Quando um país está em dificuldades, clama sempre por um salvador da pátria! Entretanto, não existem “super-homens” capazes de salvar a nação. Existem aduladores, falsos heróis; bons governantes até aparecem às vezes, mas costumam durar pouco. Na realidade, um país que pretende avançar precisa cuidar de cada uma de suas instituições; deve fazer com que as leis tenham efetividade; precisa fazer o aparato governamental funcionar.
Em um país de mais de 200 milhões de habitantes e do tamanho de um continente, uma certeza salta aos olhos: jamais será possível andar para frente com um poder centralizado e encastelado em Brasília. Distante do povo, cercado por muralhas, o mundo só conheceu soberanos absolutos e ditadores.
Não seremos salvos por um “salvador da pátria”, mas, ao contrário, eleição após eleição, os brasileiros sairão frustrados e insatisfeitos. Da mesma forma, corporações agigantadas e superpoderosas tão somente capturam o interesse público e, tornando-se autorreferenciadas, passam a defender apenas o interesse de seus membros.
Democracias avançadas costumam ser bem menores (como os países europeus) ou se organizam de forma descentralizada (como a Alemanha e os Estados Unidos). Por certo, atentos a tudo isso é que os constituintes de 1988 edificaram um projeto de Estado Democrático de Direito formado pela união indissolúvel de Estados e Municípios, ou seja, marcaram o federalismo como princípio reitor e como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da Constituição – CRFB/88).
O poder legiferante pode até se concentrar na União para impedir os casuísmos e a captura pelos mais poderosos grupos de interesse, mas os recursos, as estruturas prestacionais e a administração pública devem ser descentralizados.
O Brasil, desde que conquistou sua independência, sempre foi gerido de maneira centralizada, motivando a Constituinte de 1988 a formatar uma verdadeira federação. O pacto federativo idealizado pela Assembleia Nacional Constituinte, com evidente intuito democrático-descentralizador, pretendeu outorgar autonomia política e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, delimitando-lhes competências materiais e tributárias de forma a propiciar o convívio harmônico entre os diversos entes federados.
Foi nesse compasso que o texto constitucional estabeleceu, exaustivamente, as competências de cada um dos entes, bem como as fontes de receitas necessárias (tributos e transferências), pretendendo, portanto, um federalismo de viés cooperativo.
No entanto, o que se tem percebido é que a União nunca absorveu os mandamentos democrático-decentralizadores da CRFB/88 e se ressentiu da lógica federalista de descentralização do poder. De fato, o Governo Federal vem cometendo inúmeros abusos atentatórios ao federalismo, o que vem agravando o quadro de deterioração financeira estadual e municipal. Contrariando o programa constitucional, o governo, dia após dia, centraliza receitas, provocando a centralização do poder. Os estados e os municípios são assim enfraquecidos e o poder, dessa forma, se concentra em Brasília.
É o que se verifica nas diversas renúncias a tributos cuja arrecadação deve ser compartilhada com os estados e municípios (exonerações do IPI e deduções no IR); na desoneração das exportações de produtos primários e semielaborados e na histórica e inconstitucional mora na compensação dos Estados pelo déficit gerado pelas desonerações concedidas ao ICMS (defasagens da lei Kandir); na tentativa frustrada da União de se apropriar integralmente dos recursos obtidos com a “multa de regularização” da lei de repatriação; nos índices exorbitantes de correção da dívida dos Estados com a União (SELIC capitalizada); dentre outras ofensas.
Com isso, os recursos foram se concentrando no ente federativo maior, em claro movimento centrípeto, contrário à tendência centrífuga firmada pela CRFB/88. A autonomia financeira dos estados e municípios, fundamental para uma federação, nessa toada, vem sendo constantemente comprometida, o que acaba por afetar diretamente os cidadãos, tendo em vista que são justamente os entes menores que possuem como atividade finalística educação, saúde e segurança. Assim, o que vem ocorrendo na prática, a partir de iniciativas da própria União, é a destruição do aparato vocacionado ao atendimento das necessidades mais essenciais da população.
Não bastassem os exemplos citados, talvez a atuação da União que mais vem causando malefícios à saúde financeira dos estados e municípios, e, portanto, aos próprios direitos fundamentais de seus cidadãos, diz respeito à ampliação do uso das contribuições que se tem verificado a partir da última década do século XX, tributo esse que não é objeto de distribuição vertical de receitas com os demais entes da Federação e que vem tendo seu viés finalístico constantemente olvidado pelo uso da sistemática da Desvinculação de Receitas da União (DRU) [1]. Esse é o mecanismo utilizado pelo Governo Federal para aumentar a carga tributária e centralizar os recursos em Brasília.
Percebe-se que a ampliação das receitas tributárias, em especial por meio da criação e do aumento das contribuições (tributo não partilhado), vem beneficiando somente a máquina federal, prejudicando substancialmente os investimentos por parte de Estados e Municípios em suas atividades-fim, especialmente aquelas relacionadas à área social [2] [3].
Os estados e municípios possuem, segundo a CRFB/88, duas formas principais de obtenção de recursos, consistentes no exercício das respectivas competências tributárias (artigos 155 e 156) e nas transferências de receitas dos entes maiores aos menores (artigos 157 a 159). Em relação à competência tributária, inexiste previsão de empréstimos compulsórios estaduais e, no campo das contribuições sociais, só há possibilidade de cobrança de exações cuja receita é inteiramente vinculada, a saber, as contribuições previdenciárias de seus respectivos servidores (artigo 149, § 1º).
O que se vem constatando é que os Estados e Municípios não são capazes de, com base exclusivamente na arrecadação dos tributos de suas competências, fazer frente aos custos decorrentes das competências materiais a eles cometidas, comprometendo-se, assim, a sua capacidade de autofinanciamento e a própria prestação dos serviços públicos de sua responsabilidade. Assim é que se afigura imprescindível à autonomia financeira dos entes federativos menores as receitas oriundas das transferências verticais previstas constitucionalmente.
Dentre os tributos da União que são partilhados com os Estados e Municípios, destacam-se o imposto de renda (49% – art. 159, I), o imposto sobre produtos industrializados (10% – art. 159, II), os impostos residuais (20% – art. 157, II), e, entre as contribuições especiais, somente a CIDE combustível (29% – art. 159, III). Verifica-se, portanto, que, com exceção da CIDE combustível, as contribuições não são objeto da distribuição vertical de receitas, sendo, pois, receita exclusiva da União.
Segundo dispõe o artigo 149 da CRFB/88, a União, de maneira exclusiva, pode instituir três espécies de contribuições especiais, quais sejam: (a) as contribuições sociais; (b) as contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE); e (c) as contribuições corporativas.
O caráter distintivo das contribuições em relação às demais espécies tributárias é o fato de elas terem os produtos de suas arrecadações vinculados a determinada finalidade. Realmente, ao contrário dos impostos, as contribuições possuem, por imposição constitucional, a sua destinação vinculada a atividades estatais específicas, não podendo ser aplicadas livremente pelo Executivo.
Ocorre que tem se tornado cada vez mais comum a instituição e a majoração de contribuições pela União, sob a justificativa de que estaria financiando algum serviço ligado à área social, quando, na verdade, o produto arrecadado tem sido destinado a outras finalidades, tais como para reduzir o déficit público. A título de exemplo, o Decreto 9.101, de 20 de julho de 2017, aumentou as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool.
Na verdade, são dois os motivos pelos quais a União vem fazendo uso cada vez maior das contribuições: (1) em função da sua não submissão à sistemática de repartição de receitas; e (2) em função da sistemática da DRU, que possibilita o desvirtuamento do caráter finalístico das contribuições.
Tendo em vista a desnecessidade de repartição dos recursos, Valter de Souza Lobato destaca que “o cenário atual é bem nefasto, pois com a necessidade de arrecadação – Municípios e Estados se digladiam (guerra fiscal) e União Federal invade competências que não lhe pertenciam, para suprir a ausência de arrecadação, sem repasses aos demais entes da Federação” [4]. O fato é que, além das respectivas receitas tributárias, os entes menores dependem das transferências verticais de receitas para a execução de políticas públicas, e, a partir do momento em que a União promove desonerações e deduções dos tributos partilhados e, concomitantemente, cria e aumenta tributos não partilhados, a saúde financeira de Estados e Municípios fica substancialmente afetada.
Por outro giro, a DRU desvincula relevante percentual da arrecadação para finalidades outras que não aquelas constitucionalmente previstas. A sistemática ignora os elementos essenciais que distinguem as contribuições das demais espécies tributárias, que são justamente a destinação específica e a referibilidade a determinado grupo, desconstruindo, pois, a ideia original posta na CRFB/88. Nesse compasso, pelo menos no que diz respeito à parcela desvinculada, o que se tem não são contribuições, mas impostos não partilhados! Em outras palavras, a DRU provoca a existência de um tributo misto – um monstrengo (com corpo de contribuição e cabeça de imposto).
Se não tem destinação específica e se não cumpre sua finalidade, esse monstrengo foi criado por emendas constitucionais inconstitucionais. Em outras palavras, a parcela do tributo que é imposto não compartilhado foi veiculada por normas que ofendem ao princípio federativo (cláusula pétrea) e, em uma espécie de “fraude à constituição” [5], estados e municípios foram lesados. A propósito, o equilíbrio federativo, aspecto fundamental do princípio, foi atingido em seu núcleo essencial. Em palavras singelas, o esboço constitucional do país foi adulterado.
Como se não bastasse, a DRU retira dinheiro que deveria ser aplicado em programas sociais e os desloca para outros gastos, sobretudo para o pagamento de rentistas, fazendo retroceder (inconstitucionalmente) direitos sociais. Recursos deixam de ser aplicados na área social em prejuízo dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Interessante notar que a CRFB/88, por meio do artigo 154, inciso I, outorgou exclusivamente à União a possibilidade de instituir impostos não previstos no texto constitucional, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo dos demais impostos.
No entanto, a União, ao invés de fazer uso de sua competência para instituir impostos residuais, prefere criar ou majorar as contribuições, tendo em vista o fato de que a receita dessa espécie tributária não é partilhada, ao passo que 20% (vinte por cento) da receita dos impostos residuais devem ser partilhados com os demais entes federativos (art. 157, II). Para que não se ofendesse o princípio federativo, portanto, pelo menos 20% da parcela desvinculada da arrecadação das contribuições deveria ser compartilhada com os entes menores. Apenas assim essa verdadeira fraude à constituição poderia ser afastada.
Enfim, a criação indiscriminada de contribuições pela União e a DRU, nesse arranjo ofensivo ao princípio federativo, vem contribuindo para o desequilíbrio da federação. O que assim se defende é a repartição dos recursos da parcela desvinculada das contribuições, em homenagem ao pacto federativo celebrado em 1988.
Nesse contexto, merecem destaque os projetos legislativos apresentados ao Congresso Nacional objetivando justamente a repartição do produto das contribuições com os demais entes federativos, tal como a Proposta de Emenda à Constituição 12/2013 [6], que altera o artigo 159 para incluir o produto da arrecadação de algumas contribuições no compartilhamento com Estados, Distrito Federal e Municípios.
Enfim, esforços arrecadatórios fraudulentos não salvarão o país. O que pode colocar o Brasil nos trilhos é o respeito à Constituição e aos seus princípios fulcrais.
[1] A Emenda Constitucional nº 93/2016 aumentou o percentual de desvinculação do produto arrecadado com contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de 20% para 30%.
[2] Em 2015, a arrecadação tributária nacional correspondeu a 32,42% do PIB. Destes, 68,39% corresponderam à arrecadação da União; 25,40%, à estadual; e 6,21%, à municipal. Cf. CARGA TRIBUTÁRIA NO BRASIL 2015. Análise por tributos e bases de incidência. Receita Federal. Ministério da Fazenda. CETAD – Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros. Setembro de 2016.
[3] Na verdade, as receitas decorrentes das contribuições especiais representam, já há alguns anos, a maior fonte de arrecadação da União, conforme <http://www.portaldatransparencia.gov.br/receitas/consulta.asp?idHierarquiaOrganizacao=1&idHierarquiaDetalhe=0&idDirecao=1&idHierarquiaOrganizacao0=1&idHierarquiaDetalhe0=0&Exercicio=2017>.
[4] Cf. LOBATO, Valter de Souza. O regime jurídico-constitucional das contribuições destinadas ao custeio da seguridade social: a importância basilar e estruturante da finalidade e os demais limites ao poder de tributar. Belo Horizonte: 2014. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 2014.
[5] Nesse mesmo sentido, IBRAHIM, Fábio Zambitte; SCHWARTZ, Gustavo Carvalho Gomes. As contribuições sociais como instrumento de fraude ao pacto federativo. Disponível em: <http://publicacoes.udf.edu.br/index.php/exemplo1/article/view/Zambitte%20Ibrahim%3B%20Schwartz>. Acesso em: 14 de setembro de 2017.
[6] Na justificativa da proposta do Senador Flexa Ribeiro consta a seguinte passagem: No entanto, a cada ano os Estados vêm sofrendo perdas significativas em suas transferências constitucionais obrigatórias, haja vista a migração da arrecadação federal para os tributos não compartilhados. Com essa inversão, o Governo Federal diminuiu a participação daqueles entes na partilha de sua arrecadação. Em 1988, ano da promulgação da CF, a arrecadação oriunda do IR e do IPI somava 76,2% do total da arrecadação da União, e as contribuições e outras receitas administradas pela RFB somavam 23.8%. Já em 2010, o IR e o IPI representavam apenas 45,5% enquanto as contribuições, somadas a outras receitas administradas, alcançaram 54,5% do total da arrecadação federal.
Por Onofre Alves Batista Júnior e Gabriel Arbex Valle
Onofre Alves Batista Júnior é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela UFMG, pós-doutorado em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Público da UFMG.
Gabriel Arbex Valle é procurador de Minas Gerais. Coordenador da Área Tributária-Previdenciária. Mestrando em Direito e Justiça (Direito Tributário) pela UFMG. Ex-procurador federal da Advocacia-Geral da União.
Revista Consultor Jurídico, 7 de fevereiro de 2018
https://www.conjur.com.br/2018-fev-07/opiniao-desvirtuamento-contribuicoes-prejudica-estados