Já se escreveu (Antonio Manuel Hespanha) que a história é um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Tudo se exemplifica, se justifica, se explica. Para tudo há uma lembrança pronta. Eu sempre resisti à armadilha posta por aqueles que acham que a história traz lições e que se repete. É o pensamento de Cícero, o tribuno romano que acreditava que a história era a mestra da vida. Será? Pensava que não. Acho que chegou a hora de mudar de ideia. Penso agora que sim, que a história também ensina e ilustra. Em tempos de Covid-19 há lições históricas a tomar. Quais?
Além de ação (muita ação) o enfrentamento da Covid-19 sugere alguma (muita) reflexão. Há problemas historiográficos, comparativos, dramatúrgicos, políticos (principalmente), epistemológicos (de paradigmas científicos). A Covid-19 sugere também algumas leituras, isto é, para privilegiados que podemos substituir o deslocamento e o trânsito e a espera pela paz dos livros.
Há títulos disputadíssimos. De algum modo são livros que tratam de pestes e de mortes incontáveis. Nessa lista, “A Peste”, de Albert Camus, “O Decameron”, de Giovanni Boccaccio, “Morte em Veneza”, de Thomas Mann. Cristiano Paixão, competentíssimo professor de História do Direito, inclui ainda “O ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago. Nesse último livro há dois personagens que sobressaem: a mulher do médico e o cão das lágrimas. Simbolizam a solidariedade, a compreensão para com o outro e a disponibilidade permanente para ajudar. Precisamos imitar a mulher do médico e o cão das lágrimas. Necessitamos de solidariedade e de compreensão.
Quanto ao tema da história há semelhanças e paralelos com fatos passados que chamam a atenção, e que dão ao registro histórico uma autoridade inegável. Refiro-me ao problema da varíola e a revolta da vacina (1904), à gripe espanhola (1918) e ao surto de meningite (meados da década de 1970). Pode-se compreender nosso tempo e nossos horrores no contexto dessas experiências? Claro que sim. Tenho a impressão de que sempre houve negacionistas, ignorantes, brutamontes, aproveitadores da desgraça. Mas também há bem-intencionados. Identifiquemos e dialoguemos com essas figuras. Apoiemos essas últimas, repudiemos aquelas primeiras.
Em 1904 o então presidente Rodrigues Alves (que morreu de gripe espanhola 15 anos depois) contou com uma trinca imbatível: Pereira Passos (o prefeito do Rio, que havia estudado a reforma do Barão Haussmann em Paris), Lauro Müller (que coordenou a reforma do porto do Rio de Janeiro) e Oswaldo Cruz (diretor da saúde pública, o tirano da vacina, como seus críticos o definiam). No combate à varíola a vacinação tornou-se obrigatória.
Contra a ciência e a vacina estavam os positivistas, os florianistas, Lauro Sodré e o próprio Rui Barbosa. Quem diria, Rui, a (suposta) mente mais iluminada da época, condenava a vacina, não admitindo se envenenar, com a introdução, em seu corpo “de um vírus cuja influência existem [iam] os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Estava de olho nas eleições, que sempre perdeu. Já havia a necropolítica, bem antes da criação desse neologismo macabro. A má política já tinha a mania de negar a ciência.
O combate à febre amarela foi conspurcado com uma obstinada perseguição de pobres que habitavam o centro do Rio de Janeiro, o que justificou a revolta popular. Bondes incendiados, barricadas e muitas prisões. A necropolítica aproveitou o momento para negligenciar o pobre. Nenhuma novidade.
Sigo com a “influenza”. A censura em tempos de epidemia explica, inclusive, o batismo da gripe de 18-19 como “espanhola”. Era o tempo da primeira guerra mundial. Os países envolvidos no conflito não noticiavam as mortes pela gripe; era propaganda negativa. A Espanha, porque fora da guerra, não se submetia a essa regra. Os jornais espanhóis tratavam do assunto, o que resultou na identificação da gripe com o país. A gripe espanhola é, assim, mais um exemplo do odioso controle de informações, em desfavor da população. A gripe era um segredo de guerra. Matou mais do que os campos de batalha. A necropolítica política desinforma. Ilude.
Nas primeiras páginas do recentemente lançado “Metrópole à beira-mar” o escritor Ruy Castro narra com precisão de pormenores a tragédia da gripe no Rio de Janeiro. Um contemporâneo da tragédia, Lima Barreto, não tratou da gripe espanhola em suas crônicas, talvez porque internado pelo alcoolismo. No entanto, em seu Diário, registrou a violência policial na revolta da vacina. Lê-se em outro contemporâneo, João do Rio, na “Alma encantadora das ruas”, uma crônica, “Sono calmo”, que descreve o ambiente dos cortiços, cujos proprietários alugavam esteiras para dormir. Os locatários foram sistematicamente dizimados pelas autoridades. Pedro Nava, o grande memorialista, conta que viu uma criança tentando mamar no seio da mãe, morta pela gripe, caída no chão. Gilberto Amado, intelectual e político sergipano que vivia no Rio, conta-nos que via defuntos jogados em caminhões.
A Biblioteca Nacional disponibiliza em sua hemeroteca digital os jornais da época. Sugiro a leitura dos classificados do Jornal do Brasil. Vendiam todos os tipos de remédios milagrosos. Pregava-se o uso do sal de quinino, que na verdade matava por intoxicação. Difundia-se o uso da aspirina, que em doses cavalares era letal. Tragédias se equivalem.
Há também uma dramaturgia que acompanha essas levas de mortes maciças. Parece-me a dramaturgia de toda tragédia. Nega-se o fato, resiste-se a um novo cotidiano, o que fundamental para a retomada da situação perdida. Essa negação se fazia por intermédio da divulgação de informações falsas, a exemplo de um reclame do sindicato dos trabalhadores do comércio no Rio, que afirmava que a gripe era benigna e que apenas atacava os mais fracos. Recomendavam um purgante como remédio certeiro.
No caso da meningite, e nesse caso meu registro é biográfico, e não bibliográfico, recordo-me que se confundia meningite com insolação, retomando-se um determinismo sanitário paliativo. Não se explicou o que houve. E também não se perguntava. Por quê?
Uma reflexão em torno dessas três epidemias (varíola, gripe espanhola e meningite) pode permitir o alcance de denominadores comuns de orientação para qualquer forma de ação no momento presente: informação e precaução. A boa informação (o que de imediato exclui a mensagem do zap do tio mala que todos temos ou somos) exige que nos preocupemos com as fontes. Quem disse? Quem escreveu? O que de fato foi dito? O que de fato foi escrito? Há provas ou outras referências? O uso malicioso de informações, nesse campo sanitário, é imperdoável. E se dúvidas há, a precaução é guia seguro para a ação segura.
No limite, a precaução justifica o medo. Filho de Ares e de Afrodite, o Medo era também uma figura mitológica que acompanhava o deus da guerra (Ares) nas batalhas. Apavorava os inimigos, que em desespero fugiam. O medo tem uma função estabilizadora de nossas defesas. Não se confunde com a covardia. A lição histórica que se tira dos fatos aqui narrados, parece-me, consiste em pensarmos que viver cautelosamente, e de par com a informação qualificada, pode ser, em momento crítico, um meio adequado para vivermos mais, e melhor, bem como para acudirmos quem precisa de ajuda nessa hora difícil. E também no limite, como a mulher do médico e como o cão das lágrimas, precisamos ser solidários.
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-mai-31/embargos-culturais-covid-19-usos-historia