Recentemente, veículos de informação noticiaram que em razão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do RHC 163.334, no qual fixou-se a tese pela declaração de crime pelo não recolhimento de ICMS-próprio, houve um aumento na adesão de contribuintes ao Programa Especial de Parcelamento de ICMS instituído pelo estado de São Paulo através do Decreto n. 64.564/2019 1.
Em que pese a importância do parcelamento especial, tem-se que o estado de São Paulo inseriu dispositivos inconstitucionais na norma instituidora do PEP, o que certamente minorou as adesões realizadas.
O Decreto n. 64.564/2019 estabelece, em seu artigo 9º, que somente valores de depósitos judiciais realizados espontaneamente em garantia do juízo, referentes aos débitos incluídos no parcelamento, poderão ser utilizados para abatimento do débito a ser recolhido, desde que não tenha havido na ação decisão favorável ao Fisco com trânsito em julgado 2.
A leitura do dispositivo em questão demonstra que possíveis constrições patrimoniais sofridas pelos contribuintes em executivos fiscais (arrestos e/ou penhoras de ativos financeiros) não poderão ser utilizados para abatimento do débito fiscal, pois não realizados de maneira espontânea.
Contudo, o dispositivo do decreto paulista padece de vícios de inconstitucionalidade, pois afronta princípios constitucionais ao impor tratamento diferenciado a contribuintes que estão em uma mesma situação, sem que haja qualquer critério apto a impor tal tratamento.
Importante ressaltar que atos constritivos provenientes de ordens judiciais podem inviabilizar a adesão de contribuintes aos programas instituídos pelos Estados para quitação de débitos tributários, pois muitas das vezes os sujeitos passivos da obrigação tributária não possuem numerário disponível para pagamento do débito fiscal.
Deste modo, a vedação de utilização de valores arrestados e/ou penhorados para abatimento do débito fiscal viola princípios constitucionais consagrados, tais como os da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade.
E mais, a negativa de utilização dos valores constritos se mostra contraditória com a própria finalidade do PEP, uma vez que instituído para a majoração da arrecadação estatal, de modo a figurar-se como oportunidade de contribuintes inadimplentes quitarem seus débitos tributários de forma menos gravosa, permitindo, assim, a possibilidade de gozarem dos efeitos de regularidade fiscal e de viabilizar ao Fisco o acréscimo de arrecadação de difícil resgate, mediante a renúncia parcial de juros e multas.
Quanto a inconstitucionalidade do art. 9º do Decreto n. 64.564/2019, tem-se que a afronta ao princípio da isonomia previsto no art. 150, II, da Constituição Federal decorre do fato de não haver um critério de comparação com justificação constitucional para tratamento diverso entre contribuintes que estão em situação análoga, qual seja, de sujeitos passivos de uma obrigação tributária não quitada no prazo estabelecido em lei. Ou seja, figuram-se como devedores perante o Fisco.
Para a concretização do princípio da isonomia deve-se percorrer três etapas, sendo a primeira a procura por um critério; a segunda, a fundamentação constitucional para o critério encontrado; e terceiro as situações a partir do critério eleito 3. A igualdade prescritiva, no caso em tela, somente estará completa quando estiverem presentes os seguintes elementos: sujeitos, critério ou medida de comparação, elemento indicativo da medida de comparação e finalidade 4.
Portanto, descumprindo qualquer destas etapas, tem-se a ausência de concretização do princípio em comento.
No caso em debate, tem-se que contribuintes que manifestam interesse em aderirem ao PEP estão em uma mesma posição perante o Fisco. Contudo, o contribuinte que possui valores constritos em executivos fiscais está impossibilitado de utilizar este saldo para abatimento do valor e resultante da adesão. Porém, qual o critério utilizado pelo legislador para impor esta vedação?
No caso em comento não se vislumbra qualquer existência de critério que possua justificação constitucional para que se vede contribuintes que possuam bens constritos de os utilizarem para abatimento do débito fiscal resultante da adesão ao PEP. Portanto, assim como o princípio da igualdade encontra-se desatendido quando situações iguais (segundo um critério) são tratadas de modo diferente, do mesmo modo pode-se considerar ferido o princípio da igualdade quando não se consegue identificar um critério para o tratamento diferenciado.
Entende-se, assim, que caberá ao legislador, tomando em consideração as notas singulares das diversas classes de sujeitos passivos, eleger fatos distintivos que sejam hábeis para atender às especificidades dos casos submetidos à imposição, de tal maneira que se mantenha a correspondente equivalência entre as múltiplas situações empíricas sobre as quais haverá de incidir a persecução tributária.
Não havendo eleição de um critério apto a justificar o tratamento diferenciado entre os contribuintes interessados a aderirem ao Programa Especial de Parcelamento, no que tange a impossibilidade de utilização de valores penhorados para abatimento do débito fiscal resultante da adesão.
Portanto, ante a inexistência de qualquer critério constitucionalmente justificado que imponha esta impossibilidade, tem-se que o princípio da igualdade previsto no artigo 150, II, da Constituição Federal está sendo afrontado.
Conclui-se, portanto, que mesmo sendo conferida a autorização para que haja tratamento desigual a determinas situações ou categorias de contribuintes, deve-se haver uma relação de imanência entre o elemento diferencial e o regime conferido aos que estão incluídos na classe diferenciada. Agride-se o princípio quando o tratamento diverso não encontra motivo razoável 5.
Por outro lado, sendo concretizada a adesão ao PEP com o pagamento do débito fiscal, frisa-se com a utilização do numerário constrito, atinge-se o fim maior do programa instituído pelo estado, qual seja, o aumento de arrecadação.
Seguindo a linha de raciocínio aqui exposta, em recente decisão proferida pela 1ª Vara Cível da Comarca de São Joaquim da Barra/SP 6 e publicada em 18/12/2019, houve a indicação de que a restrição imposta pelo art. 9º do Decreto n. 64.565/2019 é inconstitucional, pois coloca em manifesta desvantagem os contribuintes sem justa causa. Ou seja, impõe-se um tratamento diferenciado a contribuintes em situações análogas sem que haja um critério de discrímem com justificação constitucional.
Ademais, indicou-se que o importante do ponto de vista do Fisco é o pagamento e a garantia do juízo, quer por penhora, quer por depósito. Considerando que o elemento essencial para adesão ao PEP é a garantia do juízo e o pagamento de parte do débito, não haveria sentido excluir contribuintes que sofreram arresto ou penhora e que voluntariamente almejam aderir ao parcelamento, principalmente para o caso de pagamento do débito fiscal em parcela única.
Evidencia-se que, acertadamente, o Poder Judiciário ao interpretar de maneira sistêmica tanto a norma instituidora do PEP, bem como os motivos pelos quais esta fora editada pelo Estado, afastou a aplicação do art. 9º, de modo a autorizar que os valores penhorados e/ou arrestados fossem convertidos em renda ao Fisco e, consequentemente, utilizados para abatimento do débito fiscal.
Tem-se, por fim, que caso os Estados expurgassem artigos inconstitucionais dos textos normativos utilizados, tal como a vedação de utilização de valores bloqueados resultantes de atos constritivos, tem-se que as adesões e os valores arrecadados certamente seriam alavancados.
1 https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/12/18/julgamento-do-stf-eleva-arrecadacao.ghtml
2 Artigo 9º – O valor dos depósitos judiciais efetivados espontaneamente em garantia do juízo, referente aos débitos incluídos no parcelamento, poderá ser abatido do débito a ser recolhido, desde que não tenha havido na ação decisão favorável à Fazenda Pública do Estado de São Paulo com trânsito em julgado, sendo que eventual saldo:
I – do débito fiscal será liquidado nos termos deste decreto;
II – do depósito judicial em favor do beneficiário, ser-lhe-á restituído.
§1º – Para fins do abatimento, o beneficiário deverá:
1 – informar, no endereço eletrônico www.pepdoicms. sp.gov.br, após selecionar os débitos que serão parcelados ou liquidados em parcela única, o valor atualizado, na data de adesão, dos depósitos judiciais existentes;
2 – autorizar a Procuradoria Geral do Estado a efetuar o levantamento dos depósitos judiciais, encaminhando petição nos autos da ação em que houver sido realizado o depósito, com a renúncia expressa aos recursos cabíveis e desistência daqueles já apresentados.
§2º – A cópia da petição protocolada a que se refere o item 2 do § 1º deverá ser entregue na Procuradoria responsável pelo acompanhamento da ação em que o levantamento deverá ser realizado, instruída com o comprovante do valor depositado, no prazo de 60 (sessenta) dias contados da celebração do parcelamento ou do recolhimento da parcela única.
§3º – O abatimento de que trata este artigo será definitivo, ainda que o parcelamento venha a ser rompido.
3 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 353/354
4 ÁVILA, Humberto. Igualdade tributária: estrutura, elementos, dimensões, natureza normativa e eficácia. Tese de livre-docência. São Paulo, USP, 2006. p. 40.
5 Ibidem, p. 285/286
6 SÃO JOAQUIM DA BARRA/SP, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Decisão. Processo n. 0003366-97.2011.8.26.0572, 02/06/2011.
Jota – Por Mateus Santos Salgado e Marina Xavier Mastrodomenico – 22 de janeiro de 2020