórdão 1401.002.184; da Companhia Brasileira de Distribuição, Acórdão 1401-001.903.
[4] PIRES, Manuel. Da dupla tributação jurídica sobre o rendimento. Centro de Estudos Fiscais, p. 787. PETERS, Cees e SNELLAARS, Margreet. Non-discrimination and tax law: structure and comparison of the various non-discrimination clauses. EC Tax Review, jan/2001, vol. 10, n 1, p. 13-18.
Por Alessandra de Souza Okuma
Alessandra de Souza Okuma é doutora em Direito Tributário (PUC-SP) e advogada do escritório Dias de Souza Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-fev-06/alessandra-okuma-nao-discriminacao-aplicada-aos-casos-agio