Grandes empresas têm conseguido decisões nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) para excluir do cálculo da contribuição previdenciária patronal e das contribuições destinadas a terceiros – como o Sistema S – valores descontados de empregados por uso de vale transporte, vale-alimentação e plano de saúde com coparticipação. A rede de farmácias Pague Menos e a Ciclus Ambiental, responsável pela coleta de lixo na cidade do Rio de Janeiro, estão entre as beneficiadas.
A tese, segundo advogados, é uma das mais importantes da área previdenciária. Surgiu após a elaboração de pareceres por grandes escritórios e ganhou ainda mais força na pandemia, como uma forma de reforçar o caixa das empresas. Algumas, porém, resolveram adotar a prática sem levar a discussão à Justiça. E, em caso de autuação, pretendem se defender na esfera administrativa.
No Judiciário, o tema ainda divide os tribunais. Apenas no TRF da 5ª Região, que abrange seis Estados do Nordeste, já existe uma consolidação a favor das empresas, segundo levantamento realizado pelo TSA Advogados.
Nos TRFs da 3ª (SP e MS) e 4ª Regiões (Estados do Sul), de acordo com o levantamento, existem decisões nos dois sentidos. Na 2ª Região (RJ e ES), há poucos acórdãos favoráveis às empresas. E no TRF da 1ª Região, que abrange 13 Estados mais o Distrito Federal, nada foi localizado.
As empresas alegam, nos processos, que deve entrar no cálculo das contribuições previdenciárias apenas o que for destinado a retribuir o trabalho, como prevê o artigo 195, inciso I, alínea a, da Constituição e o artigo 22, inciso I, da Lei nº 8.212, de 1991. O que não seria o caso dos valores descontados dos funcionários referentes a vale-transporte, alimentação e plano de saúde.
Para a Receita Federal, porém, esses valores fizeram parte da remuneração do trabalhador e não podem ser excluídos da base das contribuições, que é a folha de pagamentos – no caso da patronal, a alíquota é de 20%. O entendimento está na Solução de Consulta nº 96, editada em junho pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), que orienta os fiscais do país.
Ao contrário da orientação da Receita, o TRF da 5ª Região acatou três pedidos da rede de farmácias Pague Menos. Duas decisões transitaram em julgado – não há mais como recorrer. Tratam de assistência médica e vale-transporte (processos nº 0821963- 38.2019.4.05.8100 e nº 0821762-46-2019.4.05.8100). No processo sobre vale-alimentação (nº 0821952-09.2019.4.05.8100) ainda cabe recurso.
Ao analisar o pedido referente à assistência médica, a 2ª Turma entendeu que o artigo 28, parágrafo 9º, alínea q, da Lei nº 8.212, de 1991, é claro ao afirmar que esses descontos “não integram o salário-de-contribuição”. E a 3ª Turma, ao tratar do vale-transporte, destaca decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para a exclusão da coparticipação da base de cálculo das contribuições (Resp 1.614.585 e Resp 1.598.509).
No acórdão sobre vale-alimentação, o relator, desembargador Fernando Braga Damasceno, da 3ª Turma, cita decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros, acrescenta, entenderam que o pagamento da contribuição patronal incide sobre ganhos habituais do empregado (RE 565.160).
“Desse modo, tratando-se a rubrica em debate de um valor descontado da remuneração do trabalhador, não pode ser enquadrada como um valor pago, devido ou creditado, muito menos ganho habitual”, diz no voto.
Anário Carvalho, diretor de Controladoria e Planejamento da Pague Menos, afirma que a rede optou pela via do Judiciário “a fim de seguirmos em conformidade com os dispositivos legais e demais regramentos para cumprimento das obrigações tributárias”.
Já a Ciclus obteve decisão definitiva e unânime da 3ª Turma do TRF da 2ª Região para retirar do cálculo das contribuições os descontos de assistência médica (processo nº 5032219- 45.2019.4.02.5101).
O relator do caso, desembargador Theophilo Antonio Miguel Filho entendeu que “havendo participação financeira do empregado beneficiado, mediante desconto sobre seu vencimento, tal parcela não pode ser usada como base para a contribuição previdenciária, por ostentar natureza indenizatória”.
Segundo o advogado que assessorou a Pague Menos e a Ciclus nos processos, Gustavo Mitne, sócio do Balera, Berbel e Mitne Advogados, já existem diversas decisões de segunda instância confirmando o direito dos contribuintes, a despeito de todas as soluções de consulta emitidas pela Receita Federal – as nº 4, 35 e 313, todas de 2019, e a nº 58, de 2020, além da editada neste ano.
Em março, o órgão chegou a editar uma solução de consulta favorável ao contribuinte, para a exclusão de valores de vale-transporte e de assistência médica. Logo depois, porém, foi cancelada. “Não se pode dizer que esses valores são remunerações. O trabalhador nunca colocou as mãos nesse dinheiro”, diz Mitne.
A discussão sobre o tema aumentou desde 2020, segundo o advogado Eduardo Correa da Silva, do Correa Porto Advogados. “Essas decisões de TRFs têm dado mais força à tese”, afirma ele, que obteve recentemente decisão favorável a um cliente no TRF da 3ª Região (processo nº 5002988-49.2021.4.03.0000).
Apesar das decisões favoráveis, o tema ainda está em aberto, diz o advogado Alessandro Mendes Cardoso, do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados. “A tese para vale transporte e auxílio-alimentação é boa, já que se trata de verba de natureza social e não remuneratória, seja na parcela do empregador ou do empregado.”
Há um problema, porém, nessas discussões, segundo Caio Taniguchi, do TSA Advogados.
Com a exclusão desses valores, a Previdência pode não contar determinados períodos para a aposentadoria dos trabalhadores que ganham um salário mínimo, já que a lei estabelece esse limite para o cálculo. Ele destaca ainda que, com as decisões favoráveis, surgiram “teses filhotes”, que incluem seguro de vida e previdência privada.
Por nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) afirma que essas verbas têm natureza remuneratória. E como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em repetitivo (REsp 1358281), acrescenta, “se a verba possuir natureza remuneratória, destinando-se a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, ela deve integrar a base de cálculo da contribuição”
Valor Econômico – Por Adriana Aguiar, 24/08/2021.