Ninguém discute que a legalidade é a maior das diretrizes a ser seguida na instituição dos tributos. Há, entretanto, diversas formas de realizá-la. Nos dois extremos estão a lei geral, que indica de forma abrangente os elementos da incidência e a lei ultraespecífica, que detalha os muitos fatos geradores, acompanhados de suas respectivas bases de cálculo, alíquotas etc. No Brasil, temos preferido a segunda opção, apesar de suas consequências inesperadas.
Teoricamente, quanto mais específico o desenho da incidência, maior a segurança jurídica, ou seja, a previsibilidade para o Fisco e o contribuinte. Teoricamente. Na prática, é um pouco diferente. A lista de mais de 250 tipos de serviços para a cobrança de ISS não parece ser a forma mais precisa de aplicar o direito tributário. Pode-se dizer o mesmo da lista de créditos do PIS e da Cofins ou das multas previstas no Regulamento do ICMS em São Paulo.
Por incrível que possa parecer, mais direito pode significar menos direito. Regras muito detalhadas podem resultar em maior contencioso, porque se ampliam as possibilidades de interpretação. O significado de cada inciso, alínea ou parágrafo é dissecado em cada caso concreto, e com possibilidades combinatórias infinitas se levados em consideração todos os princípios que norteiam o direito tributário (capacidade contributiva, legalidade, isonomia, não discriminação, princípio federativo etc.).
Regras muito detalhadas podem resultar em maior contencioso ao ampliar as possibilidades de interpretação
O detalhamento na tributação por vezes é justificado pela complexidade da realidade que ela pretende alcançar. Diz-se que, quanto mais complexa a realidade, mais complexo deve ser o sistema tributário. Pode ser um equívoco.
Quanto mais complexos os negócios, quanto mais rápida a inovação e a evolução da forma de contratar, investir, comprar e vender, mais simples deve ser o sistema tributário. Aqui, vale um alerta: assim como a generalidade não está associada à insegurança jurídica, a simplicidade também não está associada a soluções fáceis. A simplicidade decorre de um processo complexo. É preciso fazer uma análise profunda do status quo (diagnóstico) e vale a pena conhecer a experiência de outros países. Regras simples e comuns aos setores produtivos reduzem o contencioso e o custo com a conformidade desnecessários para o ambiente de negócios e o pagamento correto dos tributos.
O Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) iniciou, há pouco mais de um ano, a redação legal de um novo imposto sobre o valor adicionado (IVA), o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, acompanhando a nomenclatura mais moderna utilizada nos IVAs de outros países. Um dos maiores desafios foi desenhar o fato gerador: bens e serviços? E as locações, que, no caso peculiar do Brasil, não estão incluídas no conceito de serviço? E os intangíveis, também seriam bens? Ou os bens, dogmaticamente falando, abarcam apenas os corpóreos?
Neste texto curto não cabem as reflexões sobre todas as questões, mas um exemplo pode ajudar a entender a proposta. Uma das formas de tratar os intangíveis e as locações foi prever a incidência sobre a cessão e o licenciamento de direitos. Numa segunda versão, essa expressão foi mais detalhada para explicitar que a incidência se daria sobre a cessão e o licenciamento dos direitos de uso. Esse detalhamento daria mais legalidade ao desenho do imposto e realmente parecia trazer mais segurança jurídica ao IBS. Uma semana depois, em um dos eventos realizados na FGV Direito SP para debate do projeto, surgiu o primeiro problema: e o licenciamento do direito de comercialização (no caso, eram softwares)? Voltamos apenas a “cessão e licenciamento de direitos”…
Esta situação demonstrou que, quanto mais geral e quanto mais simples o desenho do sistema tributário, inclusive no que diz respeito à incidência dos tributos, maior a sua adequação aos casos particulares e, portanto, menor seu nível de contencioso e sua necessidade de atualização diante dos novos negócios.
A segurança jurídica aumenta quando se mantém na incidência do IBS as utilidades que devem ser alcançadas pelos tributos sobre o consumo (clareza quanto aos objetivos da tributação). Tivesse passado o “uso”, poderíamos assistir daqui a alguns anos o Supremo Tribunal Federal discutindo se o licenciamento do direito de comercializar equivaleria ou não ao licenciamento do direito de usar: seria o direito de comercializar o mero uso do direito do proprietário de comercializar?
Fonte: Valor – 27/08/2018
Por Vanessa Rahal Canado
Vanessa Rahal Canado é mestre e doutora em direito pela PUC-SP, professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, diretora do CCiF e advogada em São Paulo.