Não é novidade que o sistema tributário brasileiro é complexo. Nesse contexto, também não são raras as reclamações por parte dos contribuintes de que a administração tributária acaba tornando, por vezes, esse sistema ainda mais confuso. Não buscamos investigar o acerto de tais queixas, mas apresentar acontecimentos que acabam inflamando o sentimento das partes.
Duas situações recentes exemplificam a problemática.
A primeira diz respeito à publicação da IN RFB nº 1.824/2018, que alterou a IN RFB nº 1.711/2017, que regulamentou o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert). Segundo a Receita Federal do Brasil (RFB), a finalidade da medida é normatizar os procedimentos e efeitos da aplicação do processo administrativo fiscal nas exclusões do Pert.
É o contribuinte quem sofre com a falta de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência do sistema
Como se sabe, uma das hipóteses de exclusão do parcelamento é a falta de regularidade fiscal, que significa o inadimplemento de débitos tributários vencidos após 30 de abril de 2017. A RFB divulga já ter cobrado débitos de mais de 15.000 contribuintes que se encontram nessa situação.
Sucede que a Receita perdeu uma boa oportunidade de regular uma situação peculiar e que talvez atinja vários desses milhares de contribuintes que estão sendo notificados.
Isso porque a Lei nº 13.496/2017, responsável pela instituição do Pert, não trouxe qualquer regulamentação para o caso específico do contribuinte que optou pela liquidação mediante o pagamento em espécie de parte da dívida e do restante com a utilização de créditos de prejuízos fiscais.
Sobre o assunto, referida norma apenas dispunha que a liquidação de débitos mediante a utilização de créditos de prejuízo poderia ser analisada pela RFB, para fins de homologação, no prazo de cinco anos contados da data em que o contribuinte prestar as informações na consolidação. E enquanto não for feita a mencionada análise, os débitos serão considerados extintos sob condição resolutória de ulterior homologação.
Em tais casos, surge a dúvida se o contribuinte pode ser excluído do Pert sob a alegação de falta de regularidade fiscal. Em tais casos, questiona-se até mesmo se ainda é possível falar em “parcelamento”, já que os débitos foram liquidados integralmente, uma parte em espécie e outra por meio de créditos de prejuízo.
Ao que parece, seguindo a lógica estabelecida pelo sistema, o contribuinte somente poderia ser excluído do parcelamento na hipótese de a RFB indeferir os créditos de prejuízo informados. Somente assim teríamos uma situação de “não liquidação”.
Todavia, como a legislação nunca tratou expressamente do assunto, surgiu a dúvida se mesmo após a liquidação na forma mencionada, haveria de se observar a regularidade fiscal. E o mais grave, sabe-se lá por quantos anos, já que a homologação dos créditos de prejuízo pode acontecer em até cinco anos após o contribuinte prestar as suas informações no procedimento de consolidação, o que pode levar vários anos para ser exigido.
A reabertura do Refis da crise, instituído pela Lei nº 12.865/2013, por exemplo, somente teve o seu procedimento de consolidação regulamentado em 2017, quer dizer, aproximadamente três anos após sua instituição. Pela lógica, caso existissem as mesmas regras do Pert, o contribuinte que tivesse liquidado o seu débito mediante um pagamento em espécie à vista e o restante com créditos de prejuízo, teria que continuar observando a regra da regularidade fiscal pelo menos até 2022, ou seja, aproximadamente nove anos após a instituição do parcelamento e a liquidação do seu débito, o que parece desarrazoado diante do atual cenário econômico brasileiro.
Nesse aspecto, a IN RFB nº 1.824/2018 poderia ter sanado a dúvida, reduzindo a insegurança dos contribuintes, mas, ao invés disso, regulamentou a exigência de regularidade de maneira genérica. Sucede que tal fato não autoriza a Receita pretender excluir do parcelamento o contribuinte que liquidou o seu débito com o pagamento de uma parte em espécie e outra com a utilização de créditos de prejuízo, sob a alegação de inadimplência de débitos tributários correntes vencidos após 30 de abril de 2017. Caso isso aconteça, existem bons argumentos para levar a discussão ao Judiciário.
A segunda situação foi o julgamento do PAF nº 10166.729709/2012-01, pela 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), no qual se exigia multa de mora de contribuinte que pretendeu realizar denúncia espontânea por meio de compensação. A discussão envolve basicamente os limites semânticos do vocábulo pagamento, constante no art. 138 do CTN.
No processo julgado, a turma decidiu por maioria que a compensação não se confunde com o pagamento, razão pela qual deve incidir a multa de mora.
Independente do mérito da discussão, o que mais chama atenção no caso é que a decisão da turma ordinária vai totalmente de encontro ao que fora decidido pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, última instância administrativa, no julgamento do acórdão nº 9101-003.559, em sessão de 5 de abril de 2018.
Mais uma vez, é o contribuinte quem sofre com a falta de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência do sistema. Quer dizer, aproximadamente quatro meses após a última instância do Carf proferir acórdão em um sentido, uma turma ordinária julga o mesmo tema em direção totalmente colidente.
Que o sistema tributário brasileiro é complexo, não há dúvidas. Se as autoridades administrativas tributárias contribuem para tornar esse sistema ainda mais confuso e incerto, não se pode afirmar com certeza, mas, se de alguma elas poderiam atuar para diminuir essa sensação de imprevisibilidade, isso, de fato, muitas vezes não o fazem. O sentimento de que é necessária uma reforma tributária para que o sistema deixe de caminhar na contramão da segurança jurídica é evidente.
Por Igor N. de Souza e Marcelo J. Luz de Macedo
Igor Nascimento de Souza e Marcelo José Luz de Macedo são, respectivamente, especialista em direito tributário pela Universidade de São Paulo e pela Harvard Law School; mestre em direito tributário pela PUC-SP, professor do IBET-SP e advogados de Madrona Advogados.
Fonte : Valor – 06/09/2018