É o contribuinte obrigado a adotar a opção fiscalmente mais onerosa?
A definição dos limites do planejamento tributário continua sendo um dos temas mais atuais aos profissionais que atuam na área. Ano após ano as discussões sobre o tema se renovam, não apenas no Brasil, mas também em termos globais, especialmente a partir do lançamento pela OCDE das ações no âmbito do BEPS – Base Erosion Profit Shifting, com o objetivo, entre outros, de cada vez mais mitigar planejamentos e estratégias tributárias de multinacionais com o objetivo de deslocar para jurisdições de baixa ou nenhuma tributação.
Como sabido, no Brasil a definição dos limites ao planejamento tributário ainda causa enormes controvérsias, especialmente pela falta de regulamentação ao artigo 116, § único do Código Tributário Nacional – CTN. Tal lacuna, entretanto, nos parece tem sido preenchida por jurisprudência um tanto errática e não-uniforme, tanto na via administrativa ou judicial, o que, sem dúvida alguma, traz ainda mais insegurança aos contribuintes quando da definição de estratégias de seus negócios.
O caso que hoje abordamos reflete essa jurisprudência errática no que tange aos limites do planejamento tributário, na medida em que, embora expressamente autorizado pelo artigo 22 da Lei nº 9.249/95, a Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF, por voto de qualidade, que a redução de capital realizada a valor contábil em momento anterior à venda da participação societária objeto da redução se configuraria em um planejamento tributário abusivo, pois supostamente desprovido de propósito negocial.
Restou consignado no acórdão em debate que “não produzem efeitos perante o Fisco as operações realizadas sem propósito negocial, com o único intuito de reduzir a tributação incidente sobre o ganho de capital materializado a partir da estipulação do preço a ser pago pelas ações detidas pelo sujeito passivo” (Acórdão nº 9101-004.335).
Passemos a analisar os pormenores do acórdão em questão.
A operação analisada pela CSRF trata-se de situação bastante corriqueira no mercado consistente na redução de capital com entrega do ativo, no caso, participação societária, considerando como valor da operação o valor contábil do ativo, nos termos do artigo 22 da Lei nº 9.249/95, verbis:
Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista, a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado.
Conforme esclarecido no relatório do referido acórdão, o Contribuinte (“Empresa A”) procedeu com a redução de capital entregando ao seu sócio, pessoa jurídica estabelecida no exterior (“Empresa B”), as ações detidas em uma terceira empresa (“Empresa C”). Tal redução de capital se deu com base no valor contábil do ativo objeto da Empresa C e até então detido pela Empresa A. Logo após a redução de capital, a Empresa B alienou as suas ações da Empresa C a um terceiro não-relacionado, incidindo sobre esta última operação a alíquota de 15% de IRRF1 sobre o ganho de capital apurado, tendo em vista o alienante (Empresa B) ser estrangeira.
No entender da Fiscalização, ao revisar os procedimentos implementados pelo Contribuinte, tal operação teria sido organizada com o único intuito de se reduzir os tributos incidentes na operação de alienação das ações da Empresa C, pois caso não houvesse ocorrido a redução de capital, ou seja, se a alienação fosse realizada diretamente pela Empresa A, ou ainda se a redução de capital fosse realizada a valor de mercado, a tributação incidente seria à alíquota de IRPJ e CSLL combinada de 34%, na medida em que o alienante seria a Empresa A, empresa esta baseada em território brasileiro.
A fim de fundamentar seu entendimento na autuação, no que foi aceito pela corrente vencedora, a Fiscalização suscitou a ausência de propósito negocial na operação de redução de capital, tendo em vista esta ter ocorrido quando já em curso as negociações para alienação dos ativos entregues à Empresa B na operação de redução de capital. Conforme exposto no voto vencedor e que confirmou a autuação lavrada contra o Contribuinte, “apesar de apenas em 03/08/2010 ter sido assinado o Contrato de Compra e Venda de Ações e Quotas e outras avenças e respectivos anexos (…), as negociações com a futura adquirente já transcorriam desde antes de dezembro de 2009, quando apresentada oferta vinculante por (…) com estipulação do preço, o qual tomou contornos definitivos em 18/03/2010, naquele intervalo verificando-se outras providências para concretização do negócio”.
Ou seja, conforme argumento lançado no auto de infração e acolhido pela corrente vencedora do acórdão em comento, a constatação de que as negociações entabuladas entre as partes terem iniciado quase um ano antes da assinatura do contrato de compra e venda de ações seria um elemento definitivo à apontar a “ausência de propósito negocial” a justificar a operação de redução de capital realizada entre 18/03/2010 e 03/08/2010, levando o Fisco à desconsiderar os efeitos de tal redução de capital, a fim de imputar ao Contribuinte, no caso, Empresa A, o ônus tributário da operação de alienação da participação societária e tributação incidente sobre o ganho de capital à alíquota de 34%.
Importante destacar que de acordo com a linha de raciocínio empreendida pela Fiscalização e corrente vencedora, é feita tábula rasa das disposições do artigo 22 da Lei nº 9.249/95, que autoriza a redução de capital levando-se em consideração o valor contábil do ativo a ser entregue ao sócio ou acionista, assim como, mais grave ainda, no entender deste que escreve, estabelece uma regra inexistente a fim de justificar a suposta ausência de “propósito negocial”.
Ora, o fato de as partes envolvidas estarem em negociação durante um largo período e o preço ter sido definido em data muito anterior ao da assinatura do contrato de compra e venda, em nenhum momento pode levar à conclusão de que a opção pela redução de capital em momento anterior à venda teve propósito exclusivamente fiscal, ainda mais considerando as características das empresas envolvidas na operação e as implicações regulatórias na área em que atuam (concessão de rodovias).
No que tange à questão temporal não há na legislação qualquer regra estabelecendo um prazo “mínimo” de antecedência em relação ao qual determinados eventos devem ocorrer a fim de que se afaste a presunção de uma possível “ausência de propósito negocial”. Ao contrário, no que tange especificamente às operações de redução de capital, verifica-se que o artigo 1.084 do Código Civil prevê que tal operação poderá ser contestada por credores quirografários no prazo de 90 dias da data em que ocorrida a assembleia geral com tal deliberação, de modo que atendido esse prazo sem contestação tal operação considera-se apta a surtir seus plenos efeitos.
De igual maneira, importante destacar que a partir do exposto no acórdão não houve alegação de simulação em relação aos atos relativos à redução de capital ocorrida, ou seja, a operação efetivamente ocorreu atendendo-se aos requisitos de natureza formal e material, não tendo havido alegação de que o Contribuinte teria incorrido em quaisquer das hipóteses previstas no art. 167 do Código Civil2.
Ou seja, o enfrentamento proposto pela Fiscalização deu-se puramente sob a argumentação de que, a despeito da expressa autorização legal prevista no art. 22 da Lei nº 9.2499/95, a operação de redução de capital teria ocorrido com o fim exclusivo de redução da carga tributária da operação de alienação das ações da Empresa C.
Em relação a este enfrentamento proposto, nos parece que cabe a pergunta: haveria impedimento à realização da operação pelo meio menos oneroso sob o ponto de vista fiscal, ainda mais considerando a previsão legal de execução da operação nos moldes em que efetivada?
No nosso entendimento e considerando a liberdade de se auto-organizar decorrente do que dispõe o art. 170 da Constituição Federal, certamente não há qualquer impedimento em o Contribuinte adotar medidas que visem a reduzir a carga tributária da operação, tendo em vista a ausência de qualquer simulação nos atos executados e, principalmente, a autorização legal expressa de adoção para redução de capital com base no valor contábil dos ativos entregues aos acionistas localizados no exterior da Empresa A, empresa esta objeto da autuação que levou ao acórdão ora em comento.
A seguir o entendimento apresentado pelo Fisco e acolhido pela corrente vencedora, negado estaria o direito à busca de melhor eficiência tributária, busca esta legitimada nos valores da livre iniciativa e liberdade auto-organização o que, no caso em questão, é ainda mais evidente ante a expressa autorização legal para que a reorganização societária fosse efetivada da maneira ocorrida.
Conforme bem exposto no voto vencido, “a operação de redução de capital não poderia ser considerada, por si só, abusiva ou fraudulenta, pois expressamente permitida na legislação – art. 1.082, II do Código Civil c/c com art. 22 da Lei nº 9.249/95”.
É de se notar que não há qualquer restrição à execução da operação prevista no art. 22 da Lei nº 9.249/95 na hipótese desta operação resultar em menor carga tributária. A mitigação da carga tributária é consequência e não causa da redução de capital e reorganização societária da maneira em que implementada pela Empresa A no caso ora em análise.
Considerando a ausência de qualquer obrigação de se adotar o caminho mais oneroso sob o ponto de vista fiscal para reorganização das suas estruturas pré-alienação, consignou o conselheiro responsável pela redação do voto vencido que “a Contribuinte tinha opções diferentes para realização da venda de ativo com ganho de capital. Optou pela menos onerosa tributariamente e isso, na linha do que vem decidindo o CARF relativamente à possibilidade de redução de capital para posterior venda na pessoa física dos sócios, por exemplo, não há planejamento abusivo”.
Ainda, a concluir seu raciocínio, contundente e acertado foi o voto vencido ao afirmar que “não cabe ao Fisco impor ao contribuinte uma opção mais onerosa em situação que a legislação lhe faculta a opção de realizar um determinado ato jurídico que, ao final, tem o condão de permitir um ganho tributário pelo pagamento menos de tributos”.
Portanto, considerando a (i) ausência de simulação no caso em tela, ausência esta reconhecida pelo próprio Fisco; (ii) a expressa previsão legal autorizando a redução de capital na maneira em que empreendida pela Empresa A; (iii) a ausência de qualquer regra que exija um prazo temporal mínimo para realização de operações societária previamente à alienação de ativos; e (iv) a liberdade de se auto-organizar, dentro dos limites e formas prescritas em lei, de modo a se alcançar uma melhor eficácia tributária, nos parece que a posição adotada por voto de qualidade no acórdão ora em comento incorreu em violação aos preceitos legais (art. 22 da Lei nº 9.249/95) e constitucionais (art. 170 da CF), acabou por extrapolar o conceito, ainda bastante incerto, de “ausência de propósito negocial”, a fim de desconsiderar a operação de reorganização societária empreendida pelo Contribuinte autuado, situação esta que certamente desaguará e será enfrentada no Judiciário.
De mais a mais, destaca-se que a posição adotada em voto de qualidade no acórdão aqui em comento representa uma quebra de jurisprudência recorrente no próprio CARF em relação às operações de redução de capital em momento anterior à alienação, conforme se verifica pelos Acórdãos nº 1301-003.023 e 1401-002.347, corretamente indicados como paradigmas no recurso especial interposto pelo Contribuinte.
Assim, não apenas o acórdão comentado parece representar um alargamento ao conceito ainda em construção de “ausência de propósito negocial”, como também implica em uma quebra da certeza que o próprio CARF já vinha reiteradamente afirmando em relação às reorganizações societárias similares às aqui tratadas, o que certamente não contribui para tão almejada segurança jurídica que se busca alcançar nas relações Fisco-Contribuinte.
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1 Considerando a alíquota aplicável à época dos fatos.
2 Art. 167 – É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
- 1º – Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem.
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Fonte: Jota – Por Thales Stucky – 11 de dezembro de 2019.