Nos últimos anos temos percebido uma ausência de reflexão pelas cooperativas e cooperados quanto à incidência em suas operações da tributação sobre a receita bruta da comercialização, denominada popularmente de “Funrural”, prevista nos arts. 22-A e 25, da Lei n. 8.212/91, bem como art. 25, da Lei n. 8.870/94.
Como é de conhecimento, em todas estas contribuições, a incidência se dá em face da “receita bruta da comercialização”:
- agroindústria (art. 22-A, Lei n. 8.212/91): “incidente sobre o valor da receita bruta proveniente da comercialização da produção”;
- produtor rural pessoa jurídica: “receita bruta proveniente da comercialização da sua produção”;
- produtor rural pessoa física: “receita bruta proveniente da comercialização da sua produção”.
Possível, deste modo, compreender que a base de incidência se dá a partir da noção jurídica de receita bruta auferida da comercialização da produção rural ou agroindustrial.
Por sua vez, receita bruta, do ponto de vista jurídico-tributário, levando em consideração, inclusive, posicionamento do Supremo Tribunal Federal, é o ingresso financeiro de forma definitiva e incondicional decorrente de uma causa nova relacionada ao exercício de uma atividade empresarial que gere aumento patrimonial.1
Mais do que isso, tendo como premissa o expressamente disposto em referidas leis, o que há de ser respeitado dentro do princípio da legalidade2, não se trata de qualquer receita bruta, mas aquela decorrente da comercialização da produção rural ou agroindustrial.
Deste modo, há de se tributar a título de “Funrural” o resultado da comercialização, ou seja, a venda com habitualidade e intuito lucrativo de uma mercadoria. Equivale dizer: receita que tenha como causa um ato mercantil ou de comércio.
Por esta razão jurídica, entendemos que não há incidência de Funrural nas operações entre cooperados (pessoa física ou jurídica; agroindústria) e as cooperativas.
Isto porque, como veremos, as operações de entrega dos produtos agrícolas para as cooperativas por seus associados não configuram, juridicamente, uma comercialização, critério legal claramente exigido pela lei para caracterizar o fato gerador de tais contribuições.
O cooperativismo tem proteção constitucional desde o art. 5º, XVIII3, ao tratar da liberdade de associação como direitos fundamentais, como também ao direcionar o legislador no sentido de que deve estimular e apoiar esta forma de associação (art. 174, § 1º CF/88)4.
Não é por outra razão que, do ponto de vista tributário, temos o art. 146, III, “c”, da Constituição, o qual estabelece que lei complementar cuidará de estruturar normas gerais visando dar tratamento adequado ao ato cooperativo.
Tratamento adequado significa dizer que a lei complementar deve necessariamente disciplinar, do ponto de vista fiscal, os atos cooperativos, com o objetivo de propiciar a plena realização da associação por meio do cooperativismo, tornando-se um importante elemento de indução ou incentivo. A Constituição Federal reconhece no cooperativismo um direito fundamental, impedindo que a tributação dos atos cooperados seja tratada sem levar em consideração as peculiaridades que permeiam essa forma de associação, bem como o fato de que esse direito deve ser induzido e viabilizado, servindo o sistema tributário de agente para tal fim5.
Portanto, o sistema de tributação, quando cuida de disciplinar o ato cooperativo, deve ter o objetivo de viabilizar o cooperativismo, caracterizando-se mais como um elemento de incentivo ou indução do que de arrecadação, sob pena de restringir indevidamente esse direito fundamental. Bem por isso, desde a criação de leis, implantação de políticas públicas ou mesmo interpretação e aplicação dos textos normativos que disciplinam o cooperativismo, caberá sempre se pautar pela premissa de que tais medidas devem ter como fim último e mais relevante a busca pela plena e efetiva concretização daquele e nunca a restrição.
É dentro desta perspectiva, que há de se interpretar a legislação especial que trata do cooperativismo, ou seja, Lei n. 5.764/716.
Neste sentido, como elemento principal de nosso posicionamento, temos o art. 79 da Lei n. 5.764/71, o qual dispõe que atos cooperativos são “os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais”, esclarecendo, expressamente, em seu respectivo parágrafo único que ele “não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”.
A partir da interpretação de referidos dispositivos legais, é possível reconhecer que não há tributação dos resultados decorrentes da prática de atos cooperativos.
A sociedade cooperativa, na consecução de seus objetivos, ao praticar atos cooperativos, não realiza operação de mercado, compra e venda de produto ou mercadoria7.
Equivale dizer: a cooperativa exerce atividade econômica na forma da lei e conforme objeto do estatuto, sem finalidade lucrativa, prestando serviços aos seus associados, a fim de se obter proveito comum.
Em verdade, a cooperativa age como mandatária dos associados, sendo o meio para viabilizar o objetivo comum dessa união de pessoas8.
Daí por que na hipótese de atos cooperativos, os valores ingressam temporariamente na contabilidade das cooperativas, mas, como o montante auferido é de propriedade dos sócios, como repasse na proporção de sua produção, depois de realizados todos os dispêndios necessários ao exercício de sua atividade, não existe faturamento, receita, renda ou lucro. Trata-se de mero ingresso, ou seja, tais entradas não incorporam definitivamente o patrimônio da sociedade, como também não geram aumento patrimonial, no sentido de gerar riqueza nova.
De outro lado, além de não ser receita, é da essência das sociedades cooperativas a ausência de intuito lucrativo, na medida em que pratica atos cooperativos (art. 111)9.
Portanto, quando da prática de atos cooperativos, estamos diante de uma hipótese de não incidência10.
Bem por isso, é possível reconhecer como ato cooperativo aquele praticado pelas sociedades cooperativas com a finalidade de proporcionar meios a fim de tornar possível o exercício das atividades dos cooperados estabelecidas no objeto social.
Na mesma linha, é importante esclarecer que o Supremo Tribunal Federal já firmou posicionamento em sede de repercussão geral onde claramente reconhece a não incidência de tributos quando houver ato cooperativo típico:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TRIBUTÁRIO. ATO COOPERATIVO. COOPERATIVA DE TRABALHO. SOCIEDADE COOPERATIVA PRESTADORA DE SERVIÇOS MÉDICOS. POSTO REALIZAR COM TERCEIROS NÃO ASSOCIADOS (NÃO COOPERADOS) VENDA DE MERCADORIAS E DE SERVIÇOS SUJEITA-SE À INCIDÊNCIA DA COFINS, PORQUANTO AUFERIR RECEITA BRUTA OU FATURAMENTO ATRAVÉS DESTES ATOS OU NEGÓCIOS JURÍDICOS. CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE “ATO NÃO COOPERATIVO” POR EXCLUSÃO, NO SENTIDO DE QUE SÃO TODOS OS ATOS OU NEGÓCIOS PRATICADOS COM TERCEIROS NÃO ASSOCIADOS (COOPERADOS), EX VI, PESSOAS FÍSICAS OU JURÍDICAS TOMADORAS DE SERVIÇO. POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO FISCAL (ISENÇÃO DA COFINS) PREVISTO NO INCISO I, DO ART. 6°, DA LC Nº 70/91, PELA MP Nº 1.858-6 E REEDIÇÕES SEGUINTES, CONSOLIDADA NA ATUAL MP Nº 2.158-35. A LEI COMPLEMENTAR A QUE SE REFERE O ART. 146, III, “C”, DA CF/88, DETERMINANTE DO “ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO AO ATO COOPERATIVO”, AINDA NÃO FOI EDITADA. EX POSITIS, DOU PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.”11
Percebe-se, portanto, em uma análise e interpretação a contrário sensu que, onde há ato cooperativo típico (art. 79), ou seja, entre cooperativa e seus associados (cooperados), inexistiria ato mercantil e, assim, incidência de tributos vinculados ao referido aspecto material, como o é o caso do Funrural e RAT.
Daí ser possível afirmar, a partir da considerações apresentadas, de que, sendo o aspecto material do Funrural e RAT (art. 25, I e II, da Lei n. 8.212/91; art. 25, Lei 8.870/94; art. 22-A da Lei n. 8.2312/91) a comercialização de produção rural, levando em consideração o sistema normativo que rege o cooperativismo, não haveria incidência de tais tributos na operação entre cooperados e cooperativas, seja mera operação interna ou com fins de exportação, pouco importa. Ora, trata-se de ato cooperativo típico (art. 79, Lei n. 5.764/71; art. 110, CTN), não caracterizando de ato de compra e venda ou mercantil esta operação.
Convém repetir: se a legislação do cooperativismo, especialmente, art. 79 da Lei n. 5.674/71, estabelece que no ato cooperativo típico “não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”, o fato gerador que gera a incidência do FUNRURAL e RAT não se consuma, pois, nos termos da legislação, é preciso exatamente o oposto, ou seja, uma comercialização (operação de mercado compra e venda).
Ato cooperativo não é comercialização de atividade rural, de maneira que resta evidente a impossibilidade de tributação em tais operações.
Esta interpretação, inclusive, possui precedentes perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF -, seja para pessoa física, como agroindústria, a título exemplificativo:
“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA INCIDENTE SOBRE A ENTREGA À COOPERATIVA DA PRODUÇÃO RURAL DE PRODUTOR PESSOA FÍSICA. “FUNRURAL”. ART. 25 DA LEI Nº 8.212, DE 1991, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 10.256, DE 2001. ATO COOPERATIVO. AUSÊNCIA DE COMERCIALIZAÇÃO. Não há comercialização na entrega dos produtos rurais pelos segurados especiais à cooperativa (ato cooperativo), motivo pelo qual não é devida, nessas operações, a contribuição previdenciária prevista no art. 25 da Lei nº 8.212, de 1991, na redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001 (“Funrural”).12
“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIARIA. AGROINDUSTRIA. ATOS COOPERATIVOS. AUSÊNCIA DE MERCANTILIDADE. NÃO PODEM SER COMPUTADOS PARA FINS DE APURAÇÃO DA RECEITA BRUTA. Os atos cooperativos não podem ser considerados atos mercantis para fins de classificação da receita bruta para incidência das contribuições devidas pela agroindústria.”13
Da mesma forma, há decisões perante o Poder Judiciário, como é o caso do acórdão proferido pelo Tribunal Regional da 4ª Região:
“TRIBUTÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL DA PESSOA FÍSICA. EMPRESA ADQUIRENTE DA PRODUÇÃO RURAL. INEXIGIBILIDADE. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL DA PESSOA JURÍDICA. INEXIGIBILIDADE. EFEITO REPRISTINATÓRIO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO LIMITADA À DIFERENÇA. ATO COOPERADO E NÃO-COOPERADO. DISTINÇÃO. INCIDÊNCIA. (…) 7. Os atos cooperativos típicos são aqueles praticados entre a cooperativa e seus associados para a consecução dos objetivos sociais, segundo definido pelo artigo 79 da Lei nº 5.764/71. 8. Os atos não cooperativos, a contrário senso, são aqueles praticados com não associados, mas que guardam relação com os objetivos sociais da cooperativa. Na prática de tais atos a sociedade cooperativa atua como qualquer outra pessoa jurídica, devendo a receita gerada servir de base à tributação, consoante preconiza o art. 111 da Lei n.º 5.764/71. 9. A entrega da mercadoria pelo produtor rural à cooperativa, da qual é associado, não se confunde com a comercialização do produto por ela realizada, que constitui o fato gerador da contribuição previdenciária.”14
Daí ser possível concluir pela impossibilidade de tributação do Funrural e RAT sobre a receita bruta da comercialização nas operações entre cooperados (pessoa física e jurídica; agroindústria).
1 CALCINI, Fabio Pallaretti. PIS/PASEP E COFINS. TRIBUTAÇÃO DAS RECEITAS FINANCEIRAS. CONGRESSO IBET. https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Fabio-Calcini.pdf
2 CALCINI, Fábio Pallaretti. Princípio da legalidade. Reserva legal e densidade normativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
3 “XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;”
4 “§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”
5 CALCINI, Fabio Pallaretti. GUERRA, Gerson Macedo. PIS e COFINS sobre sociedades cooperativas. In PIS e COFINS na teoria e prática. PEIXOTO, Marcelo Magalhães. BERGAMINI, Adolpho. 4. Ed. São Paulo: MP, 2017. p. 1.481 e ss. Tomo 5.; BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo. 2. Ed. São Paulo: RT, 2019.; BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 4. Ed. São Paulo: RT, 2019.
6 CALCINI, Fabio Pallaretti. GUERRA, Gerson Macedo. PIS e COFINS sobre sociedades cooperativas. In PIS e COFINS na teoria e prática. PEIXOTO, Marcelo Magalhães. BERGAMINI, Adolpho. 4. Ed. São Paulo: MP, 2017. p. 1.481 e ss. Tomo 5.; BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo. 2. Ed. São Paulo: RT, 2019.; BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 4. Ed. São Paulo: RT, 2019.
7 CALCINI, Fabio Pallaretti. GUERRA, Gerson Macedo. PIS e COFINS sobre sociedades cooperativas. In PIS e COFINS na teoria e prática. PEIXOTO, Marcelo Magalhães. BERGAMINI, Adolpho. 4. Ed. São Paulo: MP, 2017. p. 1.481 e ss. Tomo 5.
8 Podem ser pessoas físicas ou jurídicas: “PIS. COFINS. ATO COOPERATIVO. PARTICIPAÇÃO DE PESSOA JURÍDICA COMO COOPERADO. NÃOINCIDÊNCIA. As pessoas jurídicas podem participar do quadro societário das cooperativas, desde que respeitados os ditames do Código Civil e da Lei n. 5.764/1971. Ato cooperado é aquele praticado entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais (artigo 79 da Lei n. 5.764/1971). A não incidência de COFINS restringe-se a atos cooperados praticados entre a cooperativa e seus associados” (CARF, 3ª Seção, AC. 3202-001.119, j. 25/03/2014).
9 “Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei”.
10 Entendemos que a não tributação de atos cooperativos configura uma não incidência tributária no sentido de que tais operações não tipificam, diante das circunstâncias e características da sociedade cooperativa e de seus atos cooperativos, tecnicamente, o aspecto material de incidência dos tributos em geral, ou seja, não é faturamento (PIS/COFINS), renda (IRPJ), lucro (CSLL). Neste aspecto, inclusive, é importante ressaltar que não poderá a legislação, com o objetivo de exercer competência tributária, alterar tais conceitos descritos pela Lei n. 5.764/71, sob pena de violação ao art. 110 do Código Tributário Nacional. Portanto, não possui a natureza de imunidade, já que o texto constitucional não impede a tributação dos atos cooperativos. Por sua vez, também não podemos reconhecer como isenção, eis que, neste caso, deveria existir a própria incidência tributária, sendo a lei o instrumento para impedir a tributação. Em síntese: os atos cooperativos são caracterizados como situações de não incidência tributária.
11 – STF, RE 598085, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-027 DIVULG 09-02-2015 PUBLIC 10-02-2015.
12 – CARF, 2ª Seção, Ac. 2301-005.151, Rel. Cons. Fabio Piovezan Boza, j. 03/10/2017.
13 – CARF, 2ª Seção Ac. 2201004.542, 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, Rel. Rodrigo Monteiro Loureiro Amorim.j. 06/06/2018.
14 – TRF4, APELREEX 5002422-42.2014.404.7203, PRIMEIRA TURMA, Relator JORGE ANTONIO MAURIQUE, j. 29/05/2015.
Por Fábio Pallaretti Calcini
Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.
Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/direito-agronegocio-nao-cabe-tributacao-funrural-entre-cooperado-cooperativas