A temática que envolve a Lei Kandir, que regulamenta o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), é um tanto quanto delicada, mas comumente reduzida a avaliações simplistas. A incorreção se inicia na comum fala sobre “acabar com a Lei Kandir” quando, na maior parte das vezes, o que está sendo discutido é o insuficiente repasse financeiro da União para estados a pretexto de compensar perdas com a desoneração do ICMS sobre exportações.
A desoneração teve início, de fato, com a Lei Complementar 87/1996, a partir de projeto de autoria do então deputado federal Antônio Kandir, sob inspiração do saudoso jurista e professor Alcides Jorge Costa. A lei, que tem por finalidade a regulamentação do ICMS, estendeu a desoneração, originalmente prevista apenas para produtos industrializados e parte dos semielaborados (conforme texto do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988 à época), a todos os produtos destinados à exportação — e garantindo o aproveitamento de créditos.
Por se tratar de um imposto de competência estadual (artigo 155, inciso II, da Constituição), a previsão veio acompanhada de uma medida compensatória: entrega da União para os estados de valor correspondente à arrecadação realizada no período anterior à desoneração, conforme redação original do artigo 31 da Lei Kandir.
Em 2000, contudo, a Lei Complementar 102 alterou o mecanismo de repasses, que passou a obedecer a percentuais politicamente definidos e montante voluntariamente estipulado, quebrando a lógica inicial de atenuação de impactos. Ora, a necessidade de recomposição não significa que os resultados da desoneração não sejam positivos, mas se dá, especificamente, em uma perspectiva de reequilíbrio federativo e repartição do impacto suportado pelos entes subnacionais, especialmente daqueles cujas economias se pautam na exportação de commodities.
A desoneração das exportações se tornou constitucional com a Emenda 42/2003. O constituinte derivado, ao alterar a previsão original, reconheceu que a desoneração acompanhava a necessidade de equalização da receita dos estados. Tanto foi que introduziu previsão, no artigo 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando edição de lei complementar para regulamentar repasses — com a aplicação do mecanismo da Lei Kandir apenas de modo provisório, a fim de evitar lacuna[1].
Passado mais de uma década da reforma constitucional, sem edição do regramento referido no ADCT, o Supremo Tribunal Federal confirmou a insuficiência dos repasses, o propósito da norma transitória do artigo 91 e a omissão inconstitucional do Congresso Nacional diante da não-edição de lei complementar, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25[2].
A inconstitucionalidade, portanto, não apontou para a Lei Kandir, mas para o descumprimento da norma constitucional transitória (artigo 91 do ADCT), uma vez que esta já se encarregava de fulminar o repasse realizado com base na versão alterada da lei complementar de 1996. Ora, também não há inconstitucionalidade na desoneração per si — bastaria a existência de regramento suficiente para reprimir externalidades negativas.
O Congresso Nacional, por sua vez, nada aprovou depois da decisão do STF. As discussões sobre o tema, contudo, embora vagarosas e ainda sem resultados efetivos, acentuaram-se e resultaram em projeto de lei complementar (PLP 511/2018), já aprovado em comissão parlamentar mista destinada para tal fim — projeto este que também tem seus muitos) problemas, conforme sinalizamos em outra oportunidade[3].
O que está em evidência no momento, porém, é estratégia ainda mais preocupante, já concretizada em proposta e ameaçando ser pautada antes do projeto de lei complementar. Trata-se da PEC 42/2019 e essa pretende “acabar com a Lei Kandir” — ou melhor dizendo, com a desoneração do ICMS-exportação, agora consubstanciado na Constituição.[4]
A proposta visa retomar a incidência do ICMS sobre primários e semielaborados[5] e revogar o dispositivo que possibilita “excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outro produtos” indicados em lei complementar[6], para além da imunidade concedida pelo texto constitucional — isto é, possibilita a isenção heterônoma no caso específico do ICMS-exportação, tal qual realizada pela Lei Kandir em 1996. Por fim, também seria revogado o artigo 91, do ADCT — que, de fato, deixaria de fazer sentido, pois esvaziar-se-ia a necessidade “compensatória” gerada pela desoneração.
A ideia de retomar a tributação sobre parcela dos bens destinados à exportação não é nova. Proposta semelhante (PEC 37/2007) percorreu três legislaturas — estando pronta para deliberação do plenário do Senado em 2018 — e se encontra arquivada desde o término da última, em dezembro. A estratégia política, desta vez, não foi seu desarquivamento, mas a apresentação de nova e similar proposta, declaradamente inspirada na primeira, conforme consta da própria justificativa da PEC de 2019[7].
O debate justifica-se, segundo a nova PEC, pelos mesmos motivos que ensejaram a declaração de inconstitucionalidade por omissão na ADO 25, acrescido do esgarçamento do cabo de guerra entre União e estados — com tendência de rompimento em cima do contribuinte-exportador, prejudicando a balança comercial do país.
A justificativa da PEC 42/2019 empresta, também, fala do ministro da Economia, que afirmaria que a “a Lei Kandir morreu” — e a partir da qual a autoria conclui que seria “chegada a hora de sepultarmos essa desoneração”[8]. Ora, reiteramos: a Lei Kandir, no que tange a repartição equalizatória de recursos para os entes subnacionais pela desoneração do ICMS-exportação, morreu quando não recepcionada em definitivo pelo artigo 91 do ADCT; teve sua morte confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, com a declaração da insuficiência de seus critérios de repasse na ADO 25; e aguarda sepultamento com a edição de Lei Complementar. O argumento do “sepultamento” para justificar a retomada da exportação de tributo representa não só uma falha interpretativa como um contrassenso, uma vez que o próprio projeto do Congresso Nacional, oriundo da Comissão Mista — o PLP 511/2018 — propõe a manutenção (na razão de 20%) dos percentuais de rateio da Lei Kandir.
Não exportar tributos é uma lógica econômica elementar, e o que se evidenciou, quando da abertura econômica — necessária para conter o fenômeno inflacionário da década de 80 — que culminou com o plano real, em 1994, foi a passagem de um quadro superavitário para um deficitário, o que só foi corrigido com a Lei Kandir e a consequente melhora na competitividade dos produtos brasileiros perante o mercado internacional[9].
Acabar com a desoneração reeditaria, ainda, a confusão relativa à classificação dos bens, quando se alegava que seria tributado tudo que estava em estado puro. Aço e alumínio não eram tributados sob alegação de se constituírem como parcela dos semielaborados não alcançados pela incidência, conforme critérios da Lei Complementar 65/1991. Por muito menos, farelo de soja, açúcar, café torrado, minério em pelotas, seriam tributados.
Há, ainda, proposta de substitutivo, formalizada pelo relator da PEC 42/2019, em 31 de outubro de 19, para retomar a incidência do ICMS-exportação apenas para os produtos de origem mineral, diante de seu caráter não renovável e dos impactos socioambientais decorrentes de sua exploração[10]. Ora, o argumento não é descartável, mas para isso existem royalties, conforme previsão do artigo 20, parágrafo 1º, da Constituição. A via para equalização da questão minerária (acaso se entenda que a compensação está atualmente aquém do necessário) não é a tributária, mas pela já (há muito tempo) existente Compensação Financeira para a Exportação de Recursos Minerais (CFEM).
Decerto, a reinstituição do ICMS-exportação, total ou parcial, se faria funesta para o país. Significaria prejudicar a exportação, a balança comercial, o equilíbrio econômico, em prol das finanças do estados —que, embora combalidos e prejudicados, nada são sem o todo federativo. Mesmo que restrito aos produtos primários de origem mineral, parece que menor esforço parlamentar e maior viabilidade operacional se teria ao simplesmente aumentar os royalties sobre tal extração e destinar o aumento de sua receita aos governos estaduais e municipais dos respectivos territórios. Igualmente, se a União julgar haver espaço para tributar tais exportações, em uma perspectiva regulatória, pode recorrer a seu respectivo imposto (IE) — cujas alíquotas podem ser alteradas por decreto (artigo 153, parágrafo 1º, da Constituição), e pactuar politicamente a inclusão de uma dotação no orçamento fiscal que destine recursos em montante igual ao arrecadado pelo Imposto de Exportação incidente sobre minerais para os governos subnacionais dos entes dos quais foram extraídos.
A estratégia de retomada do ICMS-exportação, inclusive, vai na contramão do que tem sido proposto em termos de reforma tributária. É contraditório que um país que não apenas não consegue editar uma norma de repasse compensatório — como pretende renunciar à tarefa — e onde o contribuinte tem tanta dificuldade de aproveitamento ou ressarcimento dos créditos de ICMS acumulados, fale em reformar o sistema tributário para adotar um imposto sobre valor adicionado (IVA), de base não-cumulativa e essencialmente atrelado à um dinâmica de aproveitamento de créditos. O que garantiria o sucesso do aproveitamento no IVA, especialmente se adotado em modelo dual, se não conseguimos gerenciar nem mesmo, em menor escala, os créditos do ICMS?
Enfim, a ideia da revogação da desoneração do ICMS vai além do ideal de equalização dos impactos sofridos pelos entes subnacionais para arriscar uma espécie de ganho ou ressarcimento “a qualquer custo”, por meio de alternativa edificada em crasso erro e lapso de memória — que, além de representar um contrassenso junto ao que se almeja para o futuro, também não atenta aos problemas experimentados no passado.
O conflito federativo precisa ser equacionado, mas não à custa do exportador, já penalizado pela não devolução dos créditos acumulados e que nada tem a ver com os desencontros entre governos e poderes. Argumentos como a “ausência de boa vontade da União” não são capazes de relevar os graves impactos de uma possível retomada da tributação — com viés estritamente arrecadatório — das exportações. Das possíveis formas de resolver o conflito, estima-se ser essa a pior.
[1] Entendeu o STF que o então estipulado pela Lei Kandir não era suficiente para fazer frente ao ônus suportado pelos entes subnacionais, pelo que não acolheu o mecanismo ali contido, mas tão somente determinou que vigorasse como regramento tampão, até a edição da nova lei complementar (parágrafo 3º).
[2] O julgamento pelo STF foi analisado pelos autores em outra oportunidade, em coautoria com Celso de Barros Correia Neto, em artigo disponível em: <http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/20362> (AFONSO, José Roberto Rodrigues; PORTO, Lais Khaled; CORREIA NETO, Celso. As Compensações Financeiras da União aos Estados e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25. In: NOMOS:Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC. p. 268-289).
[3] Ver artigo disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-09/opiniao-estados-nao-avancam-recebertransferencias-creditos>.
[4] A proposta pode ser acompanhada pelo sítio eletrônico do Senado Federal, pelo link que segue: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136165>
[5] A PEC sugere a alteração do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a“, da Constituição, que passaria a prever a não incidência do ICMS tão somente “sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semielaborados, definidos em lei complementar, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.
[6] Artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “e”, Constituição.
[7] A diferença entre as duas propostas é que a PEC 37/2007 pretendia, originalmente, que a compensação de créditos nas operações imunes fosse feita com impostos federais não compartilhados com estados e municípios (ou seja, Imposto de Exportação; Imposto de Importação e parte do IOF). Essa pretensão, contudo, foi extirpada (justificando-se impossibilidade prática) pelo próprio relator da PEC, que apresentou substitutivo idêntico ao texto posteriormente apresentado – pelo próprio – como PEC 42/2019.
[8] Vide justificação da PEC 42/2019, disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7938078&ts=1569509539821&disposition=inline>
[9] Sobre as razões que motivaram a Lei Kandir, recomenda-se VARSANO, Ricardo. Fazendo e Desfazendo a Lei Kandir. Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, ago/2013.
[10] Relatório Legislativo e substitutivo disponíveis em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8033755&ts=1572556043007&disposition=inline>.
Por José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto
José Roberto Afonso é pós-doutorando da Universidade de Lisboa e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Lais Khaled Porto é advogada, doutoranda e professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2019.