Questão ainda intrigante para a doutrina consiste em estabelecer a correta e adequada interpretação do art. 111 do Código Tributário Nacional (CTN), a saber: “Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.” Afinal, pode-se ainda falar no emprego de um método como “interpretação literal” às isenções e reduções de base de cálculo ou de alíquota? Interessa-nos as modalidades de “exclusão” do crédito, que consistem em isenção ou anistia e seus equivalentes, como são aqueles do art. 150, § 6º da Constituição. Vejamos como o âmbito normativo do art. 111 comporta-se em relação a estas hipóteses.
Vale antecipar que a isenção corresponde a categoria dogmática, e não lógica, intimamente relacionada à fenomenologia da incidência tributária, Assim, uma vez que são diversas as concepções relativas a isenções, o são também as controvérsias relativas à categorização da redução de base de cálculo com espécie de isenção (parcial).
Em termos lógicos, “isenção” e “redução de base de cálculo”, diferenciam-se porque na “isenção” não há incidência, logo, não se verifica a ocorrência do fato jurídico tributário e formação da respectiva obrigação tributária, com atribuição do dever de pagamento do débito tributário, ao tempo que persiste a incidência na redução da base de cálculo, com formação de obrigação tributária. É o que parcela da doutrina chama de “isenção parcial”. A isenção e a redução de base de cálculo atuam em plena simetria, por isso, em face do quantum reduzido, pode-se afirmar que estas são medidas funcionalmente equivalentes.
Dada a controvérsia conceitual quanto à separação entre a isenção e a redução de base de cálculo, com o fim de avaliar as variações de doutrinas sobre ambas as formas de “exclusão” do crédito tributário, importa sempre destacar a tese que se adota.
A isenção como dispensa legal do pagamento de tributo consiste no capítulo da doutrina dita “tradicional”, que tem suas origens no anteprojeto do Código Tributário Nacional, de responsabilidade de Rubens Gomes de Sousa. Para essa corrente, a isenção corresponderia à “dispensa legal de pagamento de tributo devido”. Nesse sentido, como anota aquele Autor, “na isenção, não estrutural ao tributo, a obrigação tributária ocorre, mas não é cobrável porque a lei dispensa o pagamento do crédito correspondente”1.
De outra banda, José Souto Maior Borges observa que a norma que isenta tem caráter limitador ou modificador, porquanto “o efeito principal e a finalidade última da isenção é o de impedir o nascimento do débito tributário e pois necessariamente da obrigação tributária”.2 Para ele, a isenção corresponde a uma espécie de não-incidência legalmente qualificada, porquanto relativa à pessoa ou ao objeto colocado, por lei ordinária, “fora do campo de incidência”, em caráter excepcional e provisório.
Como observa Paulo de Barros Carvalho, por ausência de critério da hipótese ou do consequente, haverá isenção tributária, com seus efeitos de estilo:
“O que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do consequente, podendo a regra de isenção suprimir a funcionalidade da regra-matriz tributária de oito maneiras distintas: (i) pela hipótese: i.1) atingindo-lhe o critério material, pela desqualificação do verbo; i.2) mutilando o critério material, pela subtração do complemento; i.3) indo contra o critério espacial; i.4) voltando-se para o critério temporal; (ii) pelo consequente, atingindo: ii.1) o critério pessoal, pelo sujeito ativo; ii.2) o critério pessoal, pelo sujeito passivo; ii.3) o critério quantitativo, pela base de cálculo; e ii.4) o critério quantitativo pela alíquota.”3
Respeitáveis setores doutrinários, aqui e alhures, que partem de premissas similares àquelas adotadas por Paulo de Barros Carvalho, constatam que a técnica jurídica da isenção parcial é a mesma daquela total, de modo que não tem o condão de obstar a caracterização da redução da base de cálculo como isenção. Logo, a redução de base de cálculo, apesar de não afastar a incidência tributária, à semelhança da “isenção”, na parte reduzida, deve receber tratamento de equivalência funcional entre ambos.
Ultrapassada essa questão, cabe-nos verificar em qual sentido as regras interpretativas de isenções ou de exclusão, conforme o texto do art. 111, do CTN, podem advir de uma interpretação literal das leis tributárias.
Como expressão de dirigismo hermenêutico, temos as regras voltadas aos resultados da interpretação jurídica. Assim, o intérprete pode chegar a um resultado mediante a interpretação, quando o regime normativo assim o oriente para: (i) interpretação especificadora, que se apresenta como expressão da interpretação literal ou gramatical; (ii) interpretação restritiva, nos casos em que os resultados da interpretação especificadora pudessem ser desfavoráveis aos interesses do Estado; ou (iii) interpretação extensiva, manifestada na intenção do intérprete de ampliar o sentido da norma para além de uma interpretação especificadora, com a finalidade de alcançar situações ou propriedades que aparentemente não estariam contidas no enunciado interpretado.
No Brasil, o legislador fez uma escolha para interpretar as normas de isenções tributárias, que foi o emprego do art. 111, II do CTN, como dirigismo hermenêutico para estabelecer uma interpretação literal destas leis. Este é o seu sentido. Não quer dizer que se faça interpretação do texto por literalidade. Até porque a própria compreensão do que seja isenção ou redução de base de cálculo, como visto acima, já exige um esforço de hermenêutica especificadora.
O que este texto prescreve, por razões de segurança, é o emprego de uma interpretação “literal” como equivalente de “interpretação especificadora”, para evitar que o Fisco possa fazer uso de “interpretação extensiva” das restrições ou limites das isenções, para restringir seu aproveitamento; ou mesmo de “interpretação restritiva”, no que concerne ao acesso e alcance da isenção.
A literalidade das isenções propõe-se a uma interpretação especificadora do texto. Sem dúvidas, este “método” constitui o ponto de partida para uma atividade de interpretação das normas tributárias, i.e., em modo restritivo, o mais limitado possível, pela intratextualidade à qual se reduz, evitando-se a contextualidade e a intertextualidade tão próprios da interpretação extensiva.
A interpretação extensiva da decisão administrativa ou da judicial, pode significar uma tentativa de ampliar o campo material de incidência do tributo, por mero dirigismo interpretativo. Assim como a restritiva busca reduzir o acesso ao benefício da isenção. O art. 111 do CTN, neste sentido, concorre para a afirmação do princípio da certeza do direito, ao exigir uma interpretação “literal”, cujo resultado há de ser especificador do conteúdo da lei isentiva.
Como, por exemplo, nos países anglo-saxônicos, de um modo geral, e por incrível que possa parecer, o princípio vigente é o de que a tributação só pode se basear numa legislação suficientemente precisa e de alcance claramente definido, devendo-se interpretar literalmente suas disposições. No Reino Unido, os juízes, e, sobretudo, a Administração, têm que usar de uma interpretação exclusivamente restritiva. Quando o recurso ao método teleológico é reclamado, numa pretensão de aperfeiçoamento da lei, considera-se tal atitude como uma espécie de “invasão” nos direitos do legislador.
O mesmo ocorre com os EUA, Canadá e Nova Zelândia que procuram restringir ao máximo a chamada interpretação criativa, mesmo que, em contrapartida, busquem um constante aprimoramento das formulações normativas. Na Bélgica, existe a obrigação imperiosa de interpretar restritivamente as regras do direito tributário, cabendo, em caso de dúvida, benefício ao contribuinte. No Japão, o artigo 84 da respectiva Constituição, no capítulo que trata das limitações ao poder de tributar, afirma a necessidade de uma interpretação a mais restritiva possível das normas impositivas.
Ao assim determinar, o legislador empregou uma locução imperativa com sentido de ordenar um comando a ser seguido, sem dar opções à aplicação de interpretação diversa da indicada no enunciado. O modelo de interpretação especificadora pretende dirigir a aplicação dos incentivos nos limites entabulados pelo legislador, sem restrição ou ampliação, conforme o valor da certeza.
Não é outro o modo de compreensão de Aliomar Baleeiro sobre o sentido desta “interpretação literal”, a saber:
“Podemos então, inspirados nos escritos de Hart sobre a textura aberta do Direito, propor uma interpretação para a norma de interpretação contida no art. 111 do CTN. Esse parece ser, no nosso entender, o sentido da locução ‘interpretação literal’ no contexto da mencionada disposição normativa: interpretação literal é toda aquela que, tendo como base o núcleo incontroverso dos enunciados normativos estabelecidos pelo legislador e como limite intransponível o conjunto de todos os sentidos compreendidos na zona de penumbra ou incerteza desses enunciados, estabelece uma norma jurídica obrigatória à luz de um caso concreto ou de um conjunto de casos semelhantes”4. (grifos nossos)
E, de igual modo, para Rubens Gomes de Sousa:
“O artigo 111 é regra apriorística, e daí o seu defeito, que manda aplicar a interpretação literal às hipóteses que descreve. A justificativa ou, se quiserem, apenas explicação do dispositivo, é de que as hipóteses nele enumeradas são exceções às regras gerais de direito tributário. Por esta razão, o Código Tributário Nacional entendeu necessário fixar, aprioristicamente, para elas, a interpretação literal, a fim de que a exceção não pudesse ser estendida por via interpretativa além do alcance que o legislador lhe quis dar, em sua natureza de exceção a uma regra geral”5.
O Código Tributário Nacional, ao criar essa exceção à regra geral da intepretação “livre”, ao exigir que a interpretação deva ser literal no caso dos textos de incentivos, ou seja, sem expansão de significação, estatui uma proteção ao contribuinte, o que poucos dão exato sentido. E esta proteção consiste em não se suprimir direito ao benefício, com redução das suas possibilidades.
Nesse sentido, diz Hugo de Brito Machado, verbis:
“Há quem afirme que a interpretação literal deve ser entendida como interpretação restritiva. Isto é um equívoco. Quem interpreta literalmente por certo não amplia o alcance do texto, mas com certeza também não o restringe. Fica no exato alcance que a expressão literal da norma permite. Nem mais, nem menos. Tanto é incorreta a ampliação do alcance, como sua restrição.”6
O entendimento do STJ segue a mesma, e correta de garantismo do contribuinte, conforme se verifica dos seguintes Acórdãos abaixo transcritos, verbis: “6. A imposição da interpretação literal da legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção (artigo 111, inciso II, do CTN) proscreve tanto a adoção de exegese ampliativa ou analógica, como também a restrição além da mens legis ou a exigência de requisito ou condição não prevista na norma isentiva.”7
Em outro julgado: “6. Não cabe ao intérprete restringir o alcance do dispositivo legal que, a teor do art. 111 do CTN, deve ter sua aplicação orientada pela interpretação literal, a qual não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma.”8 Ou ainda: “4. A interpretação a que se refere o art. 111 do CTN, é a literal, que não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma.”9
No Estado Democrático de Direito, os núcleos funcionais da segurança jurídica operam mediante as funções de certeza, confiabilidade e estabilidade sistêmicas. Por isso, a partir do binômio certeza e coerência, a confiabilidade funcional determina, operacionalmente, a normalidade do sistema, como garantia de concretização de direitos e liberdades fundamentais.
A legalidade tributária classificadora e tipificante, nos casos de isenções, totais ou parciais, nos termos do art. 111, II do CTN, prescreve para o aplicador da norma tributária uma espécie de interpretação por paráfrases, numa expectativa de assegurar ao máximo uma tentativa de “única resposta correta”.10 Busca-se, assim, afastar a indeterminação e a incerteza11 (a dúvida interpretativa), na construção de sentidos e significados para os textos normativos.
Quando se atribui ao contribuinte o dever de interpretar a lei previamente, esta ação tem um ônus. Não se poderia abandonar o contribuinte num limbo de incertezas e de indeterminações. A liberdade de interpretar convive com as dúvidas, com as imprecisões e a ambiguidade própria dos signos linguísticos. Por isso, o CTN fez uma escolha pela interpretação literal das isenções tributárias, nos moldes do art. 111, II do CTN. O sentido de uma interpretação especificadora dos benefícios fiscais.
Descabe aqui qualquer menção a teorias de prevalência de substância sobre forma. A interpretação especificadora, na feição de “interpretação literal” do art. 111, II, do CTN, busca desvelar o significado do texto sem qualquer atitude restritiva ou ampliativa.
É neste sentido que se basta com a busca da verdade real, como expressão do texto normativo. Destaca Michelle Taruffo a insuperabilidade da teoria da verdade por correspondência12, dada a exigência de uma efetiva correspondência entre o acertamento dos elementos do texto e aqueles de construção da realidade.
Como observa Klaus Tipke, legalidade tributária, segurança jurídica, especialmente na forma da certeza e da uniformidade da tributação “somente serão plenamente desenvolvidas quando o aplicador do Direito se servir de métodos disciplinados, que tornem sua decisão jurídica inteligente e racionalmente compreensível, que não transmita a impressão de que a lei foi aplicada liberalmente segundo o sentimento jurídico subjetivo.”13 Por isso, ocupar-se da interpretação do Direito Tributário é um modo de concretizar a segurança jurídica por meio do controle dos critérios de aplicação dos textos normativos, pela criação de normas jurídicas certas e justas.
Diante do exposto, deve-se concluir que a autoridade administrativa, na aplicação das leis de isenção ou de qualquer outra forma de “eclusão” (redução de base de cálculo, de alíquota zero, anistia etc), deve resguardar a boa-fé do contribuinte na interpretação do alcance material do texto, o que somente é possível numa atitude especificadora da finalidade da norma, sem qualquer dirigismo extensivo das limitações ou restritivos do direito. O respeito da boa-fé objetiva é a melhor evidência de efetividade dos princípios da moralidade (Administração Pública) e da segurança jurídica no Direito Tributário, mediante práticas responsáveis e legítimas na construção de sentidos pela interpretação.
1 SOUSA, Rubens Gomes de. Pareceres – 1: imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 269.
2 BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 191.
3 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário linguagem e método. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2011, p. 593.
4 BALEEIRO, Aliomar; DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1540.
5 SOUSA, Rubens Gomes de. Interpretação das leis tributárias. In: SOUSA, Rubens Gomes de; ATALIBA, Geraldo. Interpretação no direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 379.
6 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 362.
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp 1098981/PR, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, j. 02.12.2010, DJe 14.12.2010.
8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp 1.468.436/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 01.12.2015, DJe 09.12.2015.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp nº1.471.576/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. 27.10.2015, DJe 09.11.2015.
10 Deveras, pois, como observa Giuseppe Melis, o emprego de métodos ou argumentos interpretativos não tem qualquer função de correção ou exatidão da decisão. MELIS, Giuseppe. L’Interpretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003, p. 445.
11 Cf. OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 961.
12 TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici. Milano: Giuffrè, 1992, p. 152;
13 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008, p. 304. Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 475 e ss.
Por Heleno Taveira Torres
Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2020.