O estado do Rio de Janeiro, como se sabe, atravessa uma enorme crise financeira decorrente de sucessivas administrações desastrosas, as quais não tiveram nenhum apego ao equilibro das contas públicas.
Nesse cenário, a busca incessante por novos recursos virou o lema do governo do estado. E há um setor em especial — talvez o único que ainda possa vir a movimentar a economia fluminense no curto prazo — que não sai do centro das atenções: o de produção de óleo e gás natural.
Desde de 2015, é possível identificar inúmeras tentativas de se aumentar a arrecadação por meio de novas exigências tributárias que atingem o setor em questão. Pode-se destacar, por exemplo, a edição das leis 7.182/15 e 7.183/15 — já contestadas em ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal —, que têm como objetivo a instituição tanto de uma “taxa de fiscalização ambiental” para custear as atividades do Inea (a qual, segundo estimativas que constam no projeto de lei, geraria uma arrecadação que supera em mais de 400% o atual orçamento do referido órgão estadual), quanto de valores de ICMS sobre a própria atividade de extração de petróleo pelo concessionário do campo, como se essa representasse uma operação de compra e venda entre a União Federal e a empresa responsável pela extração.
Insistindo na ideia de sufocar um dos motores da sua economia, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou, em fevereiro deste ano, o Projeto de Lei 1.029/11, que pretende instituir uma cobrança de ICMS sobre o consumo, dentro da própria plataforma, do gás natural recém-extraído pela concessionária do campo.
O mencionado projeto, que está atualmente na mesa do governador do estado para sanção, faz três inserções pontuais na Lei 2.657/96, que instituiu o ICMS no âmbito estadual:
“Art. 1º. O art. 2º da Lei nº. 2.657, de 26 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação, acrescido do inciso VII:
‘Art. 2º O imposto incide sobre:
VII – O consumo de gás natural utilizado na produção de petróleo e na manutenção dos próprios da empresa.’
Art. 2º. O art. 3º da Lei nº. 2.657, de 26 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação, acrescido do inciso XVIII:
‘Art. 3º O fato gerador do imposto ocorre:
XVIII– na utilização do gás natural para manutenção dos próprios da empresa de petróleo e na prospecção do petróleo.’
Art. 3º. O art. 14 da Lei nº. 2.657, de 26 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação, acrescido do inciso XXVI:
‘Art. 14 – A alíquota do imposto é:
XXVI – na operação de extração de gás natural: 12% sobre o preço do gás vendido pela Petrobras à CEG Companhia Distribuidora de Gás do Rio de Janeiro’
Art. 4º. Estalei entrará em vigor na data de sua publicação”.
A redação final do referido projeto de lei, como se vê, é bastante confusa. Num primeiro momento, afirma-se que o fato gerador ocorre com o “consumo” (artigo 1º) ou a “utilização” (artigo 2º) do gás natural na manutenção das atividades da empresa. Contudo, na sequência, deixa consignado que o fato gerador ocorre com a “extração” (artigo 3º) do gás natural, o que definitivamente não ajuda o intérprete na definição dos contornos da nova exação fiscal.
Há vários vícios no citado projeto de lei, a saber:
1. A Constituição Federal não outorgou competência aos Estados para instituir ICMS sobre a “extração” ou o mero “consumo” de gás natural.
Apesar da dificultosa redação do PL 1.029/11, pode-se inferir que o objetivo do legislador estadual foi tributar o consumo propriamente dito, por parte da concessionária, do gás natural recém-extraído. Apesar do seu artigo 3º se utilizar do termo “extração”, os dois primeiros dispositivos, ao definirem os elementos material e temporal do fato gerador, nos levam a essa conclusão.
De todo modo, sendo o fato gerador da exação a “extração” ou o “consumo” do gás recém-extraído, o resultado é um só: a inconstitucionalidade da cobrança. Ora, nenhuma das atividades acima está inserida na competência outorgada pela Constituição Federal aos estados para fins de cobrança do ICMS. Afinal, para que ocorra uma “operação de circulação de mercadoria”, é preciso que se verifique a existência de três elementos essenciais, os quais já foram muito bem delimitados pela doutrina e pelos nossos tribunais superiores: 1) O termo “operação” representa o ato ou negócio jurídico que tem como objeto a transferência de titularidade de determinada mercadoria; 2) o termo “circulação” representa a execução do ato ou negócio jurídico de transferência de titularidade da mercadoria, fenômeno exteriorizado pela tradição; e 3) o termo “mercadoria” representa todo o bem móvel destinado à mercancia, ou seja, oferecido à venda ou revenda.
De plano, pode-se constatar que a mera “extração” do gás natural não configura uma operação mercantil, assim como não constitui operação de circulação nos estritos termos previstos na Constituição, pois não há qualquer transferência de titularidade quando da retirada do gás do subsolo. Igualmente, não há mercadoria, na medida em que o material presente na jazida não pode ser caracterizado como bem sujeito ao comércio. Em síntese, na extração do gás, a empresa concessionária não está “comprando mercadoria” do proprietário da jazida (União), mas, sim, executando uma atividade extrativista.
Igualmente, não encontra respaldo na CF/88 a previsão do “consumo” do gás pela concessionária do campo como fato gerador do ICMS.
Isso porque não há, na hipótese, a ocorrência de uma “operação” nem “circulação” de mercadoria, tendo em vista que o gás natural, do qual a concessionária é a proprietária original, é consumido de forma imediata na própria plataforma de produção, de modo que inexiste negócio jurídico translativo da propriedade apto a atrair a incidência do ICMS (tal negócio só irá ocorrer, por óbvio, quando a concessionária do campo vender o gás extraído para terceiro).
Quando muito, o que se poderia alegar é que, no consumo do gás extraído pelo produtor, haveria um deslocamento físico da mercadoria desde o poço até os equipamentos instalados nas plataformas. Entretanto, aqui também estaríamos diante de inocorrência do fato gerador do ICMS, nos termos da jurisprudência pacífica dos tribunais superiores (Súmula 166/STJ, por exemplo).
2. Violação ao artigo 150, VI, “a”, da Constituição Federal
Caso se entenda, de toda forma, que o fato gerador do ICMS previsto na redação final do PL 1.029/11 é a “extração” do gás propriamente dita, como se tivesse sido criada, por ficção, uma operação de circulação do gás entre a União e as concessionárias, há ainda outro ponto que inviabiliza a cobrança do imposto, qual seja, a aplicação do disposto no artigo 150, VI, “a” da CF/88, que trata da imunidade recíproca (a qual é aplicável ao ICMS, conforme já decidiu o Plenário do STF na ACO 2.654-AgR).
Ou seja, mesmo que houvesse tal operação de circulação de mercadoria, o ICMS continuaria sendo inexigível, pois a propriedade do gás natural estaria sendo transferida da União (a quem cabe a propriedade das jazidas) para as empresas. Em outras palavras, quem estaria a “vender” o gás natural seria a União, fato que atrai a aplicação do citado dispositivo.
E nem se alegue que o imposto seria devido por ter a lei atribuído ao “adquirente” do gás natural a condição de responsável pelo pagamento do imposto, numa espécie de substituição tributária regressiva (o adquirente da mercadoria — concessionária — recolhendo o ICMS devido pelo transmitente — União Federal). Afinal, a simples alteração do responsável, por meio da substituição tributária, jamais poderia implicar exigência de tributo decorrente de operação considerada imune pela Constituição.
3. Ofensa ao artigo 146, III, “a”, ao artigo 155, parágrafo 2º, XII, “b” da CF/88 e ao disposto na Lei Complementar 87/96
A Constituição Federal atribuiu à lei complementar o papel de definir as normas gerais de Direito Tributário, especialmente os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos nela discriminados (artigo 146, III, “a”). A regra foi ainda reforçada para o ICMS no artigo 155, parágrafo 2º, XII, “b”, que impõe à lei complementar o dever de dispor sobre substituição tributária.
No que diz respeito ao ICMS, foi editada a LC 87/96, que assumiu, em âmbito nacional, essa função de lei de normas gerais. Contudo, não há em tal diploma qualquer menção ao fato gerador “extração” ou “consumo” do gás natural por parte do produtor (nem poderia, já que não dão início à cadeia de circulação econômica do produto), nem se identifica a hipótese de substituição tributária da União mencionada acima, o que deixa evidente a invalidade do PL 1.029/11.
4. Incompatibilidade da base de cálculo com o fato gerador
Da mesma forma, pode-se ver inúmeros vícios na base de cálculo do ICMS eleita pelo PL 1.029/11 — qual seja, “o preço do gás vendido pela Petrobras à CEG – Companhia Distribuidora de Gás do Rio de Janeiro” —, os quais se encontram detalhados abaixo:
a) Não guarda coerência com o próprio fato gerador, já que se adotou como base de cálculo o valor da operação de saída do gás do estabelecimento do concessionário para terceiro.
Caso o fato gerador seja a “extração” do gás (numa abstração de que a União “vende” o gás contido na jazida para a empresa exploradora), sua base de cálculo somente poderia ser o valor pelo qual a concessionária “compra” o gás da União, e nunca o preço pelo qual este é revendido pela empresa a terceiros (logicamente, o preço de venda da concessionária será sempre maior do que o preço da “aquisição”; afinal, para a operação comercial ser viável, seria necessário adicionar ao preço de aquisição os custos da operação e a margem de lucro).
Já se o fato gerador for o “consumo” do gás, a hipótese envolverá a utilização de mercadoria da própria concessionária (o gás já extraído das jazidas), ou seja, a base de cálculo será zero, pois a empresa não irá exigir de si mesma o pagamento pela aquisição do gás. No máximo, o que se poderia buscar é atribuir ao gás — por ficção — um valor relacionado ao custo da atividade de exploração, mas nunca o valor de venda a terceiros que pressupõe, como já dito anteriormente, o acréscimo de margem de lucro do operador.
Por isso, é certo o projeto de lei adotou por base de cálculo um conceito diverso do “valor da operação” descrito no artigo 13, I, da LC 87/96, violando os artigos 155, parágrafo 2º, XII, “i”, e 146, III, “a”, da CF/88, que reservam à lei complementar a definição da base de cálculo dos tributos, bem como o artigo 150, I, da CF/88 c/c artigo 97 do CTN, que atribui à lei o dever de coerência e harmonia entre o fato gerador e sua base de cálculo.
b) Ainda que se admita a adoção do preço da operação subsequente como base de cálculo, por que o parâmetro seria o valor praticado pela Petrobras? E se o gás tiver sido extraído por outra empresa?
Poder-se-ia até argumentar que a Petrobras fornece 100% (ou quase 100%) de todo o gás utilizado pela CEG, de modo que o seu preço seria o único meio possível (e confiável) de se apurar a base de cálculo. Mas tal argumento, por si só, já demonstra a invalidade da norma, posto que os elementos que compõem o fato gerador devem estar intimamente relacionados com os aspectos econômicos atinentes à operação praticada pelo contribuinte, e não por terceiro estranho ao fato tributável.
c) Mesmo que se admita como válida a utilização dos preços praticados pela Petrobras, pergunta-se: qual seria esse preço? O último? A média do último mês?
A norma, como se vê, é nitidamente incompleta, o que não permite a sua aplicação ao caso concreto.
d) A fixação de bases de cálculo presumidas só é admissível nas hipóteses de operações sujeitas a regimes de substituição tributária.
Ou seja, apenas quando se presume a ocorrência do fato gerador é que se pode, consequentemente, presumir a base de cálculo, sendo essa a única interpretação passível de ser extraída do artigo 150, parágrafo 7º, da CF/88 e do artigo 128 do Código Tributário Nacional. Afinal, se o fato gerador ainda não ocorreu (por isso é presumido), não há como saber qual o valor efetivamente praticado na operação, daí se admitir também a presunção de uma base de cálculo.
No caso, contudo, está-se fixando uma base de cálculo presumida para operações já praticadas pelo próprio contribuinte! Em outras palavras, não se está aqui presumindo a ocorrência de uma operação futura e, por isso, adotando-se uma base de cálculo presumida; ao contrário, a tributação irá incidir sobre fatos já ocorridos, mas, contraditoriamente, em vez de se utilizar o real valor praticado, a norma adota uma base de cálculo fictícia (o valor da venda pela Petrobras à CEG).
5. Necessário respeito ao princípio da anterioridade
Mesmo que se admitisse a validade da lei resultante do PL 1.029/11, nota-se que a sua eficácia não poderia ser imediata, sob pena de contrariar as regras da anterioridade previstas no artigo 150, III, “b” e “c” da Constituição Federal.
6. Conclusão
Por tudo o que foi aqui exposto, não há dúvidas de que a nova exigência contida no PL 1.029/11 é inconstitucional, sendo mais uma tentativa desesperada do estado do Rio de Janeiro de angariar recursos. Tal pretensão é evidentemente legítima, mas o necessário reforço de caixa não pode ser fundado em projetos que ferem a Constituição Federal, o Código Tributário Nacional e a Lei Complementar 87/96.
Por Donovan Mazza Lessa e Marcos Correia Piqueira Maia
Donovan Mazza Lessa é sócio do escritório Maneira Advogados.
Marcos Correia Piqueira Maia é sócio do escritório Maneira Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-mar-07/opiniao-inconstitucionalidade-fiscal-setor-oleo-gas