“Tosquie minhas ovelhas, mas não as esfole vivas”, teria dito o imperador Tibério (de 14 a 37 d.C.), conforme relato de Suetônio, ao governador de uma das províncias romanas, quando este lhe solicitou autorização para aumentar tributos. Capacidade contributiva, igualdade tributária e não confisco, princípios diversos, mas intimamente relacionados, não eram desconhecidos na Antiguidade Romana. No Código de Justiniano, por exemplo, se estabelecia que “as cargas públicas devem ser suportadas na proporção das fortunas” (C.J, 10.42.1), vedando-se que os presidentes de províncias consentissem em que se aliviassem uns, e como consequência se gravassem outros de maneira excessiva, devendo-se guardar a igualdade (C.J., 10.42.4).
Mas, apesar de conhecidos, tais princípios nem sempre foram observados. Necessidades do Império fizeram com que fossem postos de lado, principalmente depois de Diocleciano (imperador de 284 a 305 d.C), que incrementou consideravelmente a burocracia e os exércitos romanos e, com isso, também as despesas públicas. Para honrá-las, seguiram-se consideráveis aumentos de impostos, o que levou a acontecimentos que merecem nossa atenção.
Como o principal meio de produção de riqueza era a terra, o aumento do tributo sobre esta, e sobre a produção dela diretamente decorrente, fez com que alguns produtores simplesmente abandonassem suas fazendas, por não suportarem os tributos sobre elas incidentes, como relata em detalhes Charles Adams (For good and evil. The impact of taxes on the course of civilization. 2.ed. Oxford: Madison Books, 1999). Criou-se então, para contornar o problema gerado por tais terras abandonadas, uma “responsabilidade tributária solidária” para que os proprietários vizinhos respondessem pelos tributos devidos por aqueles que tinham deixado suas fazendas, algo semelhante a alguns abusos hoje perpetrados pelo Fisco brasileiro com suposto amparo no artigo 124, I, do CTN, na responsabilização de “pessoas ligadas” ao contribuinte por suposto “interesse comum” (por exemplo, por serem da mesma família). Tudo isso levou a que pequenos proprietários terminassem sendo compelidos a vender suas terras a grandes proprietários, passando a trabalhar para eles: conseguiriam assim o mesmo sustento, mas sem os ônus tributários, que passariam a ser suportados pelos seus senhores. Estes, por sua vez, dotados de maior poder econômico (e, não raro, também da influência política a ele associada), teriam melhores condições de negociar com as autoridades fiscais meios para não se sujeitarem a ônus tributários tão pesados, obtendo assim anistias, remissões e moratórias.
Emergiram então, naturalmente, os efeitos da ideia subjacente à conhecida “Curva de Laffer”: quanto maior o ônus representado por um tributo, maior a tendência dos contribuintes a tentarem escapar dele, por meios lícitos ou ilícitos. Daí, com o aumento da tributação, houve incremento da evasão fiscal e da corrupção. Como cada majoração de tributos, por tais motivos, não conduzia ao esperado aumento na arrecadação, a solução encontrada passou a ser aumentar ainda mais os tributos, incrementando drasticamente o círculo vicioso. Ao cabo, significativa parcela da riqueza passou a ser drenada por grandes sonegadores e pelas autoridades corruptas com eles coniventes. E o Império começou a implodir.
Juliano (imperador de 361 a 363 d.C) ainda tentou reverter o ciclo, racionalizando gastos e reduzindo tributos, a mostrar que austeridade e responsabilidade fiscal não deveriam ser vistas como algo de cunho ideológico, recente fruto de um “capitalismo” tido por alguns como culpado por tudo que de ruim há no Universo (à semelhança de certos religiosos, que por igual põem em “satanás” a responsabilidade por todas as mazelas do mundo). E talvez Juliano tivesse conseguido salvar o Império, não fosse a sua morte apenas dois anos depois de assumir o poder, o que levou à retomada dos gastos descontrolados e de novos aumentos de tributos com a finalidade de cobri-los. Inflação, corrupção e sonegação foram consequências naturais, e, por elas, o Império foi devorado de dentro para fora. As invasões bárbaras, nesse contexto, figuraram como mera consequência, a exemplo das infecções oportunistas — inofensivas em alguém saudável — que terminam levando à morte alguém cujo sistema imunológico encontra-se previamente debilitado por outras causas.
O estudo da tributação na Antiguidade Romana revela, portanto, que já existiam, ali, os principais institutos de Direito Tributário. O estudo do Direito Romano, para o Direito Tributário, pode ser tão proveitoso quanto o é para o Direito Privado, algo a ser ainda descoberto pelos tributaristas. O problema, naquela época, era que o respeito a tais institutos dependia, em larga medida, sobretudo no período imperial, da vontade do imperador, que às vezes tinha todo o interesse em não os respeitar. Homens que a História reconhece como razoáveis e justos, como Augusto, Trajano e Juliano, os observavam e aperfeiçoavam. Mas outros não, como Caracala, tendo algum espaço para mandá-los às favas. O que as revoluções havidas entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna trouxeram à humanidade não foram instituições de Direito Tributário, que de algum modo já existiam. Foram instituições de Direito Constitucional, que nasceram (ou foram consideravelmente aprimoradas) para tornar efetivas as de Direito Tributário, porquanto destinadas a minimizar os efeitos deletérios de a tríplice função de elaborar regras, aplicá-las e julgar os conflitos decorrentes de sua aplicação, centralizar-se na figura da parte interessada da relação jurídica, a saber, o poder público (o que reduz a juridicidade dessa relação, aproximando-a da mera sujeição ao poder). O que se fez nas Cortes de León, durante o reinado de Alfonso IX (1188), e, depois, na Magna Carta (1215), e em todas as revoluções que se sucederam (Gloriosa, Francesa, Americana etc.), foi criar mecanismos de freios e contrapesos que, conquanto ainda insuficientes, são melhores do que nada, destinados a fazer com que o respeito aos princípios do Direito Tributário não dependa apenas da vontade do governante de cada momento. Não por outro motivo eram questões tributárias que subjaziam a todas essas revoluções, dando azo à afirmação do saudoso professor Alcides Jorge Costa, que dizia nunca ter visto uma revolução feita por meio da tributação, mas muitas por causa dela.
E o que tudo isso nos ensina? Que o respeito à capacidade contributiva, levado a efeito por um sistema tributário o mais neutro possível, equânime, sem favores e concessões, e por igual sem excessos, é vital ao florescimento da atividade econômica da qual todos dependem, desígnio tanto mais factível quanto mais se limitam os poderes dos que instituem os tributos (e dos que criam desonerações). Uma carga não excessiva é essencial, ainda, a que não se estimule a corrupção, a evasão e a criação suspeita de favores direcionados, e, com elas, ao desvio dos recursos públicos a finalidades não convergentes com os interesses da coletividade. Em suma, tais experiências mostram que uma carga tributária exagerada sobre os menos favorecidos, e complacente com os mais abastados, repleta de exceções e de diferenciações injustificadas, além de injusta, leva à ruína de todo o sistema, sendo importante que estejam juridicamente fora do alcance do legislador — ou em zona de alcance mais difícil — os limites destinados a evitar que isso aconteça. Haveria algo mais atual do que isso quando se cogita de reformar o sistema tributário brasileiro?
Dizem que o conhecimento da História nos permite evitar a repetição dos erros do passado. O longo processo de tentativa e erro pelo qual passam as construções culturais, por meio dele aprimoradas, é tanto mais eficiente quanto melhor se conhecerem os erros em que incorreram as tentativas anteriores. Daí a essencialidade da História. Mas se só alguns conhecerem a História e os erros já cometidos ao longo dos tempos, estarão condenados à tragédia de assistir, sem poder fazer nada, a que todos os demais os repitam seguidamente. Uma boa lembrança em um momento em que se discute a reforma do sistema tributário brasileiro, com mudanças em uma Constituição que não é responsável pela maior parte dos defeitos desse sistema.
Que a simplificação decorrente da criação de um imposto de base ampla, destinado a substituir ICMS, IPI, ISS, PIS, Cofins, Cide-Combustíveis e IOF, de fato elimine diferenciações inexplicáveis (sobretudo no campo do ICMS e do IPI), em vez de apenas concentrar nas mãos da União a possibilidade de fazê-las; e que não sirva de mero pretexto para se alterarem disposições limitadoras do poder de tributar e que nada têm a ver com excesso de carga, desigualdade de distribuição do ônus e burocracia, defeitos cujo direcionamento pode em larguíssima medida ser feito no plano legal e mesmo infralegal. Em suma, em um cenário em que o maior problema é a falta de respeito à Constituição, qualquer iniciativa no sentido de mudá-la, ainda mais quando essa mudança é levada a efeito essencialmente por quem não a está respeitando, deve ser vista com muita cautela.
Por Hugo de Brito Machado Segundo
Hugo de Brito Machado Segundo é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).
Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-mai-15/consultor-tributario-licoes-historicas-desrespeito-capacidade-contributiva