Em meio aos debates sobre a urgente reforma tributária, os tributos sobre o consumo têm sido merecidamente carimbados como vilões, sobretudo ICMS e PIS/COFINS. Por seu maior impacto orçamentário, tais tributos têm concentrado a atenção de especialistas e mídia, ao passo que o Imposto Sobre Serviços (ISS) é escanteado do debate; o ISS é um coadjuvante óbvio – sobretudo quando se considera a tradição brasileira de centralização do poder nas esferas da União e dos Estados – mas que nem por isso deve ser esquecido.
Embora com menor importância econômica, o ISS tem provocado crises jurídicas para os prestadores de serviços. Uma delas diz respeito à aplicação do regime diferenciado de tributação das sociedades uniprofissionais (SUP), recentemente dificultada ao máximo por parte dos municípios.
O regime em questão é estabelecido pelo §3º do art. 9º do Decreto-Lei (Nacional) n. 406/68, segundo o qual o ISS é “calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável”. Essa sistemática vale para as sociedades que se dedicam a atividades intelectuais e personalíssimas, tais como medicina, advocacia, contabilidade, etc. Nesse regime, o ISS acaba sendo menos oneroso: o valor devido pelo contribuinte resulta da multiplicação de um valor fixo pelo número de “profissionais habilitados” para a atividade intelectual, e não da aplicação de uma alíquota sobre o resultado dos serviços (receita bruta), como acontece em geral.
A Prefeitura de São Paulo, assim como outras, tem procurado restringir indevidamente a mecânica do ISS das sociedades uniprofissionais, excluindo as sociedades que incorrem em diversas hipóteses locais que não estão na norma nacional de hierarquia superior (o citado Decreto-Lei). Cabem alguns exemplos desses pecados, recém inventados pelos reguladores municipais: registrar-se perante a Junta Comercial; constituir-se como sociedade por quotas de responsabilidade limitada (LTDA.); organizar-se com efetiva “estrutura empresarial”, e por aí vai, ao sabor da criatividade das secretarias de finanças.
A última dessas hipóteses tem gerado dificuldades: prefeituras têm promovido o desenquadramento de inúmeras SUP alegando a presença de “porte” ou “organização empresarial”, aspecto esse que é absolutamente ausente do Decreto-Lei nacional. Quanto ao Decreto-Lei, cabe tratar rapidamente de seu texto.
O §3º de seu art. 9º estabelece o regime diferenciado para as sociedades de profissionais cujas atividades envolvem – de maneira intrínseca e inafastável – a “responsabilidade pessoal” – responsabilidade que recai, sempre, sobre cada “profissional habilitado”. Que responsabilidade é essa? Não pode ser a responsabilidade societária, uma vez que, segundo o próprio §3º, o profissional atua “em nome da sociedade”. Resta então a responsabilidade técnica, funcional, à qual o sócio está sujeito pessoalmente enquanto “habilitado” para a profissão: ou seja, a do advogado perante a OAB, a do médico perante o CRM, a do contabilista perante o CFC, e assim por diante. O profissional carrega deveres inerentes à profissão.
Por isso é que o mesmo §3º afirma que essa responsabilidade é estabelecida “nos termos da lei aplicável”, isto é, conforme o respectivo regramento da categoria – o Estatuto da OAB, o Código de Ética Médica, etc. Uma vez credenciado e submetido às normas de sua profissão, um médico, por exemplo, ainda que atue em conjunto com sócios e auxiliares, jamais ficará à margem da possibilidade de responsabilização médica específica.
É esse o – único – critério do Decreto-Lei para a aplicação do regime diferenciado: haver o exercício da profissão pela pessoa coletiva, e estarem seus profissionais habilitados e sujeitos ao regramento próprio. Eventual “tamanho” e/ou “dinâmica” empresarial são fatores que a norma nacional não prevê como impeditivos. É preciso que isso seja percebido de modo definitivo, e há recentes precedentes animadores – cite-se a recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos 2214323-31.2019.8.26.0000, de 21/10/2019, em que a tutela foi concedida a uma multinacional da área de contabilidade. Obviamente, não se trata de um “vale-tudo”.
A sociedade não pode se dedicar a atividades estranhas às da profissão que diz praticar – haveria, nesse caso, mal uso grosseiro da norma. Não sendo essa a situação, porém, aplica-se de maneira plena a sistemática especial do Decreto-Lei, exista ou não complexidade funcional, tonalidade corporativa.
Na cruzada das prefeituras, o “porte empresarial” não passa de outro moinho de vento, como foram – e continuam sendo – a limitação por quotas, o registro em Junta Comercial, etc. A ilegalidade dessas hipóteses limitadoras é gritante.
Casos como o das Sociedades Uniprofissionais pedem uma solução definitiva e rápida, que não foi alcançada pela jurisprudência, que tem sido sistematicamente contornada pelas regras municipais. Em meio às discussões atuais, é importante que o ISS não estacione em um ponto cego, fora da visão e do bisturi das reformas nacionais.
Fonte: Estadão – 26 de fevereiro de 2020