O mais comum é o comprador antecipar o pagamento dos valores aos quais a parte teria direito se vencesse a disputa, com um deságio que varia entre 30% e 70%.
A crise aqueceu o mercado de aquisição de créditos e direitos vinculados a ações judiciais. Empresas e advogados passaram a olhar para esse novo segmento como uma alternativa para reforçar o caixa. Mesmo com o risco de terem que fechar contratos com deságios maiores do que os praticados em outros períodos.
“A procura se tornou gigantesca. Aumentou 600% em comparação com o período pré-crise”, afirma Rodrigo Valverde, sócio da Pro Solutti, empresa que atua nesse mercado desde 2018 e só no último mês recebeu mais de 600 ofertas.
A principal demanda, afirma, vem de advogados trabalhistas e de sindicatos. Antes de atender a reportagem, por exemplo, Valverde havia conversado com um dirigente sindical que propôs negociar os valores envolvidos em uma ação coletiva em que estão contempladas quatro mil pessoas. No mesmo dia, diz ter recebido a ligação de um advogado com cerca de 300 processos no seu portfólio.
“Para o advogado é interessante negociar porque, além de o cliente receber o dinheiro de forma antecipada, ele também recebe os honorários”, ressalta o sócio da Pro Solutti. “Pense em um advogado que vive de êxito. Agora que a Justiça está parada [prazos suspensos], ele não recebe nada. Também é um autônomo que precisa de dinheiro. ”
O mercado de compra de processos judiciais é forte em países como Inglaterra e Estados Unidos. Aqui no Brasil é visto ainda como algo novo. O impulso veio com a redução das taxas de juros. Investidores precisaram buscar operações mais rentáveis, afirmam os que decidiram apostar nesse mercado. “Quem está com dinheiro fica pensando em oportunidades”, diz Bruno Cerqueira, sócio de mercado de capitais e securitização do Tauil e Chequer Advogados.
Cerqueira acredita que a crise pode popularizar esse tipo de operação aqui no Brasil. Ele conta que, antes da pandemia, o escritório era procurado, normalmente, quando já havia uma operação fechada para a venda do crédito judicial. Agora, afirma, as consultas estão sendo antecipadas. “É feita por empresas que querem encontrar investidores e vice-versa.”
Existem diferentes modalidades de contrato. Entre as mais comuns, está a que o comprador antecipa os valores aos quais a parte teria direito se vencesse a disputa, mas com um deságio que pode variar entre 30% e 70%. Esse percentual é fixado com base nas informações do caso: se há jurisprudência favorável e quanto tempo leva, em média, para a questão ser julgada, por exemplo.
Nesse tipo de contrato, o adquirente assume o risco, ou seja, o autor da ação não terá que devolver absolutamente nada se perder o processo.
Uma outra modalidade, também bastante praticada, assemelha-se a contratos de empréstimo. O investidor antecipa o dinheiro e cobra juros durante o período em que o processo estiver tramitando no Judiciário. Se a parte perder a disputa, ela terá que pagar o que lhe foi adiantado.
O mercado brasileiro é ainda enxuto. São poucas empresas e fundos de investimentos especializados na aquisição de créditos e direitos relacionados a ações judiciais e a maioria dos que existem está focada nas grandes empresas e em disputas mais volumosas.
A Juscredi é uma delas e vem sendo procurada, principalmente, por empresas. Marcos Oliveira, o sócio-fundador, afirma que os processos de maior interesse são os que já têm jurisprudência favorável. Ele cita como um dos exemplos o que discute a responsabilidade da União no caso de controle de preços do setor sucroalcooleiro.
Estão em jogo cerca de R$ 70 bilhões, segundo a Advocacia-Geral da União (AGU). Esse caso esteve na pauta do plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) e foi suspenso por um pedido de vista.
Outro caso, afirma, é o que trata da exclusão do ICMS do cálculo do PIS e da Cofins. Está no STF há mais de 20 anos, já teve vitória dos contribuintes no mérito, mas ainda falta o julgamento de um recurso (embargos de declaração) que foi apresentado pela União.
O grupo Pão de Açúcar foi um dos primeiros a optar pela venda dos créditos fiscais decorrentes da discussão relacionada ao PIS e à Cofins. Foi em 2018. A informação foi divulgada no balanço daquele período. O ganho decorrente dessa alienação somou aproximadamente R$ 50 milhões (R$ 45 milhões sem impostos). O nome do comprador, no entanto, não foi divulgado.
“A venda é uma alternativa para as empresas reforçarem caixa e liquidez”, observa o advogado Guilherme Coelho, sócio do escritório Stocche Forbes. Ele diz que o mercado está aquecido e acredita que “deve aquecer ainda mais”. “O acesso a outros métodos de financiamento não é tão fácil”, frisa.
O sócio-fundador da Juscredi alerta, porém, que o deságio possivelmente será maior do que em outros períodos. Com o aumento da dívida pública, os compradores passaram a inserir no preço o risco de moratória por parte do governo federal. Marcos Oliveira lembra da Emenda Constitucional nº 30, de 2000, que postergou os pagamentos de precatórios.
O mercado de precatórios — diferentemente da aquisição de processos judiciais — existe há muitos anos no Brasil e é bastante consolidado. Mas, em meio à crise, vem sofrendo um efeito inverso. Há incerteza sobre os pagamentos estaduais e municipais, o que impacta de forma negativa esse mercado.
“Pode existir um alongamento considerável no pagamento”, diz Sérgio de Machado Carvalho, sócio do escritório Lefosse Advogados. Segundo ele, essa insegurança ainda não existe no precatório federal, mas, ainda assim, o valor do desconto quase dobrou.
Fonte: Valor Econômico – Por Joice Bacelo e Beatriz Olivon – 29 de abril de 2020.