Crise após crise, discute-se o papel da informação contábil em períodos de atipicidade econômica. Não seria diferente no atual momento, e é lugar-comum nas mídias especializadas a discussão dos efeitos da covid-19 nas demonstrações financeiras. Esta também será a abordagem do presente artigo, mas com enfoque ligeiramente distinto: evitar o erro de inverter a ordem dos acontecimentos, bem como sinalizar para a necessária compreensão do papel das informações contábeis e a sua repercussão tributária.
É indiscutível que a pandemia afeta a dinâmica social e, consequentemente, a economia, o que se materializará nos relatórios contábeis. Afinal, quer “accounting follows economics”, conforme diria o distinto professor Nelson Carvalho, ou quer “accounting follows society”, como entende o notório professor Sérgio de Iudícibus, fato é que, em tempos atuais, ambas as visões convergem para uma inevitável afetação dos demonstrativos contábeis. E não se trata de um exercício de futurologia ou quiromancia, apenas de lógica formal.
Diante da atual crise, será exigido esforço adicional para compreensão das repercussões fiscais diretas e indiretas.
Entretanto, o que desperta a atenção é a insinuação, por alguns, de que a representação das possíveis perdas nos saldos contábeis tenderá a piorar os efeitos da crise, na medida em que a provável baixa de ativos, acréscimo de passivos ou redução dos resultados, poderia acarretar retração de investimentos ou qualquer outra inibição por parte de investidores e credores. A título exemplificativo, cite-se a expectativa de majoração das perdas esperadas com crédito e liquidação duvidosa (PECLD).
O reconhecimento das expectativas de perdas relacionadas aos ativos financeiros, de acordo com o Pronunciamento Técnico CPC 48, leva em consideração – além do histórico de perdas incorridas – a avaliação prospectiva de fatores macro e microeconômicos que podem influenciar a capacidade de entrada de fluxos de caixa. Sendo assim, a crise econômica decorrente da covid-19 será capturada nas demonstrações contábeis em razão de as técnicas de mensuração dos ativos financeiros levar em consideração as expectativas de perdas, em um modelo “forward-looking”.
O exemplo da PECLD é relevante porque representa remissão à crise notoriamente conhecida como Crise do Subprime, originada no mercado de hipotecas imobiliárias de alto risco nos Estados Unidos, e que eclodiu globalmente em meados de 2007. Em resumo, por conta da referida crise, os órgãos reguladores deliberaram pelo abandono do registro de perdas efetivamente incorridas (backward-looking), usualmente computadas por inadimplências configuradas, e que acarretavam reflexos contábeis intempestivos para as tomadas de decisões. Assim, ao retratar como estimativas de perdas o reflexo histórico das perdas incorridas, as informações dadas pelas demonstrações contábeis tinham sua utilidade reduzida sob a ótica econômica.
Foi esse contexto que inspirou o desenvolvimento do modelo contábil, atualmente em vigor, orientado pela filosofia do reconhecimento das perdas esperadas, que incorpora projeções futuras influenciadas por fatores de macro e microeconomia à prática da adoção da média de defaults de exercícios passados. Pretendeu-se com essa alteração privilegiar a produção de informação útil e tempestiva que refletisse as circunstâncias econômicas que afetariam a geração de fluxo de caixa da entidade.
Aquilo que agora tem sido indicado como potencial “problema” das demonstrações financeiras foi exatamente a solução encontrada há algum tempo: a incorporação contábil das consequências econômicas decorrentes da diminuição de expectativa inadimplência, inclusive estimada. Nos cenários de crise, a importância do retrovisor é menor que a do para-brisa.
Conquanto compreensível a alteração do ânimo empresarial em função do cenário econômico estabelecido pela pandemia, as críticas voltadas à contabilidade representam, de certo modo, culpar o mensageiro pelo teor da mensagem. Não são corretas, absolutamente, as afirmações de que contabilidade piorará o contexto empresarial se registrar as deteriorações econômicas dos ativos, o incremento dos passivos e a queda nos resultados em função do contexto atual.
Ainda que se reconheça o efeito de retroalimentação que as decisões econômicas possuem sobre os saldos das demonstrações contábeis e que tais indicadores interferem na forma como os recursos são alocados, fato é que não se pode atribuir aos relatórios financeiros responsabilidade por cumprirem o seu papel: produzir informações úteis para tomada de decisão.
Em sentido amplo, a contabilidade pode ser vista como o centro das tensões corporativas, pois os números advindos dos seus relatórios são utilizados para a elaboração e manutenção das relações contratuais das organizações. No contexto atual, é impreterível que os agentes participantes da “cadeia produtiva” da informação contábil (preparadores, auditores, conselhos, reguladores etc) possam equilibrar adequadamente o bom ânimo/ otimismo de alguns gestores com o futuro e a triste realidade econômica do presente.
E onde a tributação corporativa se insere neste contexto? Sabe-se que o IRPJ, a CSLL, o PIS e a Cofins, dentre outros tributos, capturam nas demonstrações financeiras elementos para a sua apuração. Desde que entrou em vigor, as normas internacionais de contabilidade causam estranheza à grande maioria dos advogados tributaristas, que buscam repudiar – acertadamente, na grande maioria das vezes – as repercussões fiscais que possam surgir da sua aplicação.
A legislação tributária federal, mais especificamente a Lei n° 12.973, de 2014, pretendeu disciplinar os efeitos tributários dos padrões internacionais de relatórios financeiros adotados pelo Brasil a partir de 2008, mas é sabido que diversas questões complexas, notadamente de efeitos tributários indiretos, não o foram.
Com isso, diante da atual crise econômica (um cenário atípico) e da necessária aplicação dos normativos contábeis, será exigido esforço adicional para compreensão das repercussões fiscais diretas e indiretas, desde a PECLD, citada como exemplo, como impactos na distribuição de JCP, dividendos, cálculo de créditos de PIS/Cofins sobre ativos reduzidos por teste de impairment, cálculo de preços de transferência por custo de produtos afetados por recálculo de arrendamentos contabilizados.
Nesse aspecto, novamente, não se pode culpar a contabilidade (mensageiro): a nossa legislação tributária sempre foi complexa e a pandemia apenas exigirá novos desafios de interpretação jurídica para os seus reflexos contábeis. Afinal de contas, não se tem notícia de algum sistema tributário ao redor do globo que prescinda da contabilidade para o exercício das suas funções.
Fonte: Valor Econômico – Por Diego Miguita e Eduardo Flores – 06/05/2020.