LITIGIOSIDADE SEM FIM
Justiça Federal recebeu 900 mil novas ações tributárias no último ano
Thiago Crepaldi
8 de junho de 2024
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Federal 2024, lançado no Supremo Tribunal Federal. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).
Se no Direito Previdenciário está a clientela pobre da Justiça Federal, é no Tributário que estão os responsáveis pelo PIB do país. Para se livrarem de autuações milionárias, grandes escritórios são contratados e advogados bem qualificados se esmeram em teses para fugir da voracidade do Fisco sobre os resultados de seus clientes, com ações que atingem cifras de bilhões. As contendas tributárias responderam por 13% das demandas recebidas em 2023 pela Justiça Federal, segundo o DataJud, do CNJ.
Enquanto na Justiça Estadual predominam as causas de Direito Privado, na Justiça Federal o Direito Público é que lidera. “O Direito Tributário escorre nas varas”, afirma Carlos Delgado, desembargador federal do TRF-3, que trocou a magistratura estadual paulista pela federal por esse motivo.
65% da demanda está concentrada nos TRFs da 3ª e 4ª Regiões
O contribuinte é tributado até em cima do que o Fisco teve de lhe devolver: essa previsão consta no Ato Declaratório Interpretativo 25 da Receita, de 2003, de que na repetição de indébito tributário (devolução em caso de recolhimento a maior) há tributação. O ato prevê, inclusive, que juros incidentes sobre os valores recuperados são receitas novas, sobre as quais incidem IRPJ, CSLL, PIS e Cofins.
De acordo com dados da Receita Federal, a arrecadação federal somou R$ 2,318 trilhões em 2023 – melhor resultado desde 1995 e que superou em cerca de R$ 100 bilhões o valor de 2022.
A Justiça Federal gaba-se de ser o único ramo da Justiça que é superavitário: gera uma receita de R$ 17,5 bilhões, contra despesa de R$ 12,5 bilhões. A maioria das receitas vem de dívidas pagas à Fazenda Pública por ordem judicial. Dos R$ 33 bilhões arrecadados em execuções fiscais pelos diferentes entes federativos (União, estados e municípios), cerca de R$ 17,5 bilhões vêm da Justiça Federal. Os dados são do relatório “Justiça em Números 2023”, do Conselho Nacional de Justiça, referente ao ano de 2022.
Juízes federais deram ordens para recuperar quase R$ 40 bilhões no total de execuções fiscais e não fiscais apenas em 2022. Desse montante, R$ 17,5 bilhões se deram na recuperação de créditos fiscais devidos à União; e outros R$ 22 bi no reconhecimento de direitos previdenciários e sociais à população, por meio de precatórios e requisições de pequeno valor, especialmente do INSS.
Sediado em São Paulo, o estado mais rico do país e com a maior concentração de empresas, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região foi quem sempre teve maior proeminência na área tributária, tanto em relação à quantidade de processos distribuídos e julgados quanto pelo número de recursos selecionados como representativos de controvérsias levados aos tribunais superiores. Na segunda posição, está o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Arrecadação de tributos federais em 2022
IRPJ e IRPF, Cofins, CSLL, PIS são os impostos e contribuições que mais contribuem para a arrecadação da União. Não por acaso são os que mais contribuem para a judicialização em matéria tributária. Para os especialistas a judicialização nessa área se dá também em razão das constantes mudanças nas regras jurídicas atinentes a esses tributos.
“A judicialização desses tributos ocorre justamente pela divergência de entendimentos sobre os critérios estabelecidos para a base de cálculo das cobranças. É notável que desde o momento em que o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento do conceito de ‘faturamento’, inúmeras foram as ações ajuizadas, com o objetivo de excluir determinados tributos do cômputo das respectivas bases de cálculos. Isso ocorre, pois a União exige os referidos tributos com a incidência de outras exações na base de cálculo”, explica o advogado tributarista Angelo Paschoini, do escritório Paschoini Advogados.
“Além de as normas serem muito mal redigidas, utilizam-se vastamente de conceitos jurídicos indeterminados, o que dificulta a interpretação dos contribuintes”, diz Fernando Facury Scaff, advogado sócio do Silveira Athias e professor de direito financeiro da USP.
Mário Luiz Oliveira da Costa, sócio do Dias de Souza Advogados, destaca, ainda, a complexidade do nosso sistema tributário, com dezenas de tributos municipais, estaduais e federais objeto de ampla normatização, constantemente alterada. “Em geral, as regras não são claras, a carga tributária é muito elevada, não há confiabilidade e boa-fé nas relações entre Fisco e contribuintes (muitas vezes, de ambas as partes) e a jurisprudência, tanto nas esferas administrativas quanto nas judiciais, é instável e imprevisível, quando não errática”, afirma.
Contribuintes aguardam decisão final
O tributarista cita o exemplo do PIS e da Cofins: quando apurados na sistemática não cumulativa, as alíquotas são praticamente triplicadas em relação à sistemática cumulativa, “o que acaba por gerar inúmeras controvérsias entre Fisco e contribuintes acerca dos critérios para sua apuração. As principais discussões são atinentes a quais insumos e despesas dão direito a crédito na sistemática não cumulativa, além da chamada tese do século (exclusão do ICMS de suas bases de cálculo, cujo mérito já foi definido pelo STF, mas que ainda é objeto de milhares de processos judiciais em curso) e outras controvérsias sobre quais verbas devam ou não ser consideradas como receita tributável”.
Quanto ao IRPJ e à CSLL, Costa explica que as principais discussões se referem ao que deve ser considerado renda ou lucro tributáveis, inclusive quanto à amortização de ágio em diversas situações.
A judicialização dos impostos
O desembargador Mairan Maia, do TRF-3, comenta que são esses os casos que mais têm chegado à sua apreciação na 2ª Seção. Dizem respeito à incidência do ICMS na base de cálculo de PIS/Cofins (Tema 69 do STF – RE 574.706) e suas teses filhotes: incidência do ISS/PIS/Cofins na base de cálculo de PIS/ Cofins – aplicação por analogia do tema anterior; a incidência do IRPJ e da CSLL sobre a taxa Selic recebida pelo contribuinte na repetição do indébito (Tema 962, STF), no levantamento dos depósitos judiciais (Tema 504, STJ), entre outros. Em dezembro, decidiu a 1ª Seção do STJ que o ICMS-ST também não compõe a base de cálculo de PIS e Cofins, outra importante vitória dos contribuintes.
De acordo com Maia, o volume decorre, em grande parte, da tentativa de se estender teses fixadas pelas Cortes Superiores a hipóteses análogas àquelas apreciadas sob o procedimento dos recursos representativos de controvérsia. “Ademais, a tese fixada no julgamento do tema 69/STF – e consequente modulação de efeitos – ainda gera grande repercussão no âmbito das turmas (aplicação a outros tributos) e da seção (ações rescisórias ajuizadas com vistas a assegurar a modulação de efeitos determinada pelo Supremo).”
Maiores demandas da Justiça Federal
Especialistas alertam que é preciso respeitar um tempo de maturação até que tudo chegue às cortes superiores, mas que as discussões não podem se eternizar. “Nada justifica que o STF tenha demorado 22 anos para definir o entendimento sobre a chamada tese do século”, diz Mário da Costa. A tese começou a ser examinada pelo STF no RE 240.785 em novembro de 1998; o primeiro julgamento teve início em setembro de 1999 e a decisão final ocorreu apenas em maio de 2021, no RE 574.706. “Isso aumentou exponencial e desnecessariamente os valores envolvidos, os impactos na arrecadação e a suposta necessidade de modulação dos efeitos da decisão final”, afirma.
“É ruim, para o Poder Judiciário, ficar muito tempo com entendimentos conflitantes, dependendo da turma ou do tribunal que julga o processo. Isso causa insegurança e acaba resvalando no princípio da isonomia. É inegável que o contribuinte que consegue fazer valer a sua tese diminui a sua carga tributária e tem o seu poder de concorrência reforçado”, diz o desembargador Carlos Delgado.
A reiterada modulação de efeitos de decisões favoráveis aos contribuintes, no sentido de assegurar sua aplicação a pagamentos anteriores apenas a quem possua prévios processos em curso, também acaba por sinalizar às empresas que, na dúvida, é melhor ajuizar uma ação, para não correr o risco de deixar de recuperar valores indevidamente despendidos. Um recado ruim do Judiciário aos contribuintes, pensam os advogados.
Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio do Bichara Advogados, ao agir assim, “o STF sinaliza claramente que o contribuinte deve ingressar sempre com a medida judicial, sob pena de não poder recuperar os valores indevidamente recolhidos”.
Levantamento do Anuário da Justiça Brasil 2023 com base em decisões tributárias paradigmáticas julgadas em 2022 indica que o Supremo equilibrou-se entre decisões favoráveis ao Fisco e ao contribuinte. Mas em decisões de grande impacto econômico para a União, a corte pendeu para o Estado.
Já no STJ, levantamento similar concluiu que há tendências diferentes entre as duas turmas. A 1ª Turma decidiu 61% dos casos analisados em favor dos contribuintes enquanto a 2ª Turma votou em 52% das decisões favoravelmente ao Fisco.
Os advogados da área costumam criticar o que classificam como “uma jurisprudência de defesa” dos tribunais de base, com reiteradas negativas de subida de recursos aos tribunais superiores, com excessos de decisões individuais pelos relatores e decisões não uniformes. Reclamam dos julgamentos virtuais sem debates efetivos entre os julgadores e sem a presença dos defensores. Quem sabe com a reforma tributária recém-aprovada as discussões finalmente terminem. Mas o futuro não parece nada alvissareiro: o governo terá de regular, por leis complementares, pelo menos 71 pontos da reforma. Um novo cipoal de normas está por vir.