O Plenário retomou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra o art. 1º da Lei 9.822/1999 e a Medida Provisória 2.158-35/2001, na parte em que conferiram nova redação ao art. 2º, II, e § 5º do Decreto-lei 1.593/1977 (1).Os dispositivos impugnados preveem a possibilidade de cancelamento do registro especial a que estão submetidas as empresas tabagistas, em face do inadimplemento de tributo ou de contribuição administrados pela Secretaria da Receita Federal (Informativo 605).
A ministra Cármen Lúcia, em voto-vista, acompanhou o voto do relator, no sentido de julgar parcialmente procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição Federal (CF) aos dispositivos impugnados, no sentido de que o cancelamento do registro deve observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e ser precedido: i) da análise do montante dos débitos tributários não quitados; ii) do atendimento ao devido processo legal na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias e iii) do cumprimento do devido processo legal para a aplicação da sanção.
A ministra Cármen se reportou à orientação fixada pelo Plenário no julgamento do RE 550.769 e considerou que a interpretação conferida pelo relator às normas impugnadas equaliza os princípios da livre iniciativa econômica lícita e da livre concorrência e os concilia com as garantias do devido processo legal tributário e da inafastabilidade da jurisdição e com o dever do contribuinte de cumprir suas obrigações tributárias. Para ela, as condicionantes interpretativas propostas pelo ministro Joaquim Barbosa são adequadas e suficientes para expurgar a pretensa incompatibilidade constitucional dos preceitos normativos impugnados e descaracterizar a medida como sanção política.
Acrescentou que essa interpretação tem o condão de, a um só tempo, proteger o contribuinte de atos desproporcionais e arbitrários do Fisco, assegurar-lhe o respeito ao devido processo legal tributário, promover o livre exercício de sua atividade legal sem prejudicar o equilíbrio concorrencial, e sobrelevar a função extrafiscal de tributo incidente sobre a produção de cigarros em tutela especialmente da saúde pública.
Observou que o contribuinte, sob o pálio da liberdade de iniciativa, há de ter garantidos todos os seus direitos, mas não pode adotar prática comercial ou empresarial dirigida à inadimplência contumaz e preordenada no pagamento de suas obrigações tributárias, por meio de infundadas impugnações administrativas ou judiciais sobre a exigibilidade da exação, e, com isso, obter vantagem competitiva capaz de desequilibrar a concorrência e frustrar o atendimento à função extrafiscal do tributo.
O ministro Alexandre de Moraes votou pela parcial procedência da ação, para excluir do § 5º do art. 2º do Decreto-lei 1.593/1977, por inconstitucionalidade, a expressão “sem efeito suspensivo”.
Para o ministro Alexandre, a não concessão do efeito suspensivo ao recurso pode levar, dada a gravidade da sanção, a uma situação de quebra da empresa, haja vista o longo tempo que eventualmente pode transcorrer até a decisão do recurso por ela interposto. Dessa forma, a empresa deve continuar funcionando até que o secretário da Receita Federal julgue o recurso.
Quanto às demais alegações de inconstitucionalidade apontadas no Decreto-lei 1.593/1977, asseverou que os dispositivos impugnados devem ser interpretados tendo em conta a atual redação de todo o art. 2º. Para ele, esse dispositivo não implica uma sanção política para simplesmente obrigar o contribuinte ao pagamento do tributo, não gera um cancelamento sumário do registro, em desrespeito ao devido processo legal, de forma desproporcional ou com afronta à razoabilidade, nem desrespeita a livre iniciativa e a livre concorrência.
Afirmou que as alterações posteriormente promovidas na norma, em especial pela Lei 12.715/2012, garantem o devido processo legal e a ampla defesa e, portanto, já atendem às condicionantes propostas pelo ministro Joaquim Barbosa.
Registrou que o § 1º (2) do art. 2º do Decreto-lei, ao prever três hipóteses em que o registro especial concedido às empresas poderá vir a ser cancelado, pretendeu regulamentar o mercado, a partir de constatações empíricas, exatamente com a finalidade de impedir que o mercado sofresse um abalo na livre concorrência. Ressaltou que o mercado tabagista, apesar de ser nocivo à saúde, é um mercado legal, tolerado sobretudo em função dos empregos que gera e dos tributos que possibilita o Estado arrecadar. A hipótese prevista no inciso II do art. 2º afeta o mercado, porque uma empresa que reiteradamente descumpre as suas obrigações tributárias acaba fornecendo seus produtos com menor preço. Ou seja, a partir de uma conduta ilícita, que é a sonegação fiscal, prejudica a livre concorrência entre as demais empresas do ramo. Revelou, no ponto, que, até agosto de 2018, foram constatados débitos tributários de fabricantes de cigarros no montante de 21 bilhões de reais.
Afastou o apontado desrespeito ao devido processo legal. De acordo com o § 2º (3) desse dispositivo, o cancelamento do registro apenas será possível se, após toda a constituição do débito tributário, ainda houver um novo procedimento específico, onde a legislação permite que o contribuinte já quite seu débito, se eventualmente entender que não tem direito, ou apresente esclarecimentos e provas cabíveis. Existe, portanto, todo um devido processo legal que não impede que o contribuinte busque o judiciário a qualquer momento.
O ministro Luiz Fux julgou a ação improcedente.
Reiterou os fundamentos expostos no julgamento da RE 550.769, no qual invocou o fato de que a previsão do art. 146-A (4) da Constituição Federal (CF), introduzido pela Emenda Constitucional 42/2003, objetivou exatamente coibir abusos, prevenir desequilíbrios da concorrência, como ocorre no caso sob análise, haja vista a constatação da produção de cigarros falsificados e de débitos tributários na ordem de bilhões de reais por parte de algumas empresas tabagistas.
A previsão legal não se destina ao aumento de arrecadação tributária, mas à criação de um sistema saudável de concorrência em que seja premiado o comportamento do bom contribuinte e impedida a atuação de sonegadores em mercado tão competitivo como o do fumo.
O cancelamento do registro não compromete o núcleo essencial do direito à livre iniciativa. Não impede de modo definitivo a atividade econômica, que poderá ser restabelecida desde que cumpridas as exigências legais. Para o ministro Fux, a liberdade de iniciativa, quando exercida de forma abusiva, deixa de merecer a tutela do ordenamento jurídico.
No que se refere ao § 5º do art. 2º do Decreto-lei 1.593/1977, observou que a concessão do efeito suspensivo seria deletéria, visto que, em virtude dela, decorrem, em média, cinco anos para se retirar do mercado uma empresa que se utiliza dessa prática.
O ministro Marco Aurélio julgou a ação procedente.
Frisou que o preceito atacado contempla, para chegar a esse ato extremo da cassação do registro, apenas o inadimplemento puro e simples, sem fazer distinção quanto ao fato de se tratar de devedor eventual, reiterado ou contumaz. Tendo isso em conta, concluiu que a norma impugnada possui natureza política, pois visa compelir o devedor do tributo, não importa o valor devido, à satisfação do débito tributário, o que vai de encontro aos Enunciados 70, 323 e 547 da Súmula do Supremo Tribunal Federal (5).
A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator. Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam o voto do ministro Alexandre de Moraes. O ministro Celso de Mello acompanhou o voto do relator, e, na forma do voto do ministro Alexandre de Moraes, excluiu a expressão “sem efeito suspensivo” do § 5º do art. 2º do Decreto-lei 1.593/1977.
Em seguida, o julgamento foi suspenso para proclamação do resultado em assentada posterior.
(1) Decreto-lei 1.593/1977: “Art. 2º O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001) (…) II – não-cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal; (Redação dada pela Lei nº 9.822, de 1999) (…) § 5º Do ato que cancelar o registro especial caberá recurso ao Secretário da Receita Federal, sem efeito suspensivo, dentro de trinta dias, contados da data de sua publicação, sendo definitiva a decisão na esfera administrativa. (Incluído pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001)”
(2) Decreto-lei 1.593/1977: “Art. 2º (…) § 1º Para os fins de aplicação do disposto no inciso II do ‘caput’, deverão ser consideradas as seguintes práticas reiteradas por parte da pessoa jurídica detentora do registro especial: (Redação dada pela Lei nº 12.715, de 2012) I – comercialização de cigarros sem a emissão de nota fiscal; (Incluído pela Lei nº 12.715, de 2012) II – não recolhimento ou recolhimento de tributos menor que o devido; (Incluído pela Lei nº 12.715, de 2012) III – omissão ou erro nas declarações de informações exigidas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. (Incluído pela Lei nº 12.715, de 2012)
(3) Decreto-lei 1.593/1977: “Art. 2º (…) § 2º Na ocorrência das hipóteses mencionadas nos incisos I e II do ‘caput’ deste artigo, a empresa será intimada a regularizar sua situação fiscal ou a apresentar os esclarecimentos e provas cabíveis, no prazo de dez dias. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001)”
(4) CF: “Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.”
(5) Enunciados da súmula do STF: “Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo; Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos; Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”
ADI 3952/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 5.9.2018. (ADI-3952)
Informativo STF nº 914, de 3 a 7 de setembro de 2018.