Mais da metade das ADIs apreciadas pelo Supremo no ano passado foi considerada procedente
Lilian Matsuura
24 de maio de 2024
A função de controlar a produção e as omissões dos Três Poderes, à luz da Constituição Federal, levou o Supremo Tribunal Federal a julgar mais de 1, 2 mil ações de controle concentrado de constitucionalidade em 2023. No mérito, 378 delas — propostas contra normas federais, estaduais, municipais, administrativas. No final do ano, a conclusão foi de que 69% estavam em desconformidade com a Carta Magna, no todo ou em parte, pela forma como foram editadas, por seu conteúdo ou, ainda, porque não foram feitas.
Nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), a invasão da competência da União para legislar sobre o tema é o argumento que sustenta a maior parte das decisões. Das 378 julgadas, 217 foram consideradas procedentes, integralmente ou em relação a algum dos dispositivos legais questionados. Entre os estados, o Rio de Janeiro foi o que mais teve leis e normas questionadas, 14 ao todo — 13 delas julgadas inconstitucionais, de acordo com o ranking de inconstitucionalidade, levantamento do Anuário da Justiça com dados do STF.
Nas ações de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs), os ministros reconheceram que atos do poder público ou sua omissão causaram lesão a preceito fundamental em 71% dos 52 casos julgados no mérito. Contra esses julgamentos não cabem recursos, de acordo com a Lei da ADPF (Lei 9.882/1999, julgada constitucional em 2023 na ADI 2.231). Mas o STF pode, por maioria de dois terços, restringir os seus efeitos ou definir a partir de quando terão eficácia.
A prerrogativa de dar a última palavra, ao apontar erros e omissões, costuma gerar atrito entre os Poderes e levar a acusações de que a Suprema Corte ultrapassa os seus limites de atuação. Recentemente, o Congresso Nacional retirou da gaveta projetos que restringem o poder do STF. Entre os quais, a proibição de decisões monocráticas que suspendam ou anulem leis ou atos, tema da PEC 8/2021 aprovada em 2023 pelo Senado e que ainda não foi apreciada pela Câmara dos Deputados.
O ministro Gilmar Mendes, o mais antigo da corte, lembra que o tribunal só atua mediante provocação. “Não há uma banca na frente do STF pedindo causas. Nós somos provocados por órgãos, partidos políticos, governadores e sociedade civil”, disse durante debate com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Fórum Esfera Internacional, em 2023.
Mendes falou sobre a possibilidade de parlamentares ajuizarem ações no STF quando, sem poder de articulação no Senado ou na Câmara, ficam vencidos. “Um representante no Congresso pode fazer uma ADI. Ele não pode articular uma boa imposição no Congresso, mas pode provocar o controle abstrato de normas. O acesso é muito fácil e se faz de forma direta. Encerrada a discussão no Congresso, o caso vem ao Supremo. E isso vale não só para leis, mas também para emendas constitucionais”, pontuou. Pacheco cogitou a possibilidade de limitar o acesso ao Supremo e negou qualquer tipo de retaliação ou guerra com a corte. Mas defendeu a necessidade de recalibrar as atribuições de cada poder.
O STF tem dado a chance aos demais poderes de reverter omissões antes de determinar o cumprimento da solução que entendeu mais adequada a cada caso.
Na ADPF 1.013, proposta pelo partido Rede Sustentabilidade, o Plenário reconheceu omissão do poder público ao deixar de ofertar transporte gratuito nos dias de eleições. Apesar de a arena preferencial para instituir a providência seja o Parlamento, diz a decisão, a ausência de norma legitima a atuação do STF. O acórdão faz, literalmente, um apelo ao Congresso Nacional para que edite a lei e garanta o direito. Caso isso não aconteça já nas eleições de 2024, a corte determina que o transporte seja ofertado de forma gratuita.
Em ação proposta pelo PSOL contra todos os estados da Federação (ADPF 347), o STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, por violação massiva de direitos fundamentais dos presos. E determinou que União, Estados e o Distrito Federal, em conjunto com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), elaborem planos para controle da superlotação e da entrada e saída de presos. Planos estes que, prontos, devem ser homologados pelo STF, conforme a decisão do Plenário.
Já na ADI 7.013, proposta pelo PSD e recebida como ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), a corte reconheceu omissão e retrocesso no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social II (Decreto 10.822/2021). Não fez qualquer apelo ao Executivo, apenas determinou em até 120 dias a inclusão de programas e indicadores para acompanhamento de feminicídios e de mortes decorrentes da intervenção de agentes de segurança pública.
O STF também deu prazo até 30 de junho de 2025 para que o Congresso Nacional edite lei complementar e adeque o número de deputados federais à proporção da população de cada estado e do Distrito Federal, já que ao longo dos anos os habitantes das unidades federativas se alteram de forma desigual. Caso o Legislativo não reverta a omissão constitucional, declarada na ADO 38, caberá ao Tribunal Superior Eleitoral determinar o número de deputados federais de cada estado para a legislatura que se iniciará em 2027, com base em dados do IBGE. “O número de cadeiras parlamentares em disputa em uma determinada eleição constitui um dos elementos mais relevantes da definição de qualquer sistema eleitoral”, justificou Luiz Fux, relator da ação.
Também incluída pelo Supremo na agenda do Congresso a necessidade de criar o Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget). Previsto há 20 anos, no artigo 3º da Emenda Constitucional 45/2004, o fundo deve ser integrado por multas decorrentes de condenações trabalhistas e da fiscalização do trabalho. O prazo, de acordo com a ADO 27, é de 24 meses a partir da publicação do acórdão. O julgamento se deu em junho de 2023.
A União respondeu a mais de 30% das ações de controle concentrado de constitucionalidade julgadas no mérito em 2023, e se manteve no topo do ranking de inconstitucionalidade. Representada pela Presidência da República, Congresso Nacional, ministros e agências reguladoras, foi alvo de 130 processos, ante 87 em 2022. Metade das leis, decretos, normas administrativas e a própria Constituição Federal questionadas foram julgadas inconstitucionais, no todo ou em parte.
A corte anulou, por exemplo, o indulto concedido pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro ao ex-deputado Daniel Silveira, condenado a oito anos e nove meses de reclusão por manifestações contra o Estado Democrático de Direito. A relatora, ministra aposentada Rosa Weber, defendeu que o benefício foi concedido por simples vínculo de afinidade político-ideológica, o que é incompatível com os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade.
Decisão de grande repercussão social foi a que reconheceu a constitucionalidade de medidas como a apreensão de passaporte e CNH, proibição de participar em concursos públicos e licitações para garantir o pagamento de dívidas. As chamadas medidas atípicas estão previstas no CPC/2015. Em janeiro de 2024, 4 em cada 10 brasileiros estavam inadimplentes, de acordo com pesquisa feita pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo SPC Brasil.
Com impacto nos aplicativos de troca de mensagens e redes sociais, o Plenário do STF definiu que a requisição de dados de provedores de internet com sede fora do Brasil pode ser feita de duas formas: pela via diplomática, à autoridade do país sede da empresa; ou diretamente a seus representantes no Brasil ou no exterior. Na decisão, de relatoria de Gilmar Mendes, o STF declarou a constitucionalidade de dispositivos do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, que regulamentam a cooperação jurídica internacional e a emissão de cartas rogatórias, especialmente nos casos em que a comunicação ou a prestação de serviços tenha ocorrido fora do país.
Na área penal, a criação da figura do juiz das garantias foi julgada constitucional pela corte. No mesmo julgamento, os ministros entenderam que a Lei Anticrime (Lei 13.964/2019) avançou sobre a autonomia do Poder Judiciário ao impor um “sistema de rodízio de magistrados” nas comarcas em que funcionar um único juiz.
O Poder Judiciário foi intimado em 20 casos, com decisões e atos administrativos contestados, 60% deles inconstitucionais. Estados e municípios ocupam as demais posições do ranking. A Procuradoria-Geral da República segue como a principal autora de ADIs e aquela com maior êxito, chegando a 84% de procedência.
De dezembro de 2022 para abril de 2024, houve queda de 20% no acervo de ações de controle concentrado. Em seu relatório de gestão, Rosa Weber atribuiu a redução à aprovação da Emenda Regimental 58, segundo a qual os pedidos de vista na corte devem ser devolvidos em 90 dias. Vencido o prazo, os autos do processo são liberados automaticamente para julgamento.
Lilian Matsuura é repórter da revista Consultor Jurídico