Muito se debate quanto aos limites e as justificativas do Estado Brasileiro para, por meio da tributação, se apropriar da riqueza dos seus cidadãos. Dentre os tantos princípios de direito tributário, o princípio da solidariedade evoca a noção de que todos os indivíduos devem contribuir para financiar as necessidades públicas. Entretanto, não se encontram com facilidade brasileiros que enxerguem, na prática, boas razões para entregar uma parcela do seu patrimônio duramente construído ao longo dos anos para o Estado, sob a promessa de financiamento das despesas de todos.
Este é o caso, por exemplo, daqueles que pretendem transmitir bens do seu patrimônio ou receber bens de maneira gratuita, seja por meio de doação em vida, seja por meio de herança ou legado obtidos por conta de um evento morte. Nesses casos, há incidência do controverso Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, conhecido como ITCMD ou ITCD, a depender do estado em que é cobrado.
Enquanto a maioria das atenções e discursos eleitorais se voltam às discussões sobre a majoração da alíquota do imposto – no Brasil o ITCMD possui atualmente um teto de apenas 8% e na maioria dos estados a alíquota é planificada em 4%, havendo proposta no Senado de elevação da alíquota a 20% – e sobre a instituição de um Imposto sobre Grandes Fortunas, fato é que a base de cálculo do imposto traz grandes lacunas que geram insegurança jurídica e ajudam a causar verdadeira regressividade do tributo para aqueles que podem realizar planejamentos agressivos.
O Código Tributário Nacional (Lei nº 5.712/66 – CTN) e as leis estaduais que tratam do ITCMD definem que a base de cálculo é, em regra, o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. Por sua vez, o valor venal de um bem é entendido como aquele montante que reflete o seu valor de mercado. Não sendo possível a apreensão de valor de mercado, as leis que tratam do ITCMD preveem outras bases, a citar o valor patrimonial dos direitos transmitidos.
Entretanto, as mesmas leis pouco dizem sobre a forma e os procedimentos para a aferição do valor venal, não sendo possível auferir com clareza e quantificar no caso concreto a base de cálculo do ITCMD. A consequência direta é a dificuldade de definir o quanto de imposto seria devido aos cofres públicos, dando margem para o Fisco manipular a base de cálculo em seu favor, bem como abrindo caminho para planejamentos tributários agressivos e, muitas vezes, abusivos.
Nesse sentido, destacamos sucintamente as disputas no caso de bens e direitos tradicionalmente objetos de planejamentos, quais sejam, (i) imóveis urbanos, (ii) imóveis rurais e (iii) ações, quotas e títulos representativos de participação em sociedades. Já que cada estado possui a sua própria legislação, para esta análise utilizou-se o Estado de São Paulo como referência, onde há um grande fluxo de operações do tipo.
Imóveis Urbanos
Quanto aos imóveis urbanos, a Lei nº 10.992/01 (referida como a Lei Paulista do ITCMD) prevê que o valor da base de cálculo não seja inferior ao valor venal que é fixado para o IPTU. Por sua vez, o Decreto nº 46.655/02 (o Decreto Paulista do ITCMD), editado pelo Poder Executivo (de que faz parte a Fazenda Pública do Estado de São Paulo) com o intuito de regular a própria Lei, prevê que a base de cálculo seja a do valor venal de referência para a cobrança do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis, o ITBI.
Ou seja, a Lei Paulista do ITCMD define como regra geral que o valor venal para imóveis urbanos não será inferior aos os valores venais divulgados para fins de cobrança do IPTU. No entanto, de maneira conflitante, o Decreto Paulista do ITCMD traz que o imposto poderá adotar os valores venais divulgados para fins de cálculo do ITBI.
Tradicionalmente, o Fisco exige que os contribuintes se utilizem do valor venal divulgado para fins de cálculo do ITBI, e isso ocorre porque é a base de cálculo mais onerosa. Nos casos em que há o emprego do valor venal divulgado para fins de cobrança do IPTU, as autoridades fiscais também autuam o contribuinte, já que, no seu entendimento, o valor venal, por definição, deve refletir o valor de mercado do imóvel, o que geralmente não é o caso dos valores venais divulgados pelas prefeituras.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP)1 tem entendimento no sentido de que o contribuinte está correto ao utilizar os valores venais divulgados para o IPTU, já que o Decreto Paulista do ITCMD não poderia ter disposto uma base de cálculo diferente daquela prevista por lei e, por consequência, majorado o imposto devido. Por outro lado, ressalva-se que o TJ-SP2 vem permitindo ao Fisco em alguns casos calcular e se utilizar do valor de mercado dos imóveis por meio de procedimento administrativo de arbitramento, aumentando o valor da base de cálculo.
Imóveis Rurais
Quanto aos imóveis rurais, para além da regra geral de que o valor venal corresponde ao valor de mercado do bem, a Lei Paulista do ITCMD dispõe que o valor venal do imóvel rural não será inferior ao valor da terra nua (VTN) declarado pelo próprio contribuinte para fins de cobrança do Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural, o ITR. De maneira conflitante, o Decreto Paulista do ITCMD dispõe que poderá ser adotada base de cálculo que corresponda ao valor médio da terra nua divulgado pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, o que, administrativamente, cabe ao Instituto de Economia Agrícola (IEA).
Pelo fato de os valores para fins de cobrança do ITR geralmente serem modestos, o Fisco não tem aceitado a sua utilização para a cobrança do ITCMD, apesar da previsão em lei. Nesse sentido, por vezes se utiliza dos valores divulgados pelo IEA, os quais, entretanto, são problemáticos pois não refletem cálculos cuidadosos. Outras vezes, porém, o Fisco simplesmente realiza uma suposta avaliação de valor de mercado, majorando ainda mais a base de cálculo do ITCMD.
Na mesma linha do que dispõe para os imóveis rurais, o TJ-SP possui julgados3 rejeitando a base de cálculo prevista pelo Decreto Paulista do ITCMD. O Tribunal entende que somente seria permitido ao Fisco utilizar o valor médio da terra nua aferido pelo IEA como base de cálculo caso fosse previsto por lei, e não por decreto. Entretanto, já que a Lei Paulista do ITCMD garante ao contribuinte a utilização dos valores divulgados para fins de cobrança do ITR, este deve ser o parâmetro, por mais que o haja um descompasso com os valores que supostamente equivaleriam aos de mercado.
Ações e quotas de sociedades
Quanto a ações e quotas de sociedades, a Lei Paulista do ITCMD prevê métodos específicos para a determinação da base de cálculo. Para as ações de sociedades anônimas de capital aberto, a legislação diz que o valor é aquele determinado segundo a sua cotação média na Bolsa de Valores. No caso de ações de sociedades anônimas de capital fechado, quotas de sociedades limitadas, participações ou quaisquer títulos representativos de capital social negociados nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, a lei manda adotar o valor das transações. Caso não tenham sido negociados neste período, o comando é o de que prevaleça o valor patrimonial de tais títulos.
Os problemas surgem, no entanto, com relação ao conceito de valor patrimonial. São frequentes as controvérsias em planejamentos patrimoniais e sucessórios envolvendo as conhecidas holdings imobiliárias (sociedades criadas para deter e gerenciar patrimônio de imóveis) cujas ações ou quotas não foram negociadas nos últimos 180 dias. A questão é que, em muitos casos, criam-se sociedades empresariais com a finalidade principal ou única de economizar ITCMD sem que, ao mesmo tempo, essas sociedades possuam uma atividade empresarial. Ou seja, cria-se uma “sociedade casca”, inexistindo verdadeira empresa.
Tradicionalmente, estrutura-se a holding imobiliária integralizando na formação do capital social os bens que se pretende doar. Muitas vezes esses bens são imóveis detidos por pessoas físicas, os quais são transferidos para as pessoas jurídicas de acordo com o valor constante da declaração de bens (conhecido também como valor histórico ou “valor de livro”). Por sua vez, este valor é quase sempre menor que o valor de mercado do imóvel ou ainda que os valores venais do IPTU, ITBI ou o VTN do ITR.
Em seguida, realiza-se a doação das ações ou das quotas adotando-se como base de cálculo a fração que elas representam com relação ao capital social, que, geralmente, corresponde a uma fração valor histórico dos bens integralizados. Para o contribuinte, este seria o valor patrimonial, base de cálculo prevista para o ITCMD. Com isso, alega respeitar o que dispõem a Lei e o Decreto do ITCMD e, ao mesmo tempo, consegue uma economia tributária vantajosa se comparada a uma doação de imóveis rurais ou urbanos com base nos valores venais de IPTU, ITBI ou o VTN do ITR.
Por sua vez, o Fisco rebate a questão com dois argumentos principais. No primeiro deles, diz que o contribuinte, quando monta uma “sociedade casca” e doa suas quotas, está na verdade simulando uma doação de imóveis, motivo pelo qual a base de cálculo correta seria a prevista para imóveis urbanos e rurais. No segundo, o qual não depende do argumento da simulação, afirma que o significado de valor patrimonial exige que os ativos da sociedade tenham o seu valor atualizado, motivo pelo qual a base de cálculo do ITCMD deveria ser majorada.
Nesses casos, as decisões do TJ-SP costumam dar razão para o contribuinte4. Em primeiro lugar, o Tribunal considera que há uma efetiva doação de quotas, e não de imóveis. Ademais, o TJ-SP afirma que a Lei do ITCMD, ao prever o valor patrimonial como base de cálculo para ações e quotas não negociadas, não realizou uma distinção entre valor patrimonial atualizado ou desatualizado. Sendo assim, o contribuinte poderia escolher a base de cálculo que melhor lhe aprouvesse até o momento em que o poder legislativo altere a lei e especifique o conceito de valor patrimonial.
Muitas discussões, pouco consenso
Todos os apontamentos feitos até então tomaram por base o Estado de São Paulo, mas é necessário deixar claro que as discussões expostas não são as mesmas nos demais estados. Por exemplo, em Minas Gerais, na apuração dos valores venais dos imóveis urbanos e rurais, o Fisco os contesta em procedimentos administrativos de arbitramento, alcançando valores bem maiores do que os do IPTU e do ITR. Em se tratando de quotas de sociedade, é praxe que o Fisco recalcule os valores patrimoniais declarados, o que é aceito pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG)5.
Para além das divergências entre estados, há debates sobre a abusividade dos planejamentos patrimoniais e sucessórios. Discute-se se a economia de tributos, entendida como elisão tributária, seria lícita sob qualquer aspecto ou se encontraria alguma restrição nos princípios que orientam o ordenamento jurídico. Vai além dos possíveis casos de simulação como os de “sociedades casca” para discutir se, por exemplo, há um dever de pagar tributos que se impõe sobre o direito de economizar.
No final, todas essas discussões acabam inevitavelmente por esbarrar em questões fundamentais sobre como o Estado deve se financiar, quem deve, quanto e por que pagar tributos. De todo modo, quando a lei não diz com clareza quais são as regras do jogo, há margem tanto para planejamentos lícitos em defesa do patrimônio quanto para aqueles mais agressivos buscando máxima economia (nem sempre justificada) e que acabam por tornar o sistema tributário ainda mais injusto, ocasionando uma enxurrada de autuações fiscais, seja em defesa do interesse público, seja para financiar os custos de um Estado mal administrado à beira da bancarrota.
Cabe ao contribuinte se munir de informações e avaliar se está entregando ou não para o Estado mais dinheiro do que deveria, seja decidindo pela manutenção do status quo, seja pela adesão a um planejamento mais seguro ou, se for o caso, pelo enfrentamento do Estado pelas vias judiciais. Mesmo que seja possível prever as consequências de cada escolha, tudo depende, ao final, do posicionamento do Poder Judiciário e do jogo de poderes e interesses que existe, mas que muitas vezes não se vê.
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1 Apelação nº 1024441-39.2018.8.26.0053, julgada e publicada em 19.12.2018. 5ª Câmara de D. Público, Relator Nogueira Diefenthaler; Apelação nº 1005484-61.2017.8.26.0073, julgada e publicada em 13.12.2018. 9ª Câmara de D. Público, Relator Décio Notarangeli.
2 Apelação nº 1014428-53.2015.8.26.0451, julgada e publicada em 19.12.2018. 2ª Câmara de D. Público, Relator Renato Delbianco; Apelação nº 1031298-04.2018.8.26.0053. 5ª Câmara de D. Público, Relatora Maria Laura Tavares.
3 Apelação nº 1007050-12.2018.8.26.0008, julgada e publicada em 18.12.2018, 12ª Câmara de D. Público, Relator Souza Nery; Apelação 1015274-66.2016.8.26.0344. 8ª Câmara de D. Público, julgada e publicada em 27.09.2018, Relator Bandeira Lins.
4 Apelação nº 1005873-09.2016.8.26.0032, publicada em 20.06.2018. 11ª Câmara de D. Público, Relator Marcelo Theodósio. Apelação nº 1025975-54.2017.8.26.0602, publicada em 23.04.2018. 12ª Câmara de D. Público, Relator Souza Meirelles. Apelação nº 1019008-54.2017.8.26.0032, publicada em 15.03.2018. 13ª Câmara de D. Público, Relator Djalma Lofrano Filho; Apelação nº 1005874-91.2016.8.26.0032, publicada em 19.12.2017. 5ª Câmara de D. Público, Relatora Maria Laura Tavares.
5 Apelação nº 0044269-78.2015.8.13.0223, publicada em 24.10.2017. 4ª Câmara Cível, Relator Dárcio Lopardi Mendes; Apelação nº 6004021-80.2015.8.13.0024, publicada em 07.12.2017. 8ª Câmara Cível, Relator Paulo Balbino.
Por
GABRIEL BARRETO
HUGO PALO
GABRIEL BARRETO – sócio do escritório Almeida Barreto, em São Paulo, e mestrando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
HUGO PALO – associado ao escritório Almeida Barreto, em São Paulo, e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: JOTA- 18/01/2019