Empresas se preparam diante de incerteza sobre contencioso pós reforma tributária
Equipe JOTA PRO Tributos
12/02/2025
Insegurança em torno da compensação de créditos é um dos pontos de maior preocupação, dizem advogados
A Emenda Constitucional 132/2023 estabeleceu as bases para a criação do IBS e CBS e definiu o cronograma de transição para a reforma tributária. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou o PLP 68/2024, primeira parte da regulamentação da reforma tributária. Seus vetos ainda retornam ao Legislativo. Enquanto isso, o Projeto de Lei Complementar 108/2024, que detalha a regulamentação do IBS, ainda está em tramitação no Congresso e também deve passar por ajustes. Com tantas movimentações, derrubadas e retomadas, a incerteza afeta o presente e o futuro tributário das empresas, que já começam a tomar ações para não apenas resolver o contencioso já existente, mas para antecipar possíveis questões que vão surgir com a reforma.
Escritórios e consultorias tributárias registram um aumento na busca por soluções que permitam encerrar ou prevenir disputas antes da transição, de acordo com as fontes ouvidas pelo JOTA . Em 2026, a aplicação de alíquotas-teste para o IBS e a CBS permitirá que contribuintes se familiarizem com o novo sistema. Em 2027, o PIS e a Cofins serão extintos, e a CBS entrará integralmente em vigor. Entre 2029 e 2032, as alíquotas do ICMS e ISS serão gradualmente reduzidas, enquanto as do IBS aumentarão. O novo modelo será totalmente implementado em 2033. Com a convivência entre o sistema antigo e o novo há a previsão de aumento de litigiosidade – o que companhias têm buscado evitar.
Depois da transição, a adaptação ao novo modelo tributário exigirá mudanças profundas nas estratégias das empresas. Segundo levantamento da Thomson Reuters de setembro de 2024, 17% das empresas pesquisadas já têm um grupo de trabalho voltado para as adaptações previstas, e 62% preveem aumento dos custos para aprender as novas regras e se adaptar a elas. Os investimentos devem ser principalmente destinados à capacitação de mão de obra e tecnologia, segundo a pesquisa.
A hora é agora
“A questão dos créditos tributários é uma das que mais gera preocupação, e eu vejo isso como um grande potencial para contencioso”, diz a tributarista Camila Tapias, do Utumi Advogados. A incerteza sobre como os créditos tributários serão tratados no novo sistema tem levado muitas empresas a se movimentar desde já para se livrar deles. O setor industrial tem sido um dos mais ativos, assim como as exportadoras no geral – que acumulam grande contingente de créditos de ICMS, PIS e Cofins. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que o passivo tributário do setor representa cerca de 15% do faturamento das empresas.
A situação atual já complica o cenário: apesar da garantia constitucional de acúmulo de crédito das exportadoras, na prática, os estados impõem várias limitações a esse direito, diz Sergio Villanova, do escritório Buttini Moraes. As empresas acabam judicializando essa questão, que se arrasta. Já durante a transição, as empresas poderão compensar créditos acumulados de ICMS, PIS e Cofins com o novo sistema de IBS e CBS – mas o modelo de compensação ainda não tem regulamentação. Empresas que possuem créditos acumulados de ICMS terão 20 anos para utilizá-los antes que percam a validade, e, durante esse período, esses créditos poderão ser compensados com o novo IBS, de acordo com regras que ainda serão regulamentadas pelos estados. Os créditos acumulados de PIS/Cofins poderão ser compensados com o novo imposto, mas o prazo e a forma de compensação ainda precisam ser detalhados em legislação complementar.
Por isso, companhias estão antecipando o uso dos créditos para evitar perdas futuras. Parte delas está vendendo créditos com deságio para players de outros setores que não os acumulam tanto, como o varejo e telecomunicação. Nem sempre a venda por valores menores vale a pena, no entanto. “No desespero, tem muitos clientes falando em vender o crédito para não morrer com ele, mas isso vai de cada um”, diz Camila Tapias. “Temos feito o cálculo na unha mesmo, considerando se o cliente precisa de caixa, o setor em que se encaixa, uma série de critérios”.
Por exemplo, dependendo do estado, há mais jurisprudência favorável às empresas para conseguir a liberação desses créditos, diz Vinícius Jucá, sócio de tributário do Lefosse. “O estado de Minas Gerais é assim, porque lá existem várias empresas de mineração com foco em exportação”, diz. “Desta forma, diversas outras companhias entram com mandado de segurança para afastar as limitações que o estado de Minas põe à transferência desses créditos de exportação. Pode valer a pena”.
Por último, as empresas também podem fazer um plano de utilização, diz Sergio Villanova, do ButtiniMoraes. “Por mais que várias questões ainda estejam pendentes de aprovação, essa preparação você já pode ir fazendo”, diz. “Precisa fazer a gestão desse crédito acumulado, ir atrás do pedido de apropriação e entender como utilizá-lo antes de 2033”.
Transição
A fase de transição, que vai de 2026 a 2032, exigirá que empresas operem sob as regras dos tributos antigos e do novo sistema. A Confederação Nacional do Comércio (CNC) estima que os investimentos em sistemas de gestão tributária e consultoria possam custar entre 0,5% e 2% do faturamento anual das empresas durante esse período. Em comparação com o sistema atual, esse custo é maior ou semelhante, a depender do porte e da gestão da empresa. A expectativa de diminuição desses custos deve se concretizar apenas depois da implementação da reforma. Além disso, para empresas que aproveitam o grande acúmulo de créditos tributários, a incerteza sobre se será possível compensá-los integralmente também têm um custo na falta de previsibilidade financeira.
Para mitigar as frentes de incerteza, alguns dos advogados ouvidos pelo JOTA têm recomendado a inclusão de cláusulas específicas para ajustar contratos em função de alterações na carga tributária, as chamadas cláusulas de reajuste tributário, permitindo que as partes revisem os valores contratuais diante de mudanças na legislação tributária. A redação mais cuidadosa, levando em conta possíveis impactos da transição e do cenário pós reforma, pode preservar a relação com fornecedores importantes.
No setor de tecnologia, por exemplo, empresas, ao avaliar o impacto da reforma tributária e do período de transição em seus modelos de negócios, estão também buscando compreender os impactos da mudança em toda a cadeia de produção na qual estão inseridas, segundo pesquisa da EY Brasil. A partir disso, têm identificado a necessidade de rediscutir os contratos e definir as metodologias para garantir o modelo correto de precificação dos produtos e serviços.
Sem resposta
O IBS e a CBS ainda apresentam pontos de incerteza que precisam ser regulamentados, especialmente em relação ao contencioso tributário. O PLP 108/2024, que trata do Comitê Gestor do IBS, ainda está em tramitação no Legislativo e já levanta preocupações semelhantes às que envolvem a CBS. Um dos temores é o surgimento de interpretações divergentes em relação aos tributos na esfera administrativa.
“IBS e CBS são, teoricamente, gêmeos e, em uma operação, vai incidir tanto IBS quanto CBS”, diz Camila Tapias. “Porém, na hora em que uma operação for autuada, vou ter dois contenciosos, que inclusive podem ser divergentes, porque um tribunal não tem obrigação de decidir igual ao outro. Isso tem que ser visto”.
Para evitar esses conflitos entre o IBS e a CBS, está prevista a criação de um Comitê de Harmonização IBS-CBS, para uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação relativa a ambos os tributos, prevenindo litígios — mas os detalhes de como esse órgão vai funcionar ainda estão por vir.
Além disso, o IBS terá um Comitê Gestor, que será responsável pela distribuição do valor arrecadado para cada ente federativo. Apesar de garantir participação de representantes de estados e municípios, a falta de um critério bem definido para repartição da receita pode gerar conflitos, apontam especialistas.
Estados mais ricos tendem a arrecadar mais, enquanto estados mais pobres dependem de repasses federais para equilibrar suas contas. Um exemplo prático de um problema semelhante ocorreu com a Lei Kandir, que isentou do ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados. A União prometeu compensar os estados pelas perdas, mas os repasses nunca foram suficientes, gerando litígios.
Para evitar esse tipo de conflito, o PLP 108/2024 prevê que, nos casos em que dois ou mais entes federativos tenham interesse na fiscalização sobre o mesmo período, sujeito e fato gerador, o procedimento deve ser conjunto sob a coordenação do Comitê Gestor do IBS. Mas, com o texto ainda em tramitação, não há certeza de como isso vai acontecer.
Outro ponto que tem potencial para gerar discussões são as alíquotas do IBS e do CBS. Ainda não está claro como as decisões sobre elas serão tomadas e quem terá a palavra final sobre os reajustes. Hoje, estados e municípios têm autonomia para definir certas alíquotas de seus tributos: ICMS e ISS, respectivamente – a raiz da “guerra fiscal”. Com a reforma, a arrecadação do IBS será compartilhada, e a CBS ficará sob controle da União. O texto da reforma prevê que as alíquotas iniciais serão fixadas para manter a arrecadação no mesmo nível anterior. No entanto, não está claro como futuras alterações serão decididas e quem poderá promovê-las.
Há três cenários possíveis. No caso de estados e municípios poderem definir suas próprias alíquotas do IBS, mesmo dentro de certos limites, pode haver variação relevante de carga tributária, o que perpetua a guerra fiscal – e dificulta as operações de empresas nacionais, por exemplo. Se o Comitê Gestor definir uma única alíquota, a perda de autonomia de estados e municípios trará fricções políticas. Um modelo híbrido, que permitisse a estados e municípios aplicar um percentual fixo mais um ajuste limitado, poderia conciliar interesses, mas manteria a complexidade do sistema.
Em relação ao julgamento administrativo, a CBS deve ser analisada pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), enquanto o IBS ficará a cargo de uma nova estrutura de julgamentos, tratada no PLP 108.
O fato, porém, é alvo de críticas. Especialistas apontam, por exemplo, que o Carf ainda não tem jurisprudência para lidar com as questões da reforma. “O melhor dos mundos seria criar um novo tribunal”, diz Camila Tapias. “Não sendo possível, o Carf precisa abrir uma quarta seção. Embora a CBS tenha algumas poucas semelhanças com PIS e Cofins, tem muita coisa nova, e precisamos de julgadores especializados e capacitados para isso”.
O dia depois de amanhã
Atualmente, o Brasil tem um dos maiores contenciosos tributários do mundo, equivalente a 75% do PIB, de acordo com estudo do Insper. Após a conclusão da transição, espera-se que a litigiosidade tributária seja reduzida. Mas, para que isso se concretize, outras práticas devem crescer junto da reforma. “Há essa expectativa de diminuição do litígio, mas eu acho que essas iniciativas recentes, como transação, mediação, são até mais importantes, porque é um pouco de mudança de cultura de litígio”, diz Paulo Teixeira Duarte, da Stocche Forbes Advogados. “Pode mudar a lei, mas temos uma cultura de entrar com ação com tudo”.
Depois da sanção presidencial ao PLP 68, parte do setor produtivo afirmou que a reforma tributária, como está, tem pontos que podem levar à judicialização. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), por exemplo, disse que a limitação do direito de crédito para bens usados na atividade produtiva, como veículos, computadores e serviços de telecomunicações fornecidos aos funcionários é “preocupante” e que “a vinculação do crédito de IBS/CBS ao pagamento efetivo do tributo transfere o ônus da fiscalização ao adquirente, dificultando o fluxo de caixa das empresas”. Além disso, afirma que a exigência de uso de créditos em até cinco anos “afronta princípios constitucionais”.
Os novos tributos também trarão novidades na fiscalização e cobrança. Embora a unificação traga a promessa de simplificação, a nova estrutura tributária também pode gerar desafios operacionais, especialmente para pequenas e médias empresas (PMEs), que frequentemente possuem menos recursos para se adaptar a um sistema tributário mais dinâmico e digitalizado. Segundo um estudo do Sebrae, cerca de 70% das micro e pequenas empresas no Brasil têm dificuldades para cumprir obrigações tributárias devido à complexidade do sistema – e isso ainda pode piorar.
No caso do IBS, a fiscalização será feita também pelo Comitê Gestor, que acompanhará as declarações e pagamentos dos contribuintes. No entanto, o detalhamento operacional desse novo modelo ainda não está claro, o que pode gerar dificuldades para empresas que já enfrentam desafios para cumprir obrigações tributárias.
A digitalização da fiscalização exigirá que empresas utilizem sistemas integrados para declarar e pagar os tributos corretamente – uma realidade distante da maioria das PMEs. Além disso, a tendência é que a fiscalização do IBS e CBS utilize tecnologias de cruzamento de dados em tempo real para detectar irregularidades, e o maior monitoramento eletrônico pode ser algo difícil de acompanhar para as estruturas menores.
Por fim, como a reforma tributária foi uma reforma constitucional, a palavra final, como sempre, poderá caber ao Supremo Tribunal Federal. “Colocamos a reforma na Constituição, o que significa que tudo vai parar no Supremo”, diz Camila Tapias. “Se ele já está inflado hoje, tudo vai ficar várias vezes pior”.
Carolina Unzelte
Repórter