Preâmbulo
Conforme o começo do fim da reforma da Previdência se aproxima, os debates sobre a esperada reforma tributária, que já vinham protagonizando discussões acaloradas desde a apresentação da Proposta de Emenda Constitucional 45, caminharam para o palco principal.
Diante da relevância do tema, resolvi escrever uma série de artigos para a ConJur sobre reforma tributária. Este primeiro texto se dedicará a analisar os pilares de uma reforma ideal do sistema tributário nacional. Após este artigo, escreverei um texto sobre cada uma das principais propostas apresentadas para debate.
1. Uma reforma, diversos conflitos
Em alguns debates sobre reforma tributária parece haver subjacente um certo desprezo pelas dificuldades envolvidas na sua realização. É como se a mesma nunca tivesse sido implementada por acomodação, falta de patriotismo, parcialidade em favor da complexidade etc.
A verdade, porém, é que uma reforma tributária expõe conflitos que não são simples de ser superados.
Em primeiro lugar, considerando o modelo de federalismo fiscal presente na Constituição Federal de 1988, uma reforma tributária evidencia conflitos intrafederativos complexos. União Federal de um lado, estados e municípios de outro; estados entre si; municípios entre si; e estados contra municípios. Os interesses dos diversos entes federativos não são necessariamente alinhados.
Além desses conflitos intrafederativos, há conflitos entre o Estado (considerado aqui em sentido amplo) e os contribuintes. Para o Estado, a tributação é instrumental para a manutenção de um determinado nível de arrecadação, necessária para o custeio das atividades públicas. Portanto, enquanto os contribuintes buscam a redução da carga tributária, não raro as reformas tributárias acabam resultando no seu incremento.
Em acréscimo à questão da carga tributária em si, a questão federativa gera um outro nível de conflito entre Estado e contribuintes, relativo à complexidade do sistema tributário nacional. Com efeito, os diversos níveis de competência tributária criam um emaranhado complexo, difícil de interpretar, além de sobreposições de competência que várias vezes colocam o contribuinte no centro de disputas interfederativas.
Por fim, há conflitos entre contribuintes. Não há um modelo que seja igualmente vantajoso para empresas de todos os setores, embora a neutralidade deva ser um vetor de qualquer sistema tributário. Em parte, um número considerável das complexidades do sistema atual é decorrente da luta por tratamentos fiscais diferenciados. Assim, quando se inicia o debate a respeito de uma reforma tributária abrangente, naturalmente começam as análises setoriais sobre a defesa do melhor regime de tributação.
Percebe-se, portanto, que a incapacidade de realização de uma reforma tributária que redefina os marcos do sistema tributário nacional não é sinal de desinteresse ou acomodação. Trata-se de uma reforma das mais difíceis, talvez até mais difícil do que a reforma da Previdência, se considerarmos os aspectos políticos envolvidos.
2. Em busca da reforma tributária ideal
Nas discussões atuais sobre reforma tributária, temos um verdadeiro samba de uma nota só: simplificação. É uma preocupação razoável, já que não há a menor dúvida de que, para um número significativo de contribuintes, o sistema tributário nacional é complexo.
Contudo, a complexidade não atinge a todos. Talvez para a maioria dos contribuintes pessoas jurídicas, que pagam seus tributos pelo Simples ou pelo lucro presumido, a complexidade não seja o maior dos problemas. Porém, para as grandes empresas, que são responsáveis pela maior fatia da arrecadação, certamente a complexidade é uma característica inafastável da tributação.
Portanto, podemos estabelecer que um dos pilares de uma reforma tributária ideal é a simplificação.
Outro aspecto fundamental em uma reforma tributária é a consideração das já referidas questões federativas.
Recentemente, quando se apresenta qualquer argumento relacionado à necessidade de manutenção da integridade do pacto federativo, ele é recebido com desdém. Alega-se que não se pode deixar que questões jurídicas se imponham à eficiência econômica. Contudo, esta é uma das funções da Constituição: impor os direitos fundamentais e demais cláusulas pétreas à eficiência econômica utilitarista.
Portanto, a discussão federativa não é irrelevante, não é “juridiquês” inerte. A adoção de uma reforma tributária que esteja alinhada ao modelo federativo brasileiro é um dos pilares de uma reforma tributária ideal.
Um terceiro pilar que deve orientar uma reforma tributária, e certamente o mais esquecido, é a justiça. A justiça de um sistema tributário deve levar em consideração diversos aspectos: (a) a carga tributária; (b) a distribuição da carga tributária pelos fatos econômicos; e (c) a alocação da carga tributária em função da capacidade econômica dos contribuintes.
Além desses aspectos, uma reforma tributária ideal deve se projetar para o futuro. O sistema tributário nacional foi estruturado sobre fatos econômicos típicos da economia industrial. Uma reforma tributária disruptiva deve ser capaz de alcançar os fatos econômicos da economia digital, ao menos aqueles que podemos antever.
Estabelecidos os pilares de uma reforma tributária ideal, nos itens a seguir comentaremos com um pouco mais de detalhes cada um deles, a começar pelo que nos parece mais relevante, uma vez que deve pautar os demais: a justiça.
3. Reforma tributária ideal deve ser justa
O primeiro pilar de uma reforma tributária ideal é a justiça. A divisão dos encargos fiscais entre os cidadãos deve ser justa e pautada pelo valor da solidariedade, conforme previsto no artigo 3º, I, da Constituição Federal.
A solidariedade significa que o sistema fiscal deve ser orientado por impostos que levem em conta a capacidade econômica dos contribuintes, fazendo com que aqueles que têm maior capacidade contributiva arquem com o custo de serviços públicos que na maioria das vezes não os beneficiam diretamente, mas, sim, àqueles mais pobres que muitas vezes não têm condições de contribuir.
Neste contexto, uma primeira discussão que surge ao se considerar a justiça do sistema é a carga tributária em si. É muito comum argumentar-se que a carga tributária brasileira é alta. Essa percepção é anabolizada pelos diversos casos de corrupção e má administração dos recursos públicos.
Contudo, a carga tributária não pode ser considerada alta ou baixa em abstrato. O quanto um país deve arrecadar é uma função das despesas públicas.
Considerando a situação de déficit orçamentário estrutural que o Brasil tem enfrentado nos últimos anos, é consenso que, no curto e talvez no médio prazo, não é possível uma redução da carga tributária. Reduzir a carga tributária seria uma medida de injustiça financeira, na medida que exporia o país a riscos de desequilíbrio orçamentário que colocariam em xeque desde o financiamento de despesas com saúde e educação até o pagamento de salários, aposentadorias e pensões.
Ora, se a carga tributária não pode ser reduzida neste momento, a questão principal é como ela deve ser distribuída.
Uma crítica rotineiramente feita ao sistema tributário nacional é que ele é injusto por ser regressivo. Um tributo regressivo incide com uma única alíquota, independentemente da capacidade econômica daquele que suporta seu encargo financeiro. Vejamos o seguinte exemplo.
Imaginemos uma mercadoria que custa R$ 300, que está sujeita a um tributo cuja alíquota é 10% (o custo fiscal seria R$ 30). Esta mercadoria é adquirida por quatro pessoas: A, que tem uma remuneração mensal de R$ 1 mil; B, que recebe R$ 10 mil; C, que recebe R$ 100 mil; e D, que recebe R$ 1 milhão por mês. Na tabela abaixo, vemos o peso da tributação para cada indivíduo.
A | B | C | D |
---|---|---|---|
3% | 0,3% | 0,03% | 0,003% |
Como regra, os mais pobres consomem integralmente a sua renda. Assim, no exemplo acima, teríamos que o sujeito A pagaria 10% de sua renda a título de tributo. Por mais que consumisse muito mais que o sujeito A, o indivíduo D talvez não tivesse 1% de sua renda tributada.
Percebe-se que, quanto maior a riqueza, menor é o impacto da tributação. Esse modelo é o contrário de um sistema justo, que tributa a renda das pessoas (seja ela poupada ou consumida) de forma progressiva, aumentando a alíquota do tributo conforme a capacidade contributiva aumenta.
De todos os tributos já criados, nenhum é capaz de levar em consideração a capacidade econômica individual dos contribuintes como o Imposto de Renda. Não é que ele seja perfeito na captura da capacidade contributiva, mas certamente é superior a todos os demais.
Dessa forma, podemos estabelecer que o segundo critério para uma reforma tributária justa é a redução da regressividade do sistema tributário nacional com a recuperação da capacidade de arrecadação do Imposto de Renda.
Por último, se o foco de um sistema tributário justo é a distribuição da carga tributária entre aqueles que têm capacidade de contribuir, é razoável que ela seja alocada em diversos fatos econômicos. A ideia de um tributo único, por mais sedutora que seja, tende a permitir uma elisão sistemática, principalmente para aqueles que têm mais recursos. Desta forma, uma reforma tributária justa considerará algumas bases de incidência distintas, sempre indicativas da capacidade econômica para contribuir.
4. Reforma tributária deve respeitar o pacto federativo
A esta altura dos debates sobre reforma tributária, sabe-se duas coisas: (i) a autonomia financeira é parte integrante da autonomia federativa; e, portanto, (ii) qualquer proposta de reforma tributária terá, obrigatoriamente, que levar em consideração a questão federativa.
Como apontamos anteriormente, falar em preservação da federação não é “juridiquice” ou objeção de advogados receosos de perderem seu espaço para economistas. A preservação do modelo federativo é cláusula pétrea, que nem mesmo emendas à Constituição podem alterar (artigo 60, parágrafo 4º, I, da Constituição Federal).
Embora pareça unânime que a preservação do pacto federativo é requisito essencial de qualquer proposta de reforma tributária, há controvérsia a respeito de como tal autonomia financeira deve se concretizar: se pela atribuição de competências tributárias a cada ente federativo ou se mediante o rateio de receitas tributárias.
Há quem defenda que a única forma de estruturar um sistema tributário em conformidade com a Constituição é que os entes federativos tenham competências tributárias próprias relevantes e que partilhem a arrecadação federal (estados e municípios) e estadual (municípios). De outro lado, há aqueles que sustentam que basta a repartição de receitas, que garanta aos entes subnacionais recursos suficientes para fazer face às suas despesas, para que se respeite o pacto federativo.
Caso seja aprovada uma reforma tributária que coloque um fim a tributos estaduais e municipais de grande força arrecadatória, esta questão — de quebra do pacto federativo — terá que ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, não se deve jamais tratar este tema como irrelevante.
Naturalmente, se a discussão é sobre tributos estaduais e municipais, eventual reforma nesse sentido requererá um difícil consenso político. Sendo o mesma alcançado, com a proposta sendo acolhida por estados e municípios, sua legitimidade será mais forte. Contudo, uma reforma que exclua as competências estaduais e municipais contra sua manifestação — manifestação dos estados enquanto entes políticos, não por meio de sua representação no Senado Federal — enfrentará uma difícil discussão de legitimidade constitucional.
5. Reforma tributária e simplificação
É inquestionável que o sistema tributário nacional deve ser simplificado. Nada obstante, como vimos, a simplificação não é um valor absoluto. Ela deve ser buscada, mas não pode ser alcançada às custas da justiça do sistema ou da manutenção do pacto federativo.
Assim, já podemos rejeitar qualquer proposta que, como instrumento de simplificação, gere maior regressividade; que a pretexto de “alargar” a base tributária distribua a mesma para aqueles que não teriam capacidade econômica para contribuir ou onerem os mais pobres com a mesma carga que os mais ricos; ou, ainda, que coloque em xeque a autonomia financeira dos entes federativos.
A existência de limites para a simplificação não significa, de maneira alguma, que haja pouca margem para a mesma. Somente na tributação federal há muito o que fazer em termos de eliminação de incidências, simplificação de bases, fusão de tributos, redução de deveres instrumentais etc.
No campo da tributação estadual igualmente, há bastante a ser feito em termos de harmonização sem que seja necessária a sua extinção. O mesmo se diga da tributação municipal.
Portanto, não há dúvidas de que uma proposta de reforma tributária que não leve em consideração a demanda por simplificação certamente não atenderá aos anseios de parcela significativa do empresariado brasileiro. Dessa maneira, a reforma tributária ideal simplificará o sistema tributário nacional. Contudo, não a qualquer custo, mas sendo pautada pelos valores justiça e solidariedade e pela manutenção do pacto federativo.
6. Projeção para o futuro
Como mencionamos, uma das grandes críticas ao sistema tributário nacional é que o mesmo se estruturou sobre fatos econômicos da economia industrial. Necessita-se, agora, de um sistema tributário 4.0, que se projete para o futuro.
Nessa linha de ideias, qualquer proposta de reforma tributária deve ter em conta o futuro. Não só os fatos econômicos do futuro, que se apresenta já como presente, mas a própria forma de circulação de riquezas. Por exemplo, na alvorada das criptomoedas, quando tanto se fala no potencial disruptivo da libra, a moeda virtual desenvolvida pelo Facebook, seria razoável estruturar um sistema tributário baseado na circulação financeira de moeda?
Temos insistindo que não existe uma “economia digital”, mas, sim, diversas faces da digitalização da economia, que geram desafios tributários absolutamente distintos e independentes. Os desafios de qualificação dos fatos econômicos não são os mesmos da tributação das plataformas digitais, os desafios internacionais de divisão das receitas tributárias não são os mesmos da impressão 3-D, os desafios da robótica avançada não são os mesmos da tributação dos gigantes da informática.
É claro, portanto, que uma proposta de reforma tributária deve ter em conta os efeitos da digitalização da economia, sob pena de se tornar o sistema incapaz de arrecadar os recursos necessários para financiar as despesas públicas.
7. Conclusão
Não temos a pretensão de esgotar um tema tão complexo nos limites de um artigo como este. A finalidade deste texto era colocar as premissas que serão a base da análise das propostas em discussão.
Por Sergio André Rocha
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jul-18/sergio-rocha-justica-entre-pilares-reforma-tributaria-ideal