O novo Código de Processo Civil, nos artigos destinados à execução de sentença contra a Fazenda Pública, criou nova hipótese de propositura de ação rescisória, a qual, por sua vez, está sujeita a um prazo diverso daquele mencionado nos itens precedentes. Trata-se do artigo 535, inciso III, do CPC, pelo qual, na impugnação, a Fazenda Pública poderá alegar “inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação”.
O § 5º do artigo 535, do CPC, por sua vez, estabelece que se considera inexigível “a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso”. Ou seja, poderá a Fazenda Pública alegar que o título judicial executado se encontra inexigível porque em confronto com precedente do STF.
No caso deste regime, é indispensável, porém, a observância de pelo menos um requisito: a decisão do STF deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda (§ 7º do artigo 535, do CPC).
Quando a decisão do STF for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, surge a dúvida sobre se seria cabível a ação rescisória, cujo prazo será contado a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF (§ 8º do artigo 535, do CPC).
Temos, na atualidade, a seguinte situação:
(i) Caso o sujeito passivo pretenda executar sentença transitada em julgado que esteja em confronto com precedente do STF proferido antes da formação da coisa julgada, poderá a execução ser impugnada pela Fazenda Pública com fundamento na suposta inexequibilidade do título;
(ii) Quando, porém, a sentença executada estiver em confronto com precedente proferido após o seu trânsito em julgado, poderá ser rescindida por meio de ação rescisória, cujo prazo para a propositura – também de 2 anos, conta-se a partir do trânsito em julgado não da decisão a ser rescindida, mas sim do precedente do STF que servirá de fundamento para a rescisão.
A Constituição ampara a coisa julgada como garantia e direito fundamental e veda expressamente que a “lei” possa “prejudicar” seus efeitos, logo, não se pode admitir qualquer hermenêutica extensiva que não se acomode àquilo que coincida com os efeitos típicos do controle de constitucionalidade das leis.
Ação rescisória não é recurso, todavia, decorre de uma consideração relevante, e olvidada por muitos, mas não por Pontes de Miranda: “nela, e por ela, não se examina o direito de alguém, mas a sentença passada em julgado, a prestação jurisdicional.”[1] Como sabido, cuida-se a ação rescisória de remédio jurídico autônomo, que não empresta relação processual preexistente (como fazem os recursos), senão estipula nova relação, formada sobre objeto próprio:[2] uma decisão transitada em julgado, no quanto for meritória.
Não obstante todas as preocupações relativas à imutabilidade das decisões de mérito, grassa nos dias que correm a doutrina da chamada relativização da coisa julgada, algo diverso do que se considera como “coisa julgada inconstitucional”.
A garantia constitucional da coisa julgada é o principal meio do ordenamento jurídico para a realização da segurança jurídica no Estado Constitucional de Direito no âmbito da tutela jurisdicional. Ora, onde se relativiza uma garantia constitucional sobranceira como a da coisa julgada, corre-se o risco do arbítrio e da discriminação.
Não é dado ao legislador corromper ou limitar essa garantia, sob pena de fazer ruir o próprio princípio do Estado Democrático de Direito e sua separação de poderes. Onde a Constituição não impôs limites, não cabe ao legislador fazê-lo. Não diz, a Constituição, que “a coisa julgada será definida nos termos da lei”; mas, ao contrário, que “a lei não prejudicará a coisa julgada”.
Diante da presença de coisa julgada em favor do contribuinte que tenha reconhecido a inconstitucionalidade na espécie, na ausência de prazo para a ação rescisória, a eficácia da decisão do STF pela constitucionalidade do tributo deve servir de bloqueio para a continuidade da eficácia da coisa julgada (ex nunc), vedada, in totum, sua retroatividade, haja vista a extinção do crédito tributário ao longo da sua permanência, nos termos do artigo 156, inciso X, do CTN.
Não há que se falar em coisa julgada inconstitucional com eficácia retroativa, para alcançar situações consolidadas no passado. É vedada, portanto, qualquer retroatividade da decisão do STF para alcançar títulos fundados em créditos apurados anteriormente à decisão do STF que reconhece a inconstitucionalidade daquilo que fora mantido em estabilidade jurisdicional como “constitucional”.
Deve-se ponderar a manutenção de coisa julgada inconstitucional no ordenamento, após a decisão do STF, que reconhece a constitucionalidade de determinado tributo, porquanto nenhum outro contribuinte poderá obter o mesmo direito à exclusão do tributo. Justifica-se, aqui, o emprego da competente ação de revisão da coisa julgada. O que não se admite, porém, é a simples pretensão de se arguir o relativismo da coisa julgada ou o consequencialíssimo judicial para motivar a extinção da coisa julgada.
Qualquer declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle difuso ou concentrado do STF não prejudica a coisa julgada em favor do contribuinte, salvo sua desconstituição mediante propositura de ação rescisória pela Fazenda Pública, quando ainda persista a disponibilidade de prazo suficiente.
Na falta de prazo suficiente, há de prevalecer a coisa julgada, porquanto a segurança jurídica veda qualquer flexibilidade dos seus efeitos sobre os fatos verificados, como exercício de soberania do poder judiciário.
Neste sentido, distingue-se a coisa julgada garantidora de fatos jurídicos perfeitos (oponível ad preteritum), cuja imutabilidade deve ser preservada como efeito de direito fundamental, à qual não se opõe qualquer possibilidade de resistência ou revisão (i); da coisa julgada garantidora de direito in abstracto (ad futurum), que decorre de decisão em ação declaratória como ato jurisdicional prescritivo, no qual a coisa julgada deve adequar-se à unicidade do sistema constitucional (evitar discriminação, garantir equilíbrio de concorrência etc.), ao que se impõe a cessão dos seus efeitos caso sobrevenha decisão do STF em sentido contrário (ii). Em nenhuma hipótese, porém, deve-se admitir a retroatividade desconstitutiva da coisa julgada em relação aos fatos passados, submetidos ao regime assentado na respectiva sentença judicial.
A desconstituição de efeitos futuros de coisa julgada em relações continuativa exige procedimento legal típico, que é a revisão da sentença, na forma do artigo 505, I, do CPC, abaixo transcrito, in verbis:
“artigo 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II – nos demais casos prescritos em lei.” (n.g.)
Diante desse regime, nas relações ditas “continuativas” a Fazenda Pública tem direito disponível para pedir, a qualquer tempo, a revisão do que foi determinado como objeto da coisa julgada. A decisão terá efeitos sempre ex nunc, ou seja, somente surtirá efeitos a partir da decisão de revisão da coisa julgada, sem qualquer possibilidade de retroatividade.[3]
O STJ, em casos de obrigações de trato continuado, tem aplicado o regime do atual artigo 505, inciso I, do CPC (antigo artigo 471, I), ao confirmar que a sentença pode ser revista quando houver alteração no estado de fato ou de direito que serviram de suporte para motivação da decisão transitada em julgado.
Destarte, a adoção da ação revisional opera-se nos limites da coisa julgada cujo processo, em relações continuativas, sofre mudanças dos suportes fáticos ou normativos, como se verifica com a introdução de “tese jurídica” firmada em precedente, com força de repercussão geral, pelo STF. E somente o juiz poderá determinar a extensão do alcance da decisão do STF sobre a lide e as questões deduzidas em cada processo.
É clara a posição da melhor doutrina no sentido de que a mera decisão do STF, ainda que em repercussão geral, não tem o condão de desconstituir, por si só, a coisa julgada, de forma automática. Esse entendimento já foi manifestado pelo STF. Confira-se, in verbis, trecho o Acórdão em questão:
“A superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia ‘ex tunc’ – como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765) -, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, ‘in abstracto’, da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes. – O significado do instituto da coisa julgada material como expressão da própria supremacia do ordenamento constitucional e como elemento inerente à existência do Estado Democrático de Direito.”[4]
Depreende-se dessa lição que, nos casos de modificação de fato ou de direito, não há que se falar em anulação da coisa julgada, ou seja, não haverá a “retirada” da coisa julgada do mundo jurídico. Estar-se-á diante de situação em que aquela coisa julgada não mais produzirá efeitos, em decorrência de uma modificação de estado de fato ou de direito.
A necessidade de um sistema uníssono, com decisões judiciais coerentes, como característica de garantia da certeza jurídica, foi, inclusive, objeto de positivação, na redação do artigo 926, do CPC, ao determinar que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”. E este anseio de segurança jurídica jurisprudencial levou o legislador a dedicar artigos específicos do CPC para dizer que a jurisprudência deve ser uniforme, estável, íntegra e coerente. Prevalece, assim, a força do ordenamento.
Em conclusão, excetuado o cabimento da Ação Rescisória, a ocorrência de alterações nas circunstâncias fáticas ou jurídicas existentes quando proferida a decisão transitada em julgado, por superveniência de decisão do STF em sentido diverso, pode motivar a revisão da coisa julgada, com fundamento no artigo 505, inciso I, do CPC, mas nunca sua ineficácia automática para futuro.
1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado das ações, Tomo IV, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 499. (g.n.)
2 SILVA, Ovídio Baptista da, Curso de processo civil: processo de conhecimento. 4ª ed., São Paulo: RT, 1998, p. 478. Segundo o autor, “a ação rescisória (artigo 485 do CPC), em verdade, é uma forma de ataque a uma sentença já transitada em julgado, daí a razão fundamental de não se poder considerá-la um recurso. Como toda ação, a rescisória forma uma nova relação processual diversa daquela onde fora prolatada a sentença ou o acórdão que busca rescindir.” “Importante destacar que, para o sistema processual brasileiro, a noção de ‘decisão de mérito’ é correlata à de ‘trânsito em julgado’. Somente as decisões que apreciam o mérito é que serão acobertadas pela coisa julgada material (…) Não cabe ação rescisória por falta de interesse de agir, se não coexistirem esses dois requisitos.” cit. BUENO, Cassio Scarpinella, Curso sistematizado de direito processual civil, V. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 322.
3 Cf. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Mandado de Segurança nº 11.045/DF, Rel. Ministro Teori Zavascki, julgado em 03/02/2010, DJe 25/02/2010.
4 STF. RE nº 592.912 AgR, Relator Ministro Celso de Mello. Segunda Turma do STF. Julgado em 03/04/2012, Acórdão Eletrônico Dje-229 Divulg 21-11-2012 Public 22-11-2012 Rtj Vol-00226-01 Pp-00633.
Por Heleno Taveira Torres
Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA). www.profhelenotorres.com.br
Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-abr-03/consultor-tributario-limites-revisao-coisa-julgada-decisao-supremo