A década de 90 foi a era das chamadas “grandes teses”. Numa época em que os limites da Carta Cidadã ainda eram testados, os tributaristas viveriam notável protagonismo na Corte Constitucional que, por sua vez, sinalizaria franca receptividade a uma certa “retórica das inconstitucionalidades”. Euforia.
Nos anos 2000, os discursos antiexacionais já não causariam impressão. O Supremo Tribunal Federal (STF) passaria a escrutinar com maior temperamento as proposições de inconstitucionalidades e, em boa parte das disputas, a Fazenda Nacional triunfaria. Melancolia nostálgica.
Agora, no crepúsculo da segunda década do século, advém o julgamento do RE nº 574.706 (tema 69), no qual a Corte Constitucional – alterando seu posicionamento histórico – condenou a técnica de inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Eis que o “zeitgeist” passa a ser de viralização de “teses filhotes” colocadas a reboque do tema 69. Nova euforia.
E é no clima de “toda inclusão de ICMS será castigada” que testemunhamos a corrida de empresas ao Judiciário
E é no clima de “toda inclusão de ICMS será castigada” que testemunhamos a corrida de empresas ao Judiciário, não só almejando a imediata aplicação daquele julgamento (ainda em curso) a milhares de casos individuais, como também forçando a volta do pêndulo, com leituras “maximalistas” do RE nº 574.706, aplicadas a outros pares de tributos.
Tome-se o exemplo de contribuintes que têm exumado tese há anos enterrada pelo STJ: a de que o ICMS não pode compor a base de cálculo do lucro presumido do IRPJ e da CSLL.
Como construção teórica, a tese é invertebrada; não se exclui o que já foi excluído, imperativo lógico melhor elucidado adiante. Porém, o que realmente espanta é que, nesta recidiva, a tese seja marotamente colocada sob o tema 69 apenas e tão somente porque os verbetes “ICMS” e “base de cálculo” aparecem associados a tributos federais (IRPJ e CSLL).
É preciso ter em mente as diferenças entre os regimes do lucro real e presumido do IRPJ, também aplicáveis à CSLL. No primeiro, há grande margem para dedução de despesas operacionais. No segundo, a base de cálculo do IRPJ é obtida pela aplicação de um percentual de presunção sobre a receita bruta, sem margem para dedução de despesas.
E por que se diz que o lucro é real em um regime e presumido noutro? Porque no lucro real a base de cálculo do IRPJ é apurada com os olhos mirados na realidade contábil do contribuinte. Já o lucro presumido opera com coeficientes pré-definidos em lei sobre a receita bruta, sendo certo que cada setor econômico possui coeficientes próprios. O resultado dessa operação não é exato e nem pretende ser. Antes disso, é apenas uma estimativa (presumida) do quanto a empresa que desempenha determinada atividade econômica teve de lucro em dado período.
E o ICMS?
No regime do lucro real, o tributo estadual é dedutível. Não há discussão a respeito.
Já no regime do lucro presumido o ICMS é uma das despesas presuntivamente excluídas da receita bruta para fins de obtenção do lucro. Daí a afirmação de que não se exclui o que já foi excluído. Daí também porque esta abordagem não pode ser atrelada ao que está em discussão no STF. Lá, o ICMS de fato compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins; aqui, o ICMS foi expurgado da base de cálculo ao se aplicar o percentual de presunção.
Esta é uma discussão sobre liberdades fiscais.
Se a empresa possui despesas significativas, não há motivos para renunciar à possibilidade de descontá-las e pagar menos tributo, de modo que o regime do lucro presumido, apesar de juridicamente privilegiado, se prova economicamente desinteressante. O contribuinte é livre para escolher o regime mais ajustado à sua realidade da mesma forma que deve ser consciente quanto ao caráter binário dessa escolha.
Você, leitor, encara a mesmíssima situação na hora de declarar o IRPF. Se são poucas as despesas dedutíveis, o mais vantajoso é optar pelo modelo simplificado, que considera um desconto padrão de 20% sobre uma base de cálculo pré-definida. Porém, por permitir deduções de despesas, o modelo completo tende a ser economicamente mais vantajoso para quem conta com dependentes, paga escola particular, plano de saúde e previdência privada.
Admitir a dedução de despesas não previstas no lucro presumido equivale a criar um “tertium genus”, congregando o melhor de dois mundos. É como se, na próxima declaração do IRPF, um dado contribuinte achasse meios de abater despesas médicas no formulário simplificado, embora sabidamente só esteja autorizado a fazê-lo no formulário completo. Se tolerada, essa inusitada declaração híbrida deporia contra a racionalidade do sistema, que é balizado na liberdade de escolha entre regimes jurídicos dados e não na liberdade de criar regimes jurídicos próprios.
Para arrematar, se a exclusão do ICMS da base de cálculo do IRPJ no lucro presumido guardasse relação com tema 69, o STF passaria a julgar recursos em que a tese é discutida. Entretanto, recentemente – após o início do julgamento do tema 69 -, o ministro Celso de Melo não viu índole constitucional nessa discussão (RE 939.742), o que bem demonstra como os tópicos são imiscíveis, inclusive sob a perspectiva do próprio STF.
Tudo para dizer que a PGFN está atenta a esses movimentos e não ficará inerte diante da maximização dos efeitos do tema 69, quer em relação ao ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins propriamente dito, quer em relação às analogias redentoras.
Por Antônio Claret de Souza Júnior e James Siqueira
Antônio Claret de Souza Júnior e James Siqueira são procuradores da Fazenda Nacional em São Paulo.
Fonte : Valor-21/12/2017