Como sabido, a Lei nº 11.281 de 2006 introduziu a modalidade de importação por encomenda no ordenamento jurídico brasileiro. Nesta modalidade de importação, o importador, sem qualquer adiantamento de recursos pelo destinatário final, adquire produtos estrangeiros para revendê-los no mercado local a um terceiro pré-determinado no Brasil, referido pela legislação como “encomendante“.
A transação interna entre o importador e o adquirente/encomendante local é, na verdade, uma ‘compra e venda’ doméstica, com a peculiaridade de que a venda é feita para a parte que encomendou a importação. Assim, o importador deve adquirir a titularidade da mercadoria importada para depois vendê-la a um terceiro no Brasil, necessariamente aquele que ordenou a importação de produtos antes do seu embarque no exterior. A legislação igualmente permite que o próprio importador participe sozinho da operação comercial no exterior sem que assim fique descaracterizada a importação por encomenda1.
Para caracterização da importação por encomenda, é indispensável que a importação seja realizada com os recursos financeiros do importador, caso contrário, será caso de importação por conta e ordem de terceiro.
O objetivo da introdução da modalidade de importação por encomenda no ordenamento jurídico brasileiro foi, conforme amplamente divulgado à época de sua implementação, essencialmente, o de impedir uma oportunidade de planejamento tributário que visava a evitar a incidência do IPI sobre a margem de lucro gerada na revenda de bens importados no mercado brasileiro.
Tal planejamento consistia na interposição de uma empresa comercial importadora em operações de importação geralmente realizadas entre uma empresa estrangeira e sua afiliada brasileira. Através da interposição de tal empresa comercial, o IPI incidia sobre a importação de produtos estrangeiros e somente na primeira venda após a importação, normalmente, com pequena margem de lucro (vale lembrar que esta segunda incidência está sendo analisada pelo STF no RE 946.648, submetido ao rito dos recursos repetitivos).
Com a promulgação da legislação sobre a importação por conta e ordem de terceiros e importação por encomenda, os atacadistas e varejistas que revendem as mercadorias importadas internamente ficaram equiparados aos importadores e suas vendas passaram a ser submetidas à cobrança do IPI.
Nesse contexto, acabaram surgindo dúvidas sobre a aplicação da importação por modalidade importação por encomenda, sobretudo, devido à sua ampla definição pelo o parágrafo 3º do artigo 11 da Lei nº 11.281/2006, que dispõe que se considera importação por encomenda “a importação realizada com recursos próprios da pessoa jurídica importadora, participando ou não o encomendante das operações comerciais relativas à aquisição dos produtos no exterior“.
Embora a lei pareça ter por único propósito a eliminação da possibilidade de atacadistas e varejistas realizarem importações através de terceiros interpostos exclusivamente visando ao planejamento tributário mencionado ao início, passou-se a questionar se toda e qualquer importação realizada para atender a um pedido anterior de um cliente, realizada com os recursos financeiros do importador, não poderia ser caracterizada como uma importação por encomenda. E, em assim sendo, se não deveriam ser adotados os procedimentos atualmente previstos na Instrução Normativa RFB nº 1.861/2018, que regulamentou a Lei nº 11.281/2006, entre os quais se destacam: a habilitação do encomendante no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex) e a sua vinculação ao importador no Portal Único do Comércio Exterior (Pucomex) previamente ao registro da declaração de importação; a anexação de cópia do contrato previamente firmado entre o importador e o encomendante no Pucomex.
Nessa linha, as Autoridades Fiscais têm frequentemente assumido a posição de que há uma interposição fraudulenta de terceiro sempre que entendem que a importação se qualifica como uma importação por encomenda, mas é realizada pelo regime de importação direta. Ocorre que a interposição fraudulenta de terceiro traz graves consequências aos contribuintes, como a pena de perdimento ou a multa substitutiva de 100% do valor da operação.
Sendo assim, considerando-se que, atualmente, muitas empresas optam por trabalharem com estoques reduzidos, em especial, devido aos altos custos de armazenagem dos produtos, verifica-se com frequência a situação de empresas terem de importar mercadorias para atenderem a pedidos realizados por seus clientes previamente. Independentemente de qualquer intenção de reduzir a carga tributária incidente sobre o produto importado, estas empresas não têm segurança a respeito de qual a modalidade de importação deverão seguir toda vez que importarem mercadorias para atenderem a pedidos de mercadorias indisponíveis em estoque: devem adotar o regime de importação por encomenda ou devem seguir o procedimento da importação direta?
Em caso de pedidos realizados por pessoas físicas, parece estar claro que não há risco de questionamento quanto à adoção do regime de importação direta, em consideração às Soluções de Consulta nº 18/2013 (Disit 07), nº 55/2011 (Disit 04) e 389/2009 (Disit 09), das quais destacamos a seguinte conclusão: “não, não pode a pessoa física pleitear a sua habilitação simplificada perante o SISCOMEX para o fim de importar equipamento para uso próprio, por meio de uma trading, seja na modalidade de importação por conta e ordem de terceiros, seja na de importação por encomenda, ambas a ela vedadas (MP nº 2.158-35, de 2001, artigos 80 e 81; Lei nº 11.281, de 2006, artigo 11; IN SRF nº 225, de 2002, arts. 2º e 3º; IN SRF nº 247, de 2002, art. 12; IN SRF nº 634, de 2006, arts. 2º e 3º.”
Por outro lado, não há clareza quando se trate de importações realizada para atender a pedidos de pessoas jurídicas, sejam elas usuárias finais das mercadorias importadas, ou mesmo atacadistas e varejistas de tais produtos.
A lacuna legislativa existente quanto ao tratamento legal das importações realizadas para fazer frente aos pedidos realizados por pessoas jurídicas, todavia, parece estar sendo preenchida pela jurisprudência do CARF, bem exemplificada pelo Acórdão nº 3401-003.174, da 4ª Câmara da 1ª Turma Ordinária da Terceira Sessão de Julgamentos, decidido à unanimidade em favor do Contribuinte.
Neste caso, o contexto fático resumia-se ao seguinte: a empresa destinatária final das mercadorias no Brasil (Empresa “A”) adquiria equipamentos modem de outra empresa também sediada no Brasil2(Empresa “B”). A operação entre essas empresas se dava via contratos de fornecimento regulares. A fim de atender à demanda da Empresa “A”, a Empresa “B” realizava a importação por encomenda de tais modens via trading company. Por uma questão logística, na maior parte das vezes, após o desembaraço as mercadorias eram enviadas diretamente à Empresa “A”, com a emissão de notas fiscais de remessas por conta e ordem por parte da trading company. Os produtos que não eram enviados diretamente à Empresa “A” eram enviados para um armazém geral, do qual saíam futuramente somente com destino à Empresa “A”.
Ao analisar tais operações, entenderam as autoridades fiscais que o objetivo principal deste modelo de negócio seria burlar o controle aduaneiro, ocultando a Empresa A como a “real importadora” e, assim, quebrando a cadeia do IPI. Ou seja, ao fim ao cabo estar-se-ia tratando de uma importação por encomenda, sendo a Empresa “A” a encomendante e a Empresa “B” a importadora. Foram então emitidos autos de infração para aplicação da pena de perdimento convertida em multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias contra a Empresa “A” e para aplicação da multa por cessão de nome contra a Empresa “B”.
Em sua defesa contra a autuação, a Empresa “A” destacou os seguintes argumentos: não se trata de importação por encomenda porque: (i) a Empresa “A” não solicitou qualquer importação; (ii) os negócios realizados com as a Empresa “B” eram de simples compra e venda interna de mercadorias realizada mediante processo de concorrência; (iii) a Empresa “A” não tinha conhecimento ou autorizava a utilização de seu nome na obtenção de descontos junto aos fornecedores no exterior; (iv) a Empresa “A” não teve qualquer ingerência na escolha da empresa estrangeira que forneceria os modens; (v) não havia qualquer vinculação ou acordo entre as Empresas “B” e “A” que impedia a primeira de vender os produtos que adquiriu no exterior a qualquer um de seus clientes, não havendo exclusividade com a Empresa “A”; (vii) ausência de prova do Fisco e presunção quanto à vantagem existente; (viii) a mera existência de pedido de compra anterior a importação não é condição suficiente para enquadrar a Empresa “A” na condição de fraudadora, não tendo havido manobra no intuito de que não houvesse o recolhimento do IPI, por conta da quebra da cadeia.
No âmbito da DRJ tais argumentos foram rejeitados, tendo havido interposição do recurso voluntário que deu origem ao acórdão aqui tratado.
No acórdão em referência, primeiramente, foram diferenciadas as duas espécies de interposição fraudulenta existentes no ordenamento brasileiro: a presumida e a provada. Na primeira, a lei presume a sua ocorrência diante da falta de comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados para a realização da importação. Na segunda, para sua caracterização exige-se que demonstrem a ocorrência de fraude ou de simulação praticadas no intuito de esconder o real adquirente ou sujeito passivo da importação.
Com relação à interposição fraudulenta comprovada, foram pontuados os principais indícios considerados pela doutrina para identificação da sua ocorrência, quais sejam:
“a) A carga é originária e procedente de um determinado país, mas foi faturada por uma empresa situada em outro país, sendo que essa empresa não está estabelecida no endereço declarado e seu nome não consta de sites oficiais de seu país, ou ainda, se a empresa existe, não opera no comércio exterior, e tal atividade não consta de seu objeto social.
b) nos preços declarados nos documentos que apresenta à RFB (faturas comerciais, por exemplo), constam valores reduzidos e inferiores aos comercializados em outras operações de importação ou obtidos na internet.
c) os produtos importados são comercializados no Brasil, exclusivamente, pela empresa oculta, real adquirente, que não consta nos documentos de importação.
d) a importadora revende a totalidade das mercadorias importadas para a real adquirente das mercadorias objeto de importação, que é a maior cliente da importadora e, em alguns casos, até sua única cliente.
e) a negociação de compra e venda da mercadoria é realizada diretamente entre o exportador e a real adquirente, dela não participando o importador.
f) os documentos contábeis da importadora comprovam o recebimento de valores da empresa real adquirente das mercadorias importadas.
g) a importadora não dispõe de depósito para armazenagem dos produtos importados, não possuindo estoque de mercadorias, evidenciando que a mercadoria ao ser liberada é entregue, de imediato, ao real adquirente”.
Já no que se refere à interposição fraudulenta presumida, o acórdão destacou os seguintes indícios reveladores da sua verificação:
a) Transações comerciais da interposta pessoa apresentando valor de entrada das mercadorias, por unidade, praticamente igual ao valor de saída.
b) Confusão de sócios entre a empresa interposta e a empresa do real adquirente.
c) Fechamento de câmbio com recursos obtidos por meio de adiantamento de clientes, ou com depósitos, não identificados, ocorridos em dias anteriores, em valores muito próximos aos necessários à quitação desses encargos, que a empresa interposta não suportaria (esses dispêndios) com recursos próprios.
d) Os sócios de direito não participam do cotidiano da empresa, que é administrada com plenos poderes por uma terceira pessoa, não sócia, mediante instrumento de procuração.
e) A empresa é constituída por sócios que declaram rendimentos irrisórios em suas declarações de imposto de renda pessoa física (DIRPF), ou até se declaram isentos.
f) O capital social é infinitamente menor que o volume de importações realizadas.
g) Não há na contabilidade do importador, lançamentos sobre o financiamento das operações de importação (exigível), constando apenas a aquisição de mercadorias e pagamentos dos impostos respectivos, sem a informação das fontes destes dispêndios. Os recursos poderiam ser originários de um terceiro oculto, ou até de uma atividade criminosa, servindo a operação de importação como instrumento de “lavagem” de dinheiro.
Na sequência, o acórdão destacou que a questão temporal não seria definitiva para a caracterização da interposição fraudulenta. Ou seja, a celebração de contratos ou até mesmo a ocorrência de pagamentos anteriormente à importação, isoladamente, não deveriam ser considerados como elementos de prova suficientes para se desconsiderar uma importação direta e caracterizá-la como uma importação por encomenda.
Após o claro alerta de que a natureza jurídica de uma operação de importação somente pode ser conhecida caso a caso, em consideração a todos os seus peculiares elementos, decidiu o colegiado pelo cancelamento da autuação.
A fundamentação da decisão foi calcada nos seguintes fatores, em síntese:
a) comprovação da origem e disponibilidade dos recursos e de capacidade operacional pela Empresa “B” (vendedora na operação interna com a Empresa “A”);
b) a despeito da previsão contratual de repasse da variação cambial à Empresa “A”, não havia previsão de revisão dos preços em função de alteração (criação, majoração ou redução) de tributos e despesas incidentes na operação de importação, ficando, portanto, tal risco ou benefício com a Empresa “B”;
c) o pagamento só era devido pela Empresa “A” após a entrega dos bens;
d) a Empresa “B” estava obrigada a prestar garantia pelo prazo de 12 meses;
e) havia prazo de entrega para as mercadorias, sujeitando a Empresa “B” às penalidades por atraso;
f) Não houve qualquer comprovação de negociação entre a fornecedora estrangeira e a Empresa “A”;
g) Não foi demonstrada a intenção de enganar o Fisco, em especial, porque os modens saíam da Empresa “A” em comodato, situação em que não há incidência de IPI; e
h) a margem de lucro da Empresa “B” foram as normais para o mercado em que opera.
Sendo assim, considerando o alto grau de generalidade das normas que versam sobre as importações por encomenda, temos que o Acórdão nº 3401-003.174 aqui examinado representa um importante paradigma a ser considerado na importação de mercadorias realizadas para atender a pedidos prévios feitos por pessoas jurídicas, em consideração à profundidade da análise das diferentes modalidades de importação previstas no ordenamento jurídico brasileiro nele exposta, ao fato de que a decisão foi tomada por unanimidade e que não houve sequer recurso da Fazenda Nacional contra a referida decisão à Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF.
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1 art. 3º, § 2º, da IN 1861/2018 e art. 11, § 3º, da Lei nº 11.281/2006.
2 No julgamento do caso, foram considerados determinados aspectos específicos da relação societária entre as empresas Thomson e Technicolor Brasil. A presente análise, no entanto, propõe-se a extrair apenas os aspectos da decisão com maior abrangência, pelo que nesta oportunidade, não nos aprofundaremos na exposição de questões mais peculiares deste caso, e sim nos aspectos gerais da decisão, que permitam sua utilização como um parâmetro futuro para situações de difícil diferenciação quanto ao regime de importação aplicável.
Por:
THALES STUCKY
LÍVIA TROGLIO STUMPF
THALES STUCKY – Advogado, LL.M. em Tributação Internacional pela New York University e Ex-presidente do Instituto de Estudos Tributários – IET. Sócio de Trench, Rossi e Watanabe Advogados
LÍVIA TROGLIO STUMPF – associada sênior no Trench, Rossi e Watanabe Advogados. Graduada e mestre em Direito pela UFRGS.
Fonte: Jota – 29/01/2019