A desoneração da folha e a correção da tabela progressiva do Imposto de Renda certamente teriam muito mais eficácia.
Recentemente, o tema da tributação da distribuição de lucros e dividendos pelo Imposto de Renda voltou a ser objeto de debate no contexto da reforma tributária e do Projeto de Lei nº 2015, de 2019, que propõe o fim da isenção instituída desde a Lei nº 9.249, de 1995. Os defensores da ideia sustentam que a distribuição de lucros e dividendos é tributada pela maioria dos países – EUA e Europa, especialmente. O argumento nos parece frágil quando analisado dentro da realidade de cada país e de seus sistemas tributários.
Primeiramente, a carga tributária incidente sobre as sociedades operacionais sediadas na maioria desses países é menor. No Brasil, o legislador optou por onerar a pessoa jurídica, isentando a distribuição dos lucros e dividendos aos acionistas, sob a premissa de que a renda já teria sido tributada quando auferida pela sociedade. Logo, parece lógico que a volta da tributação da distribuição de lucros e dividendos venha acompanhada de alguma contrapartida de desoneração da pessoa jurídica.
A desoneração da folha e a correção da tabela progressiva do Imposto de Renda certamente teriam muito mais eficácia.
A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) sustenta não haver bitributação, sob o argumento de que o lucro líquido na pessoa jurídica é menor do que o lucro tributado, em decorrência das deduções legais que permitem a exclusão de alguns valores. Entretanto, isso seria válido apenas para as empresas sujeitas ao lucro real e caso houvesse um número maior de deduções. A grande maioria das pessoas jurídicas são enquadradas nos regimes do Simples e do lucro presumido, que não permitem deduções.
O tema não é novo. A tributação da distribuição de lucros e dividendos perdurou no Brasil entre 1987 e 1995. Naquele período, era prática comum a distribuição via pagamento de juros sob o capital próprio do acionista, que possibilita a dedução da base de cálculo do Imposto de Renda no lucro real. Note-se a justificativa trazida pelo item 12 da exposição de motivos da Lei nº 9.249, de 1995, ao prever a isenção: “Com relação à tributação dos lucros e dividendos, estabelece-se a completa integração entre a pessoa física e a pessoa jurídica, tributando-se esses rendimentos exclusivamente na empresa e isentando-se quando do recebimento pelos beneficiários. Além de simplificar os controles e inibir a evasão, esse procedimento estimula, em razão da equiparação de tratamento e das alíquotas aplicáveis, o investimento nas atividades produtivas”.
O investimento nas atividades produtivas é outro elemento considerado em países que adotam essa tributação. Não se trata de regra geral. É disciplinada conforme o tipo societário e sua função preponderante. Vejamos o exemplo das holdings. A maioria dos países adota o método da isenção, tributando apenas o lucro quando distribuído aos acionistas. Outros adotam o chamado método da “imputação”, tributando o lucro apurado e permitindo a dedução como crédito do imposto pago pela sociedade operacional.
Os países que adotam o método da isenção costumam condicioná-la, essencialmente, a quatro requisitos: um período mínimo de detenção da participação societária; um percentual mínimo de participação no capital social da sociedade participada (Holanda, Bélgica e Espanha de 5% e Áustria e Dinamarca de 25%); submissão da sociedade a um mínimo de tributação, geralmente incidente anualmente à alíquota em torno de 1% sobre o valor do capital social; natureza da renda auferida pela participada, isentando apenas as rendas “ativas”, decorrentes do exercício do objeto social da empresa, e tributando as rendas “passivas”, fruto de aplicações financeiras, por exemplo. Há um verdadeiro estímulo ao reinvestimento na atividade produtiva.
Embora essa supostamente também seja a justificativa da implantação da medida no Brasil, esse objetivo terá efeito inverso se desacompanhado de racionalidade. A equipe econômica do governo federal sustenta que a tributação da distribuição de lucros e dividendos estimularia o emprego formal vis-à-vis à crescente constituição de pessoas jurídicas e admissão de colaboradores na qualidade de sócios para fins de redução da carga tributária incidente sobre a folha de salários.
Ora, não seria mais lógico desonerar a tributação sobre a folha salarial afim de estimular o emprego formal? Estudos indicam que a tributação da folha de salários no Brasil varia de 34% a 45%, incluindo as contribuições para o Sistema “S”, e sem levar em consideração a cobrança da contribuição para o FGTS, enquanto a alíquota média dos países da OCDE é de pouco mais de 18%, nos países que só financiam a Previdência e 22% nos países que financiam a seguridade social de forma mais ampla.
Tributar os dividendos aumentará a carga tributária final justamente a empresários de pequeno porte que empregam milhões de pessoas. A correlação entre a tributação e o aumento do emprego é falsa. A desoneração da folha e a correção da tabela progressiva do Imposto de Renda da Pessoa Física certamente teriam muito mais eficácia.
Contudo, é comum no Brasil a importação de regras utilizadas em outros países, sem qualquer contrapartida de estímulo a investimentos nas atividades produtivas e simplificação do sistema tributário. Uma análise mais profunda da medida dentro da experiência internacional e da realidade local não nos deixa dúvida tratar-se de um retrocesso legislativo cujo resultado será totalmente contrário ao desenvolvimento social e econômico.
FONTE: Valor Econômico – Por Daniel Cardoso – 28 de maio de 2020