Há dez anos atuando na área de direito privado, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão afirma que não se pode ?demonizar? a atividade empresarial e defende que a interferência excessiva do Estado ?testilha com a evolução da sociedade moderna?.
Em entrevista exclusiva ao Valor, o ministro citou os efeitos da Lei da Liberdade Econômica (sancionada em 20 de setembro pelo presidente Jair Bolsonaro) no número de litígios que chegam à corte – cenário que, hoje, ele considera ?patológico?. Salomão diz que as mudanças devem diminuir a quantidade de processos no tribunal e, consequentemente, alavancar o desenvolvimento do país, uma vez que este é um marcador levado em conta pela maioria dos institutos des pesquisas econômicas.
Para ele, contudo, o ponto mais relevante da nova norma é o aprimoramento do trabalho das agências reguladoras, que, segundo ele, funcionam atualmente de forma abusiva, servindo mais como entrave do que como estímulo à economia. ?A lei procura tirar o Estado da atividade privada. Em um regime capitalista como o brasileiro, todo mundo sai ganhando: o banco empresta mais, a taxa de juros diminui, o emprego vem, a atividade econômica flui, o Judiciário trabalha melhor.?
A diminuição do papel do Estado na economia, avalia o ministro, ?é uma tendência mundial, sem retorno?, independentemente de quais venham a ser os futuros governantes. Salomão também fala sobre as consequências da MP nas leis trabalhistas e cita a reforma tributária como um importante complemento à nova norma.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual o impacto mais imediato da Lei da Liberdade Econômica nos processos em curso no STJ?
Luís Felipe Salomão: A atividade judiciária é levada em conta por todas as pesquisas do mundo sobre marcadores de desenvolvimento econômico. Uma atividade que confira segurança jurídica e, no caso da recuperação judicial, que implique razoável busca do crédito, em tempo também razoável, atrai investimentos, impacta diretamente a taxa de juros e todo o sistema financeiro. O Brasil se ressentia de uma legislação que pudesse desfraldar a bandeira da liberdade econômica. Acreditamos que a lei vá cumprir um papel importante e propiciar que o Judiciário honre sua finalidade de equilibrar os diversos direitos que estão em conflito – o do credor, de fazer valer seu crédito com respaldo e segurança, e o do devedor, de se defender adequadamente.
Valor: A perspectiva é de que aumente ou diminua o número de litígios nos tribunais?
Salomão: A ideia da lei é de desburocratizar, fazer com que o setor privado funcione melhor e, assim, diminuir os litígios, levando o Judiciário a funcionar efetivamente nos pontos que interessam. Esse é o xis da questão. A lei nos fornece os princípios para julgar os casos e, como efeito secundário, reduz o litígio. Nós temos hoje uma litigiosidade quase patológica. É um sinal mais do que amarelo, é quase vermelho, de que precisamos de políticas públicas para conter a quantidade de litígios. Hoje temos um processo para cada dois habitantes – é a maior média do mundo. E isso não exige uma solução única, tem que ser um conjunto: precedentes vinculantes, soluções extrajudiciais. A lei vem nessa linha, de tentar resolver antes de judicializar, de dar segurança aos contratos e aos empreendedores.
Todos ganham nesse processo; o banco empresta mais, o juro diminui, o emprego vem, a atividade econômica flui?
Valor: O sr. conseguiria estimar um percentual para essa diminuição de processos?
Salomão: É impossível prever um número. A lei vai ter um efeito cultural, de retirar do Judiciário algumas demandas que hoje existem devido a um excesso de regulamentação. É impossível prever quantitativo para isso, mas acredito sinceramente que vá haver uma redução.
Valor: O sr. falou em excesso de regulamentação. Como avalia o papel das agências reguladoras, atualmente?
Salomão: Não funcionam. Foram concebidas para estimular a atividade econômica, mas hoje operam exatamente em sentido contrário. Se funcionassem, não haveria essa quantidade de processos: contratos bancários, telefonia, questões de saúde – tudo isso vem sendo trazido para o Judiciário decidir. As agências deveriam prevenir, e não estimular, o litígio no setor privado, em que a interferência tem que ser mínima. Um dos pontos mais relevantes da lei é o que retira a carga da atividade regulatória, que se transformou em um entrave. Quando consegue diminuir esse grau de litigiosidade, evidentemente você fortalece a agência reguladora para trabalhar com o que deve ser trabalhado. Um dos pontos mais relevantes da lei é a exigência de que qualquer regulamentação observe um estudo de impacto, para se saber se tal medida é mesmo necessária. Isso é bastante salutar. Não pode se criar regra para burocratizar e impedir a fluência da atividade econômica e financeira.
Valor: Com isso não haveria um esvaziamento das agências regulatórias no país?
Salomão: Ao contrário. Tirando o que não interessa e fortalecendo o que interessa, ela vai voltar a cumprir seu verdadeiro papel – o de estimular a atividade econômica, e não o de criar embaraços para ela. Quando tirarmos o que está em excesso e focarmos no que é o principal, voltaremos à ideia original da agência, que é a de servir de alavanca para a atividade empresarial.
Valor: Como tem sido a receptividade dos demais ministros do STJ em relação à lei?
Salomão: Os colegas da Segunda Seção, principalmente, receberam muito bem a lei, a partir desse espírito de que o Brasil precisa voltar a crescer. A nossa atividade econômica é uma das mais pujantes do mundo e precisa ser retomada. Precisamos voltar a atrair investimentos estrangeiros. Essa história de demonizar a atividade econômica Ela tem um ciclo próprio, cumpre um papel desenvolvimentista para o país e é vital para o funcionamento da economia. Atuo há dez anos na área de direito privado e posso dizer que essa é uma área muito sensível, porque a palavra final é do STJ. Como se trata de legislação infraconstitucional, pouquíssimas dessas matérias chegam ao Supremo Tribunal Federal. Então, o STJ tem uma importância grande nessa parte de contratos societários, previdenciários, de seguros, bancários – todo esse sistema financeiro passa pela Segunda Seção. A legislação é muito bem-vinda para conferir segurança jurídica e garantir a liberdade de empreender.
Valor: Quando o país começará a ver esses efeitos?
Salomão: Não é uma varinha de condão que toca e faz tudo funcionar rápida e perfeitamente. A cultura da litigiosidade está bem arraigada no nosso dia a dia. O que a lei procura fazer é tirar o Estado da atividade privada. Aqui, a regulamentação é altamente burocratizada. O Brasil, em termos de tempo para abrir e regularizar um negócio jurídico, é um dos mais lentos do mundo. Então isso também é um fator que a lei busca simplificar. Dando mais autonomia ao funcionamento da empresa, todo mundo ganha nesse processo, especialmente em um regime capitalista como o brasileiro. O banco empresta mais, a taxa de juros diminui, o emprego vem, a atividade econômica flui, o Judiciário trabalha melhor.
Valor: A Lei da Liberdade Econômica chegou a ser apelidada de minirreforma trabalhista. Quais os impactos da norma nas relações de trabalho?
Salomão: A lei não mexe no direito trabalhista, mas indiretamente tem impacto. Quando a norma diz que a empresa poderá funcionar aos finais de semana, ela vai mexer na carga de trabalho, em horas extras. Agora, isso tudo está se fazendo – e a lei é expressa nisso – com preservação aos direitos trabalhistas já modificados pela reforma. O número de demandas na Justiça do Trabalho diminuiu bastante. Acredito que a lei complementa essa busca de simplificação para a atividade empresarial, sem perder de vista o resguardo dos direitos trabalhistas. A lei não impõe novas regras, nem direitos, nem restrições, mas permite a fluência maior desses direitos.
Valor: O que mais está pendente, na sua avaliação, para destravar a economia do país?
Salomão: Para completar essa destravada da economia, acho que o Brasil precisa da reforma tributária, que é um ponto entregue ao Parlamento. É um equívoco achar que o Judiciário pode resolver o problema tributário. Não pode. A gente vai resolvendo as questões na medida em que os esqueletos aparecem, mas uma reforma equilibrada, que permita ao Estado sair do seu grau de endividamento e voltar a ser um fomentador da atividade econômica, passa pelo Parlamento. Depois da reforma da Previdência, que é um déficit que precisávamos enfrentar, uma das mais relevantes funções atuais do Congresso é resolver a reforma tributária. Com esse ciclo, com as diversas mexidas que estão acontecendo, não é excesso de otimismo dizer que voltamos a ter muita chance de desenvolvimento econômico.
Valor: Ao contrário dos governos anteriores, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito sob o discurso de reduzir o papel do Estado na economia. Como vê o futuro desse cenário?
Salomão: O fato de o Estado estar sempre regulando testilha com a evolução da sociedade moderna, que é cada vez mais autônoma. Você não quer mais o Estado para nada. Já tem Estado demais. Você já sofre fiscalização na atividade empresarial, paga tributos, desconta do salário. Tem vigília demais. Você quer menos. E acho que essa é uma tendência mundial, que não tem retorno. Na minha visão de mundo, essa coisa de o Estado não ser mais um intermediário é irreversível.
Fonte: Valor Online – 07/10/2019