Ao apreciar a discussão quanto à constitucionalidade das normas que vedavam a restituição do ICMS, no âmbito da substituição tributária, no julgamento do RE 593.849/MG[1], com repercussão geral reconhecida, o Supremo Tribunal Federal declarou-as inconstitucionais ao conceder provimento ao recurso dos contribuintes, nos termos do voto do relator, ministro Luiz Edson Fachin.
Na oportunidade, foi fixada a tese jurídica 201, nos seguintes termos: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.
Consignou o relator, com fundamento nos princípios da capacidade contributiva, isonomia, vedação ao enriquecimento ilícito e da vedação ao confisco, que a legislação do estado de Minas Gerais, que, assim como a de diversos estados, assegura ao contribuinte o direito à restituição do valor pago por força da substituição tributária caso não ocorra a materialidade presumida do tributo, deve ser interpretada de forma que tal disposição também se aplique ao aspecto quantitativo, ou seja, nos casos em que a base de cálculo presumida foi superior à efetiva. Extrai-se do voto do relator, nesse sentido:
“Conclui-se, então, que uma interpretação restritiva do §7º do artigo 150 da Carta Constitucional, para fins de legitimar a não restituição do excesso, representaria injustiça fiscal inaceitável em um Estado Democrático de Direito, fundado em legítimas expectativas emanadas de uma relação de confiança e justeza entre Fisco e Contribuinte. Em suma, a restituição do excesso atende ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, tendo em conta a não ocorrência da materialidade presumida do tributo”.
Ocorre que diversos estados da federação — como Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Minas Gerais — não apenas regulamentaram o direito à restituição do ICMS como instituíram, em suas legislações, o dever de complementação do tributo, nas situações em que o valor do ICMS-ST for menor que o valor efetivamente devido.
Para se examinar a legalidade dessa exigência, é preciso considerar, primeiramente, que a Constituição Federal apresenta um único dispositivo específico que versa sobre a substituição tributária progressiva, o parágrafo 7º do artigo 150, cabendo registrar que o seu enunciado, ao prescrever o direito à restituição do ICMS quando o fato gerador do ICMS para o caso do fato gerador presumido não se realizar, nada menciona a respeito do dever de complementação do tributo, para o caso do fato gerador presumido se realizar em valores menores do que o fato gerador efetivo.
Com efeito, se a substituição tributária progressiva foi constitucionalmente enunciada ao par da previsão ao direito à restituição do ICMS (nas situações em que o fato gerador presumido não corresponder ao fato gerador efetivo), sem que essa mesma regra constitucional admita a previsão ao dever à complementação, isto se dá justamente porque o constituinte não pretendeu conceder — nem concedeu — tal direito aos entes tributantes.
Quadra observar, em paralelo, que a corte suprema, ao proferir o acórdão que reconhece o direito dos contribuintes à restituição do ICMS (RE 593.849/MG), não decidiu que haveria obrigação à complementação do ICMS pelos contribuintes substituídos. A leitura atenta do voto condutor do acórdão induz à conclusão de que o julgamento da matéria não resultou, de nenhuma forma, na previsão pela constitucionalidade do dever de complementação do ICMS, tal como pretende o estado de Santa Catarina e tantos outros com suas recentes alterações normativas, razão pela qual é de se concluir que a implementação dessa exigência encontra vedação desde a Constituição Federal.
Outra causa de inconstitucionalidade revela-se em relação à violação à reserva de lei complementar: a competência para determinadas matérias tributárias, dada a sua relevância para o funcionamento harmônico e eficiente do sistema tributário ou dado o seu potencial lesivo às garantias individuais dos contribuintes, foram atribuídas ao legislador complementar na Constituição Federal, dentre elas a matéria relativa à substituição tributária do ICMS, de acordo com previsão específica da alínea “b” do inciso XII do parágrafo 2º do artigo 155 da CF.
Sabe-se que a lei complementar que cumpre a função de regulamentar o ICMS em nível nacional é a LC 87/1996, a qual, em atenção à regra de competência enunciada na alínea “b” do inciso XII do parágrafo 2º do artigo 155 da CF, dedica os artigos 6º a 10 para regulamentação da substituição tributária do ICMS. Sucede que tais dispositivos, assim como nenhum outro em nível de lei complementar, nada mencionam acerca do dever de complementação do ICMS — o que revela que a implementação da referida obrigação configura medida inconstitucional, por violação à reserva de lei complementar.
A exigência de lei complementar para a validade e eficácia das regras de substituição tributaria progressiva do ICMS foi textualmente reafirmada pela corte suprema, no julgamento da ADI 1.851, consignando o relator, ministro Ilmar Galvão, que, antes da edição da competente lei complementar, a substituição tributária inexistia no ordenamento, a despeito da sua previsão constitucional:
“Entretanto, [o §7º do art. 150 da CF] ao erigir a cláusula de restituição imediata e preferencial em categoria de elemento integrante do instituto, praticamente inviabilizou a aplicação deste, antes que houvesse sido editada a lei complementar reguladora da referida cláusula de salvaguarda.
Como a providência somente velo a concretizar-se por moio da LC n. 87/96, forçoso é entender que, de 18.03.93, data da publicação la EC 03/93, até 13.09.96, quando veio à luz a LC 87/96, a substituição esteve, mais uma vez, ausente do sistema jurídico tributário brasileiro, por falta de regulamentação”[2]. (grifo acrescido)
Justificativas com base em raciocínios lógicos — “…se é possível restituir a partir das regras então vigentes, deve ser possível complementar…” — são pertinentes no campo da discussão política, mas absolutamente irrelevantes no campo jurídico, ainda mais como justificativa para se contornar a exigência da legalidade tributária. Imagine-se a desordem jurídica que se instalaria no país caso o Poder Executivo se visse livre das amarras das legalidades, com base em argumentos como esse.
Ademais, a ratio decidendi adotada no julgamento do 593.849/MG, no sentido de que a restituição do ICMS se faria devido para se evitar o enriquecimento sem causa, não se aplica para justificar a exigência de complementação do ICMS no contexto pretendido por determinados estados da federação, pelo simples motivo de que nem a Constituição Federal e nem qualquer dispositivo de lei complementar prevê tal possibilidade, assim como o fazem em relação à restituição.
Por fim, cumpre frisar que tais considerações não representam a opinião de que a complementação de ICMS, no regime de substituição tributária, é ilegal em si mesma; o que se esta a reclamar é apenas a necessidade de observância à legalidade tributária — o que passa pela necessidade de previsão de tal exigência na Constituição Federal e na legislação complementar para que seja implementada.
[1] RE 593.849 AgR, rel. min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 22/9/2017.
[2] ADI 1.851, rel. min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, julgado em 8/5/2002.
Por Carlos Gilberto Crippa Júnio
Carlos Gilberto Crippa Júnior é sócio do Menezes Niebuhr Advogado Associado, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-ago-16/carlos-crippa-inconstitucionalidade-complementacao-icms-st