Um dos temas mais relevantes na análise dos tributos sobre o consumo diz respeito ao conceito de repercussão econômica, em especial no que tange ao direito de repetir ou de compensar o que foi pago a maior caso tenha havido sua cobrança de forma inconstitucional. Tratei desse aspecto em outra coluna (leia aqui), o que também foi analisado por Adolpho Bergamini (leia aqui).
Nesta coluna sigo outro caminho, embora correlato. Para evitar o debate sobre repercussão econômica, próprio da fase final do processo, no qual as empresas buscarão repetir ou compensar, é usual, na fase inicial, efetuar o depósito integral do montante em discussão, por meio do qual, ao invés de pagar e depois pedir a devolução, depositam em juízo o valor controverso e, caso vençam a lide, levantam o montante depositado, sem debate sobre repercussão econômica.
Qual o problema nesta fase inicial do processo sob uma ótica jurídica formal? É necessário compreender um pouco sobre algumas cadeias econômicas existentes no Brasil real. É usual existirem grandes compradores que são intermediários exclusivos de certos produtos para uso/aplicação aos efetivos consumidores finais. Um exemplo pode facilitar a compreensão: certos produtos ou medicamentos são de exclusivo uso hospitalar, e são comprados de diversos fornecedores pulverizados. Sob uma ótica jurídica formal, esses fornecedores serão os processualmente legitimados para propor a ação. Todavia, no âmbito econômico os impactos serão integralmente sentidos pelos hospitais e pelos consumidores desses produtos – daí a distinção entre o formalismo jurídico e a repercussão econômica dos tributos sobre o consumo. Os exemplos poderiam se multiplicar, como na cadeia de combustíveis.
Isso já foi compreendido nos estudos sobre economia fiscal, como se vê no sistema de substituição tributária, pela qual alguns produtos são tributados de forma concentrada nos poucos compradores intermediários (oligopsônio), ao invés de serem tributados diretamente nos muitos produtores pulverizados. Ocorre que esse aprendizado econômico não foi capturado pelo Direito, que permanece formalmente apegado a concepções jurídicas formalistas, em especial no âmbito processual.
Um caso concreto pode ser identificado com relação aos hospitais, fruto do brutal aumento de ICMS no Estado de São Paulo, realizado pelo governo Dória, repleto de inconstitucionalidades, através da Lei paulista 17.293/20 e dos Decretos 65.252, 65.253, 65.254 e 65.255, e que foram analisados anteriormente (leia aqui, aqui, aqui e aqui). Alguns produtos hospitalares que eram vendidos com alíquota zero de ICMS passaram a ter incidência de 15%, ocasionando aumento no custo final desses produtos, a despeito das flagrantes inconstitucionalidades dessa majoração.
O ideal seria que os laboratórios e demais fornecedores de medicamentos entrassem em juízo, mas isso seria uma solução pulverizada, gerando problemas concorrenciais entre essas empresas, e cada qual correndo o risco fiscal da lide judicial – o que afasta tais fornecedores da litigância contra o governo, preferindo repassar o custo aos compradores. Todavia, o elo intermediário nesta cadeia econômica, os hospitais, ao constatarem a majoração de preços, são levados a litigar contra o governo em face das inconstitucionalidades presentes e da dificuldade em repassar tais custos aos consumidores finais e aos planos de saúde – tudo isso em pela pandemia!
Eis o problema: como os hospitais, ao litigarem contra o governo neste caso, podem fazer o depósito do valor controverso de ICMS na fase inicial do processo? Nas faturas e notas fiscais emitidas pelos fornecedores de medicamentos aos hospitais já consta o ICMS majorado, logo, uma vez pagas, o tributo inconstitucional será quitado. Como depositar judicialmente essa diferença, a parcela controversa?
Uma possibilidade é através do reconhecimento dessa cisão entre o formalismo jurídico e a repercussão econômica, com a consequente autorização judicial para que haja o depósito da diferença de ICMS apurada, com o abatimento dessa majoração das faturas/notas fiscais emitidas. Ou seja, o intermediário (hospitais) paga as faturas, sem pagar o ICMS nelas embutido. Haveria o destaque do imposto nas notas fiscais, porém as faturas não o incluiriam no montante a ser pago pelos hospitais.
Nesta hipótese, o hospital será o único responsável pelo pagamento do ICMS caso haja perda na demanda judicial, porém a repercussão econômica estará afastada. A conta é bastante fácil de ser feita, pois tais medicamentos/produtos hospitalares tinham alíquota zero de ICMS, e passaram a ter uma carga tributária enorme – mesmo em meio a esta pandemia. Logo, a diferença é direta, na veia, fácil de ser apurada contabilmente.
Não se trata de hipótese cerebrina, mas de um problema concreto, que pode ser judicialmente contornado, caso haja a compreensão de que a fronteira entre o formalismo jurídico e a repercussão econômica é muito mais fluida do que se imagina. E isso pode ser aplicado a outras cadeias econômicas, como referido.
Já está na hora de mitigar o formalismo jurídico processual aproximando-o do mundo real da economia. Costuma-se dizer que, o que não está nos autos, não está no mundo – e é verdade, mas também é necessário que o mundo entre na compreensão e na formação dos juízes, além do formalismo jurídico.
Por Fernando Facury Scaff
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2021.