O entendimento do STF pode incentivar ainda mais a difusão de legislações locais que definam a contumácia rigidamente.
Ao julgar delituosa a conduta do sujeito passivo que deixa de recolher o ICMS devido (RHC 163334), o Supremo Tribunal Federal (STF) findou por ensejar discussões relevantes em diversas searas.
Dentre os aspectos apreciados pelo STF, importa-nos analisar a contumácia do devedor tributário, elemento fundamental para se admitir o não recolhimento do ICMS como crime de apropriação indébita tributária.
O entendimento do STF pode incentivar ainda mais a difusão de legislações locais que definam a contumácia rigidamente.
A jurisprudência do Supremo também trabalha com a figura do devedor contumaz para legitimar o uso de restrições severas pelas entidades tributantes, ou seja, meios indiretos de cobrança de dívidas fiscais (RE 550769). Ausentes as condicionantes excepcionais definidas naquele precedente, esses meios oblíquos de cobrança seriam classificados como inadmissíveis sanções políticas.
Trata-se, assim, de tema central para o Direito Tributário e, mais recentemente, para o Direito Penal Tributário, a reclamar tratamento uniforme, especialmente numa federação continental como a brasileira.
Em matéria tributária, a lei complementar tem como uma de suas funções a de editar normas gerais sobre obrigação e crédito tributário (artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal). Seu escopo primordial é o de harmonizar o sistema tributário, emprestando-lhe padronização e coesão.
Se a mera leitura do texto constitucional já nos permite antever que a definição semântica do “devedor contumaz” está reservada à lei complementar – por se tratar, claramente, de tema correlato aos tópicos da obrigação e do crédito tributários -, a conclusão é corroborada pelo contexto que se descortinou após o julgamento ocorrido no STF.
Por haver sido a contumácia do devedor reputada essencial à caracterização do tipo penal, fica claro que deixar essa definição a cargo das legislações estaduais, distrital e municipais representa inequívoco fator de insegurança jurídica, especialmente porque a experiência demonstra a dissonância entre as definições dadas pelas diversas leis.
No Rio Grande do Norte, por exemplo, considera-se devedor contumaz o sujeito que deixar de recolher o ICMS por três meses consecutivos ou em seis meses alternados. Em São Paulo, uma das hipóteses de enquadramento é estar em débito em ao menos seis competências, consecutivas ou não.
Dadas as graves consequências que a identificação de um devedor contumaz acarreta, é induvidosa a importância de o tema ser balizado parcimoniosamente na legislação nacional, inclusive para fins de gerar estabilidade no campo penal. Isso porque, inadvertidamente, o entendimento do STF pode incentivar ainda mais a difusão de legislações locais que definam a contumácia rigidamente, bem como a manipulação dos instrumentos de quantificação dos atos ilícitos para aumentar a suposta eficiência da criminalização do inadimplemento tributário.
Durante o julgamento, afirmou-se que seria altamente improvável que um devedor fosse efetivamente preso pela prática do crime de apropriação indébita do ICMS. Como o principal objetivo do precedente é estimular o recolhimento do tributo, a decisão incentiva os atores do sistema a exasperarem a sanção dentro dos amplos limites interpretativos de uma legislação vaga e ambígua, pois uma pena mais grave supostamente seria mais eficiente para condicionar a conduta do contribuinte.
Nada impediria que as autoridades passassem a propor que cada evento de inadimplemento fosse tratado como um crime autônomo e isolado, cujas penas deveriam ser somadas (concurso material), ao invés de considerar uma única conduta delitiva, passível de aumento de pena (concurso formal). Embora a melhor solução na esfera penal seja a aprovação do Projeto de Lei nº 6.520, de 2019, que corrige legislativamente os equívocos da decisão ao distinguir o mero inadimplemento da conduta criminosa, a lei complementar tem um papel que abarca e transcende as preocupações de política criminal.
A definição segura dos contribuintes que podem ser considerados devedores contumazes ganha ainda mais relevância quando se percebe que as propostas de reforma tributária convergem para uma ampla reformulação na tributação sobre o consumo, com extinção de diversas exações e criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que será o primeiro tributo de feição eminentemente nacional da história constitucional brasileira. Avizinhando-se a criação de um tributo dessa natureza, nada mais natural que a definição do que é um devedor contumaz seja igualmente regulado nacionalmente.
Assim, a lei complementar definidora da figura do devedor contumaz limitaria o uso arbitrário das sanções políticas, convergiria com a essência das propostas de reforma tributária, bem como impediria a multiplicação da complexidade criminal do sistema, de modo a auxiliar tanto os contribuintes como o próprio Estado a calibrarem suas expectativas e calcularem suas condutas adequadamente.
FONTE: Valor Econômico – Por Frederico S. de Moura e Thiago B. Sorrentino – 08/07/2020.