Já tive a oportunidade de examinar, neste espaço, aspectos controvertidos do regime de tributação denominado Simples Nacional, relacionados à sua incompatibilidade com o regime de substituição tributária. Desta vez, examinarei a constitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS (Difal) das empresas optantes pelo Simples, quando adquirem, em operações interestaduais, mercadorias destinadas a industrialização e/ou revenda[1].
Como tive oportunidade de demonstrar na ocasião anterior em que tratei da matéria, o Simples Nacional foi instituído pela LC 123, de 14/12/1996, como regime tributário simplificado opcional, posto à disposição das microempresas e empresas de pequeno porte, para permitir que recolham, de forma centralizada e à alíquota (em regra) reduzida, impostos e contribuições de competência da União, dos estados e dos municípios (entre os quais IRPJ, CSL, PIS/Cofins, ICMS e ISS).
Já o Difal, como se sabe, foi constitucionalmente instituído com o objetivo de partilhar a receita decorrente do ICMS incidente nas operações que destinem mercadorias ou serviços a consumidores finais, contribuintes ou não do imposto, localizados em estados diversos daquele em que estabelecido o contribuinte que as tenha alienado.
Assim, de acordo com essas regras, nas operações interestaduais com consumidores finais, cujos destinatários são localizados em outros estados, o ICMS devido ao estado de origem é calculado com base nas alíquotas fixadas pelo Senado Federal (7% ou 12%, no caso de mercadorias nacionais, e 4%, no caso de mercadorias de procedência estrangeira).
Ao estado de destino cabe a parcela do imposto correspondente à diferença entre a sua alíquota interna e a interestadual aplicável — denominada diferencial de alíquotas, ou, como dito, simplesmente Difal (artigo 155, parágrafo 2º, IV e VII, da CF/88).
Ou seja, nos termos da CF/88, o diferencial de alíquotas do ICMS somente é devido nas operações interestaduais que destinem mercadorias e/ou serviços a consumidor final. Nas operações que destinem mercadorias ao comércio ou à indústria (ou seja, que não as destinem ao consumo final de quem as adquire), cabe ao estado de destino arrecadar o imposto incidente na saída interna (posterior) desses bens, que deverá ser calculado mediante a aplicação das alíquotas próprias internas desse estado de destino, sobre o valor das operação ou prestação posteriores.
Dessa forma, não estará obrigado ao recolhimento do Difal ao estado em que situado o contribuinte que adquira, para industrialização ou posterior revenda, mercadorias de fornecedor localizado em outro estado, por não poder ser estar caracterizado, nessa hipótese, consumo final desses bens.
Note-se, nesse particular, que, nos termos das normas constitucionais vigentes, a conclusão a que me referi no parágrafo anterior independe do regime de tributação a que submetido o adquirente das mercadorias.
Não obstante, a partir da edição da LC 128, de 19/12/2008, o artigo 13 da LC 123/06 passou a estabelecer o seguinte:
“Art. 13. O Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições:
(…)
§ 1º O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
(…)
g) nas operações com bens ou mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal:
1. com encerramento da tributação, observado o disposto no inciso IV do § 4º do art. 18 desta Lei Complementar;
2. sem encerramento da tributação, hipótese em que será cobrada a diferença entre a alíquota interna e a interestadual, sendo vedada a agregação de qualquer valor” (grifei).
Como se verifica, a LC 128/08 estabeleceu a possibilidade de que, no caso de aquisição interestadual de mercadoria destinada a posterior saída tributada (ou seja, operação “sem encerramento da tributação”), a empresa submetida ao Simples Nacional venha a ser obrigada a realizar o recolhimento, a título de “antecipação”, de parcela do ICMS por ela devida. Essa parcela de imposto a ser antecipada deve ser calculada, de acordo com a referida lei, com base na “diferença entre a alíquota interna e a interestadual”.
Com base nesse dispositivo, diversos estados editaram normas para instituir a sistemática de “antecipação” do ICMS devido pelas microempresas e empresas de pequeno porte. Segundo essas normas, o contribuinte submetido ao Simples Nacional que adquire mercadorias de fornecedores situados em outra unidade da federação para industrialização e/ou revenda está sujeito ao recolhimento, a título de “antecipação” do ICMS por ele devido, de montante do imposto correspondente à “diferença entre a alíquota interna e a interestadual” (é o caso, por exemplo, dos estados de Minas Gerais – Decreto 43.080, de 13/12/2002, artigo 42, parágrafo 14; Paraná – Decreto 7.871, de 29/9/2017, artigo 7, parágrafo 7º e artigo 16, parágrafo 4º; e Pernambuco – Decreto 44.650, de 30/6/2017, artigo 329, II, artigo 338, artigo 340 e artigo 363).
Apesar de a LC 123/06 e as legislações estaduais tratarem a referida exação como mera antecipação do ICMS devido pelas empresas sujeitas ao Simples Nacional, a análise mais detalhada do tema demonstra que ela não possui essa natureza.
De fato, caso se tratasse de efetiva antecipação tributária, o valor do imposto recolhido nessas condições deveria ser necessariamente “deduzido” dos valores futuramente devidos pelo contribuinte.
Não é isso que ocorre, contudo. Além de as empresas submetidas ao Simples Nacional estarem expressamente proibidas de apropriar créditos em relação ao ICMS (artigo 23 da LC 123/06[2]), o que não lhes permite abater o imposto supostamente antecipado do devido nas operações seguintes, não há, na LC 123/06 ou nas legislações estaduais que mencionei acima, qualquer previsão de exclusão das receitas relativas à venda das mercadorias sujeitas a esse regime de antecipação da base de cálculo do ICMS devido na sistemática do Simples Nacional (que, como se sabe, é calculado por meio da aplicação de alíquotas reduzidas sobre a receita bruta auferida no mês pelo contribuinte).
Note-se, ainda, que, contrariamente à prática dos regimes de antecipação tributária, a sistemática criada pelo artigo 13, parágrafo 1º, “g”, 2, da LC 123/06, e implementada por diversas unidades da federação, não se utiliza de qualquer margem de valor agregado para o cálculo do imposto. Ela simplesmente adota os critérios quantitativos próprios da operação de aquisição interestadual para fins de cálculo da parcela de ICMS a ser adiantada pelo contribuinte.
Assim, sob as vestes de mera “antecipação” do ICMS, o que acabou de fato por ocorrer foi a instituição do recolhimento do diferencial de alíquotas do imposto por contribuintes que não se enquadram na condição de consumidores finais das mercadorias adquiridas, o que viola frontalmente as regras constitucionais que regulam a matéria.
Como se isso não bastasse, há ainda outro aspecto que retira por completo a validade dessa sistemática de tributação.
Como visto, o Simples Nacional é regime tributário simplificado que implica recolhimento centralizado de impostos e contribuições de competência da União, dos estados e dos municípios. Esse regime especial foi disciplinado, em nível constitucional, pela Emenda Constitucional 42, de 19/12/2006, que atribuiu a seguinte redação ao artigo 146 da CF/88:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(…)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que:
I – será opcional para o contribuinte;
II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado;
III – o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento;
IV – a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes” (grifei).
Por estar a competência outorgada condicionada a que o referido regime especial institua sistema unificado de recolhimento dos tributos (sem que haja qualquer autorização para que a lei complementar crie exceções a essa regra que impliquem tornar o contribuinte sujeito a outras incidências que não aquela unificada, expressamente prevista), forçoso é concluir que a sistemática de “antecipação” do ICMS prevista no artigo 13, parágrafo 1º, “g”, 2, da LC 123/06 é flagrantemente inconstitucional.
Os precedentes judiciais sobre a matéria específica não trataram a questão sob esse enfoque (o da inconstitucionalidade do artigo 13, parágrafo 1º, da LC 123/06). Contudo, ao analisar questão similar, sob a égide da Lei 9.317, de 5/12/1996 (que garantia às empresas submetidas ao regime o direito ao pagamento unificado dos tributos devidos), o STJ se manifestou no sentido de que a “unicidade” do Simples Nacional não comporta exceções.
De fato, durante a vigência dessa norma, foi editada a Lei 9.711, de 20/11/1998, que formulou, em seu artigo 23, a seguinte exigência: “A empresa contratante de serviços executados mediante cessão de mão-de-obra (…), deverá reter onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia dois do mês subsequente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura (…)”.
Ao analisar o caso, o STJ entendeu que as disposições da Lei 9.711/98 não poderiam alcançar as pessoas jurídicas enquadradas no Simples Nacional, uma vez que elas teriam direito ao pagamento unificado dos tributos devidos. Eis parte da ementa da decisão proferida pela 1ª Seção do STJ, que demonstra a conclusão obtida:
“TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO OPTANTES PELO SIMPLES. RETENÇÃO DE 11% SOBRE FATURAS. ILEGITIMIDADE DA EXIGÊNCIA.
1. (…)
2. O sistema de arrecadação destinado aos optantes do SIMPLES não é compatível com o regime de substituição tributária imposto pelo art. 31 da Lei 8.212/91, que constitui “nova sistemática de recolhimento” daquela mesma contribuição destinada à Seguridade Social. A retenção, pelo tomador de serviços, de contribuição sobre o mesmo título e com a mesma finalidade, na forma imposta pelo art. 31 da Lei 8.212/91 e no percentual de 11%, implica supressão do benefício de pagamento unificado destinado às pequenas e microempresas. (…)” (Embargos de Divergência em Recurso Especial – EREsp 511.001-MG, 1ª Seção do STJ, ministro relator Teori Albino Zavascki, DJe de 11/4/2005).
Esse entendimento foi, inclusive, sumulado pelo tribunal:
“A retenção da contribuição para a seguridade social pelo tomador do serviço não se aplica às empresas optantes pelo Simples” (Súmula 425 do STJ, de 10/3/2010).
Ora, se a mera previsão em lei da necessidade de “pagamento unificado” é suficiente para afastar a obrigação de retenção da contribuição previdenciária exigida por lei posterior, por muito mais forte razão (a existência de dispositivo constitucional expresso no mesmo sentido — artigo 146, III, “d”, e parágrafo único, acima transcrito), os contribuintes optantes pelo Simples Nacional não poderão ser submetidos a qualquer exigência de recolhimento “antecipado”, independentemente do que disponha a LC 123/06.
É, portanto, inconstitucional a exigência contida no artigo 13, parágrafo 1º, “g”, 2, dessa LC, seja por violar o artigo 155, parágrafo 2º, IV e VII, da CF/88, que estabelece que o diferencial de alíquotas do ICMS incide apenas nas operações interestaduais que destinem bens a consumidor final, seja por ofensa direta ao artigo 146 da Carta Magna de 1988, que prevê a unicidade de recolhimento no âmbito do Simples Nacional.
Registre-se, por fim, que o tema teve a sua repercussão geral reconhecida (RE 632.783/RO; relator ministro Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 2/2/2012), o que dará ao STF a oportunidade de esclarecer, em definitivo, como deverão ser aplicadas e interpretadas as regras que asseguram tratamento tributário mais condizente às microempresas e empresas de pequeno porte.
[1] Recentemente, tive a oportunidade de abordar esse mesmo tema em artigo escrito em coautoria com o meu sócio Rodrigo Caserta, a ser publicado em obra que será editada em homenagem ao nosso querido professor Sacha Calmon, mestre de todos nós.
[2] “Art. 23. As microempresas e as empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional não farão jus à apropriação nem transferirão créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional.”
Por Gustavo Brigagão
Gustavo Brigagão é sócio do escritório Brigagão, Duque Estrada, Emery – Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.
Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-set-26/consultor-tributario-difal-simples-nacional-nao-podem-conviver