Embora não seja de forma exclusiva, o setor do agronegócio, dada a sua importância e peculiaridade, de longa data tem obtido incentivos fiscais dos estados no tocante ao ICMS, por meio de vários instrumentos (crédito presumido, base de cálculo reduzida e incentivos de natureza financeira, entre outros).
Tais incentivos, em especial o crédito presumido do ICMS, seriam formas de renúncia financeira do Estado, por meio de uma ficção jurídica, já que não decorreria da aplicação da não cumulatividade.
Ocorre, porém, que a concessão de tais incentivos pode gerar, do ponto de vista contábil, uma redução ou diminuição de custos e despesas diante da forma como o ICMS restaria devido. Desse modo, haveria um suposto aumento do lucro a ser tributado a título de IRPJ e CSLL.
Essa interpretação, todavia, não é a mais adequada e, no momento atual, existem fortes elementos jurídicos para se impedir qualquer pretensão de se tributar essa hipótese.
A exigência do IRPJ e CSLL impõe a constatação, do ponto de vista jurídico e não meramente contábil, de um ganho/lucro com acréscimo patrimonial efetivo e incondicionado, com plena disponibilidade jurídica e econômica (artigo 153, III, CF/88; artigo 43, do CTN).
Portanto, um incentivo concedido por um estado da federação quanto à forma de apuração do ICMS, em verdade, não pode ser tributado, uma vez que, sob a perspectiva jurídica, esta suposta “redução” não causa lucro ou renda tributável com verdadeiro aumento patrimonial, com disponibilidade jurídica e econômica, sendo uma mutação meramente contábil.
Mais do que isso, esse posicionamento possui respaldo no respeito ao federalismo concebido pela Constituição Federal brasileira, tendo em vista que a tributação pela União da renúncia dos estados implicaria na anulação dos efeitos do incentivo concedido.
Não é por outra razão que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de 8 de novembro de 2017, nos autos dos Embargos de Divergência 1.517.492/PR, tendo como relatora a ministra Regina Helena Costa, pacificou o tema na 1ª Seção, em favor dos contribuintes, ao assentar que:
“TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. ICMS. CRÉDITOS PRESUMIDOS CONCEDIDOS A TÍTULO DE INCENTIVO FISCAL. INCLUSÃO NAS BASES DE CÁLCULO DO IMPOSTO SOBRE A RENDA DA PESSOA JURÍDICA – IRPJ E DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LÍQUIDO – CSLL. INVIABILIDADE. PRETENSÃO FUNDADA EM ATOS INFRALEGAIS. INTERFERÊNCIA DA UNIÃO NA POLÍTICA FISCAL ADOTADA POR ESTADO-MEMBRO. OFENSA AO PRINCÍPIO FEDERATIVO E À SEGURANÇA JURÍDICA. BASE DE CÁLCULO. OBSERVÂNCIA DOS ELEMENTOS QUE LHES SÃO PRÓPRIOS. RELEVÂNCIA DE ESTÍMULO FISCAL OUTORGADO POR ENTE DA FEDERAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO.
ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E DA COFINS. INCONSTITUCIONALIDADE ASSENTADA EM REPERCUSSÃO GERAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (RE N. 574.706/PR). AXIOLOGIA DA RATIO DECIDENDI APLICÁVEL À ESPÉCIE. CRÉDITOS PRESUMIDOS. PRETENSÃO DE CARACTERIZAÇÃO COMO RENDA OU LUCRO. IMPOSSIBILIDADE.
I – Controverte-se acerca da possibilidade de inclusão de crédito presumido de ICMS nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
II – O dissenso entre os acórdãos paradigma e o embargado repousa no fato de que o primeiro manifesta o entendimento de que o incentivo fiscal, por implicar redução da carga tributária, acarreta, indiretamente, aumento do lucro da empresa, insígnia essa passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL; já o segundo considera que o estímulo outorgado constitui incentivo fiscal, cujos valores auferidos não podem se expor à incidência do IRPJ e da CSLL, em virtude da vedação aos entes federativos de instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.
III – Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou.
IV – Tal entendimento leva ao esvaziamento ou redução do incentivo fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela própria autoridade coatora nas informações prestadas.
V – O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização estatal e por ela é condicionada.
VI – Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre a União e os demais entes federados.
VII – A Constituição da República atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito Federal a competência para instituir o ICMS — e, por consequência, outorgar isenções, benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei complementar.
VIII – A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo.
Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
IX – A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
X – O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela, ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
XI – Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos entes federados.
XII – O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, ainda que sob outro figurino, resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando inócua, ou quase, a finalidade colimada pelos preceito legais, aumentando o preço final dos produtos que especifica, integrantes da cesta básica nacional.
XIII – A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência com aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer, absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência.
XIV – Nos termos do art. 4º da Lei n. 11.945/09, a própria União reconheceu a importância da concessão de incentivo fiscal pelos Estados-membros e Municípios, prestigiando essa iniciativa precisamente com a isenção do IRPJ e da CSLL sobre as receitas decorrentes de valores em espécie pagos ou creditados por esses entes a título de ICMS e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de mercadorias e serviços.
XV – O STF, ao julgar, em regime de repercussão geral, o RE n. 574.706/PR, assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, sob o entendimento segundo o qual o valor de ICMS não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino final são os cofres públicos. Axiologia da ratio decidendi que afasta, com ainda mais razão, a pretensão de caracterização, como renda ou lucro, de créditos presumidos outorgados no contexto de incentivo fiscal. XVI – Embargos de Divergência desprovidos[1]“.
Desse modo, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não há tributação a título de IRPJ e CSLL quanto aos incentivos fiscais de ICMS concedidos pelos estados, especialmente, o presumido.
Lembramos que, conforme bem lembrado pela relatora em seu voto, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela inexistência de repercussão geral para o tema (RE 1.052.277/RG)[2].
Sendo assim, diante da impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal apreciar o tema e o Superior Tribunal de Justiça ter julgado em sede de embargos de divergência, que tem por finalidade exatamente uniformizar a interpretação a respeito de assunto de natureza infraconstitucional controvertido em suas turmas, à luz da segurança jurídica, outra conclusão não há senão de que a inexistência de tributação está sedimentada.
Juntamente com esse posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, é fundamental lembrar, a título de reforço, que a Lei Complementar 160/2017, a qual dispôs sobre a remissão e convalidação de incentivos fiscais de ICMS sem aprovação no Confaz, trouxe ainda os artigos 9º e 10, que enunciam:
“Art. 9º O art. 30 da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 4º e 5º:
Art. 30.(…)
§ 4º Os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao imposto previsto no inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo.
§ 5º O disposto no § 4º deste artigo aplica-se inclusive aos processos administrativos e judiciais ainda não definitivamente julgados.
Art. 10. O disposto nos §§ 4º e 5º do art. 30 da Lei no 12.973, de 13 de maio de 2014, aplica-se inclusive aos incentivos e aos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais de ICMS instituídos em desacordo com o disposto na alínea ‘g’ do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal por legislação estadual publicada até a data de início de produção de efeitos desta Lei Complementar, desde que atendidas as respectivas exigências de registro e depósito, nos termos do art. 3º desta Lei Complementar”.
Portanto, a lei complementar, fortalecendo e impedindo a tributação de IRPJ e CSSL, expressamente reconhece que: (i) os incentivos fiscais, inclusive de natureza financeira, concedidos pelos estados constituem subvenção para investimento (artigo 9º); (ii) para que tais incentivos tenham essa natureza, basta cumprir os requisitos do artigo 30 da Lei 12.973/2014, nada mais; (iii) quantos ao incentivos e aos benefícios fiscais de ICMS em desacordo com o artigo 155, parágrafo 2º, XII, ‘g”, da Constituição Federal (ou seja, aqueles não aprovados pelo Confaz), também serão considerados subvenção para investimento, desde que cumpram o disposto no artigo 3º da Lei Complementar 160/2017.
Não há dúvida, assim, que a impossibilidade de tributação dos incentivos fiscais de ICMS se dá pelo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que é mais amplo e incondicionado, ou mesmo por força da Lei Complementar 160/2017.
Trata-se, portanto, de relevante tema, com impacto no agronegócio, que levará à redução de eventuais passivos, além de permitir a não tributação e recuperação dos valores indevidamente recolhidos de IRPJ e CSLL nos últimos cinco anos com atualização da Selic.
[1] STJ, EREsp 1.517.492/PR, rel. ministro Og Fernandes, rel. p/ acórdão ministra Regina Helena Costa, 1ª Seção, julgado em 8/11/2017, DJe 1º/2/2018.
[2] “Recurso extraordinário. Tributário. Créditos presumidos de ICMS. Inclusão na base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Natureza infraconstitucional da controvérsia. Ausência de repercussão geral. (STF, RE 1.052.277 RG, relator(a): min. Dias Toffoli, julgado em 18/8/2017, Processo Eletrônico DJe-191, divulgado em 28/8/2017, publicado em 29/8/2017).
Por Fábio Pallaretti Calcini
Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.
Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-mar-09/irpjcsll-incentivos-fiscais-icms-impactos-agronegocio