O Projeto de Lei nº 10.638 enviado pelo Planalto à Câmara no fim de julho, se aprovado, pode causar a tributação de até quase 60% dos lucros de sociedades detidas por Fundos de Investimento de Participação (FIPs) classificados como “não entidades de investimento”.
Segundo o projeto, esses tipos de fundo devem capturar os ganhos das sociedades investidas como dividendos, e os cotistas deverão considerá-los como receitas financeiras recebidas em 02 de janeiro de.2019.
Diferentemente dos dividendos, as receitas financeiras não estão livres de tributos. Por isso, em adição aos tributos sobre os lucros de onde provém os dividendos, os cotistas deverão pagar mais impostos ao receber o resultado de seus investimentos. A carga tributária poderá chegar a 58,47%, se o cotista for uma pessoa jurídica sujeita ao lucro real, ou a 43,90% em se tratando de uma pessoa física.
O projeto promove um corte cego na realidade e, de forma arbitrária, fere lucros acumulados nos fundos com carga tributária abusiva
Essa elevada tributação indica existir algo de estranho a ser desvendado nesse projeto, se consideramos que o sistema tributário é desenhado para que a carga tributária sobre o lucro não ultrapasse 34% como regra, ou 45% no caso excepcional das instituições financeiras.
A tributação idealizada pelo governo apoia-se na premissa de que os FIPs “não entidades de investimento” se assemelham mais a holdings do que a fundos propriamente ditos, de maneira que eles devem ser equiparados a pessoas jurídicas e tributados como tal. Essa premissa está alinhada à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliário (CVM) aplicável ao caso, segundo a qual os FIPs desse tipo devem reconhecer seus ganhos da maneira como fazem as holdings, isto é, por equivalência patrimonial (ICVM nº 579/2017, art. 8º). Nesse passo, percebe-se que, à primeira vista, há um argumento válido para o Projeto homogeneizar as visões tributárias e regulatórias sobre o mesmo veículo de investimentos.
Como resultado desse alinhamento, os dividendos recebidos por tais FIPs e por seus sócios e acionistas serão livres de tributos, e os lucros das sociedades investidas não sofrerão tributação para além do patamar normal máximo de 34%, quando percorrerem seu caminho até as mãos dos cotistas.
O projeto, portanto, não merece críticas em seu objetivo de evitar um agravamento da tributação de dividendos a partir de 2019. Em contraponto, a regra de transição que ele veicula, do regime tributário vigente para o novo, comporta o grave problema de considerar os dividendos acumulados como receitas financeiras distribuídas aos cotistas em 02 de janeiro de 2019, quando o mais apropriado seria considerá-los como genuínos dividendos, livres de tributos.
O projeto aproveita-se do descompasso entre a qualificação jurídica dos FIPs “não entidade de investimento” atribuída pela CVM (tratamento como holdings e rendimentos percebidos como dividendos) e pelas normas tributárias (tratamento como instrumento financeiro e rendimentos percebidos como receitas financeiras).
Ao contrário do projeto qualificar retroativamente os rendimentos acumulados nesses FIPs como dividendos, ele promove um corte cego na realidade e, de maneira arbitrária, fere os lucros acumulados nos fundos com uma carga tributária abusiva. Em conjunto com outros ajustes previstos no Projeto, o Governo espera arrecadar mais de R$ 10 bilhões em 2019.
Essa tributação não é injusta apenas porque agrava a tributação dos FIPs “não entidades de investimento”, mas também porque perde a oportunidade de evitar a incidência de tributos dos dividendos percebidos pelos demais FIP, classificados como “entidades de investimento”. Desde 2015, a Receita Federal aproveita-se do desalinhamento de visões da CVM e da legislação tributária para cobrar tributos sobre esses dividendos como se fossem receitas financeiras por meio de um ato infralegal (IN RFB nº 1585/2015, art. 21). O Projeto é uma tentativa de reavivar o conteúdo da Medida Provisória nº 806/2017, que não afinal foi convertido em lei pelo Congresso, por esse e outros equívocos jurídicos. Não será surpresa se o Projeto for novamente rejeitado, a despeito de possuir alguns aspectos positivos.
Por Vítor Flores
Vítor Flores é advogado e contador, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden (Holanda)
Fonte : Valor-15/08/2018