Como foi amplamente noticiado, em sessão virtual para julgamento do RE 784.439 finalizada no dia 27.06, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) analisou novamente a taxatividade da lista de serviços do ISS.
Nesse artigo vamos analisar o julgamento e a extensão da tese fixada nesse RE (tema 296 da repercussão geral) para, em seguida, discutir as implicações práticas da aplicação desse novo precedente nas disputas envolvendo as novas atividades da economia digital.
A tese fixada por ocasião do julgamento foi proposta pela relatora do caso, a ministra Rosa Weber, nos seguintes termos: “é taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva.”
Uma primeira leitura da tese acima poderia levar à conclusão de que o STF teria flexibilizado a ideia de taxatividade da lista de serviços permitindo aos municípios uma interpretação ampla apta a alcançar qualquer atividade.
A nosso ver, entretanto, essa conclusão não parece refletir o que foi decidido pelo STF. Explicaremos abaixo os limites fixados pelo STF para a tributação das atividades pelos municípios.
O primeiro aspecto a ser considerado para interpretarmos esse julgamento é o fato de que o tema principal em debate era exatamente o caráter taxativo (ou meramente exemplificativo) da lista de serviços. E o Plenário do STF confirmou que sim, a lista é taxativa e apenas os serviços previstos em lei complementar estão sujeitos ao tributo municipal.
Reconhecido o caráter taxativo da lista, o STF passou à análise do segundo aspecto do julgamento, qual seja a possibilidade de interpretação extensiva ou ampliativa da referida lista. E sobre esse ponto decidiu-se que é constitucional a incidência do ISS sobre as atividades inerentes aos serviços listados.
E aqui está o ponto chave para identificarmos o alcance da tese fixada pela STF: o que seriam essas atividades inerentes passíveis de tributação pelo ISS?
Ao analisarmos os votos proferidos no julgamento verificamos que as atividades inerentes sujeitas ao ISS são aquelas que possuem as mesmas características das atividades listadas em lei e que constituam mera variação do aspecto material da hipótese de incidência.
No voto da ministra relatora, há inclusive uma menção expressa à manifestação do procurador-geral da República em que ele indica que só poderá haver tributação quando “as características da atividade que se pretende tributar não são estranhas às características das atividades próprias dos serviços listados em lei, mas inerentes à natureza desses serviços (…)”
Isso significa que o STF reconheceu a possibilidade da incidência do ISS sobre serviços cuja exata nomenclatura não conste na lista de serviços, mas não sobre serviços ou atividades que sequer estejam listadas.
A interpretação extensiva que se permite é aquela que pretende determinar o alcance de cada item da lista anexa de serviços, dada a impossibilidade de o legislador discriminar nominalmente todos os serviços diretamente vinculados aqueles.
Com isso fica evidente que as autoridades não têm uma carta em branco para tributar quaisquer atividades e podem apenas exigir o ISS com relação aos serviços listados, ainda que sejam apresentados com outra nomenclatura. O ministro Alexandre de Moraes em seu voto inclusive reitera que não é permitido o emprego da analogia para fins de tributação.
Feitos esses comentários acerca do alcance da tese fixada pelo STF no julgamento do RE 784.439, passaremos à análise específica dos impactos dessa decisão na tributação das atividades da chamada economia digital.
Como sabemos não existem muitos precedentes que analisem de forma específica a tributação das novas atividades que surgem diariamente com o desenvolvimento da tecnologia. Assim, para se definir qual tributo deverá incidir sobre uma determinada operação, o intérprete tem que se valer de precedentes antigos como o emblemático julgamento do RE 176.626-3 que analisou a tributação dos softwares há mais de vinte anos e continua a servir de parâmetro para as atuais disputas.
Por esse motivo o julgamento do RE 784.439 é especialmente relevante para as discussões que vem sendo travadas com relação à tributação das atividades da economia digital.
Depois de muitos anos, em 2017 os municípios finalmente conseguiram aprovar a lei complementar 157 que incluiu e atualizou os itens na lista de serviços especificamente voltados à tributação do setor de tecnologia.
Com relação aos itens já existentes à época da edição da lei complementar 157/16 e que foram apenas atualizados, na análise do tema 296 da repercussão geral o STF analisou dois deles de forma expressa: o item 1.03 que trata das atividades de cloud computing e o item 1.04 que trata da elaboração de programas de computadores.
No caso do item 1.03, o legislador deixa indicado de forma expressa (por meio da inclusão da expressão “e congêneres” que quaisquer atividades relacionadas com o processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, estarão sujeitas ao ISS.
Técnica legislativa similar foi utilizada no item 1.04 da lista de serviços com a utilização da expressão “inclusive” (elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos) para garantir que os jogos eletrônicos estivessem abarcados nesse item.
Nos dois casos o STF concluiu serem constitucionais os referidos itens e em linha com a premissa adotada no julgamento no sentido de que os “efeitos jurídicos de um de um fenômeno dependem daquilo que ele é realmente, e não do nome a ele atribuído pelas partes.”
Esse julgamento também trouxe impactos importantes para as disputas relacionadas à tributação das atividades de disponibilização de conteúdo (item 1.09) e inserção de material publicitário (item 17.25).
Nesses dois casos não havia previsão para incidência do ISS antes da edição da lei complementar 157/16. Apesar disso, as autoridades fiscais do município de São Paulo sustentam que tais atividades já estavam sujeitas ao ISS antes mesmo da inclusão desses novos itens na lista, o que tem gerado inúmeras disputas.
No caso da disponibilização de conteúdo, as autoridades sustentam quem tal atividade deveria ser tributada com base no item 1.05 que se refere ao licenciamento de software. Isso porque para que os usuários tenham acesso ao conteúdo disponibilizado por meio da tecnologia de streaming, é necessário o uso de um software que processa os dados e permite a visualização online sem necessidade de download desse conteúdo. Por conta disso, no entender do Fisco, antes da inclusão do item 1.09 na lista de serviços, as atividades de streaming poderiam ser tributadas como se fossem atividades de licenciamento de software.
Os contribuintes enfrentam disputa semelhante com relação à atividade de inserção de material publicitário. A receita de grandes plataformas da internet advém justamente da veiculação de material publicitário online e por muitos anos as autoridades fiscais reconheciam que tal atividade não encontrava previsão na lista de serviços e, portanto, não estava sujeita ao ISS.
Mais recentemente, entretanto, o Fisco Paulistano mudou de posição, inclusive com a edição de um parecer normativo (2/18) e passou a adotar o entendimento de que, antes da inclusão do item 17.25 para tributação da inserção de material publicitário, essa atividade estaria sujeita ao ISS com base no subitem 17.06 que trata das atividades das agências de publicidade.
A discussão nos dois casos se centra na possibilidade de se enquadrar atividades de naturezas diferentes em um mesmo item. E como vimos acima, nesse ponto a tese fixada pelo STF no RE 784.439 é favorável aos contribuintes já que permitiu a tributação apenas nos casos em que as características da atividade que se pretende tributar não sejam estranhas às características das atividades próprias dos serviços listados em lei.
Tanto no caso da atividade de disponibilização de conteúdo quanto no caso da inserção de material publicitário não estamos diante de meras variações de nomenclatura com relação aos itens existentes anteriormente na lista. São atividades que, de tão distintas, motivaram os municípios a se reunirem para – por meio do processo democrático adequado – levar a consideração do Congresso Nacional uma proposta de lei complementar, que culminou na lei complementar 157/16.
Admitir, portanto, a tributação dessas atividades antes da LC 157/16 representa ofensa direta à taxatividade da lista, o que é vedado pelo ordenamento jurídico conforme o recente julgamento do STF.
FONTE: Migalhas – Por Luiz Roberto Peroba Barbosa e Ana Carolina Fernandes Carpinetti
09/07/2020