A dupla tributação internacional constitui óbice efetivo ao desenvolvimento das relações econômicas internacionais, já que desencoraja as empresas a diversificarem seus investimentos para além das bases territoriais. Ela inibe a atração do capital estrangeiro e dificulta a circulação de riquezas.
No mundo globalizado, onde as relações internacionais assumem papel cada vez mais relevante, os tratados e convenções internacionais surgem como a principal medida para evitar — ou atenuar — a dupla tributação.
Por meio de tratados internacionais, os Estados participantes — geralmente de modo bilateral — delimitam as suas respectivas competências tributárias, fixando os limites dentro dos quais poderão aplicar o seu ordenamento jurídico interno sem que isso configure a bitributação.
As convenções internacionais adotam, via de regra, um dos seguintes métodos para combater a bitributação internacional: a isenção, a imputação de crédito, a dedução do rendimento, a redução da alíquota ou, em último caso, a divisão do poder tributário.
Pelo método da isenção, um Estado está impedido de tributar determinados rendimentos obtidos pelo contribuinte em outro Estado, evitando o próprio surgimento do crédito tributário.
Pelo método da dedução, o Estado de residência desconsidera os rendimentos brutos oriundos do Estado onde se situa a fonte pagadora, sendo considerados para fins de tributação apenas os valores líquidos do rendimento. Em outras palavras, os tributos pagos no Estado da fonte são entendidos como despesas, de modo que são deduzidos pelo Estado onde reside o investidor.
O método da redução da alíquota nada mais é do que a simples redução da alíquota dos tributos cobrados pelo Estado da residência sobre os rendimentos já tributados no Estado da fonte. Esse método não elimina a dupla tributação internacional, mas apenas reduz os seus efeitos.
A divisão do poder tributário consiste na fixação consensual pelos Estados contratantes de um percentual máximo de tributação para cada um (que deve ser obviamente menor do que o percentual que caberia a cada um caso não existisse o tratado). Ou seja, os dois Estados combinam o quanto cada um deles “cobrará” do contribuinte.
Todas as convenções para evitar a bitributação internacional celebradas pelo Brasil, em linhas gerais, tomam por base um mesmo modelo, que foi desenvolvido pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
Uma dessas convenções, firmada com o Reino da Dinamarca e ratificada no Brasil pelo Decreto 75.106/74, foi alterada por meio do Decreto 9.851, de 25 de junho de 2019.
Pela redação original da referida convenção, os rendimentos originários do Brasil são automaticamente isentos de tributação pela legislação dinamarquesa, o que preserva eventuais incentivos fiscais concedidos a investidores dinamarqueses.
Com a alteração acolhida pelo decreto, o método da isenção foi substituído pelo método da imputação, de modo que o tributo pago no Brasil gera um crédito a ser tomado pelo investidor dinamarquês, que será compensado com o imposto devido no Estado sede.
Essa alteração pode não evitar por completo a bitributação. Pela sistemática anterior, o rendimento já tributado no Brasil estava isento na Dinamarca, pouco importando o montante que aqui havia sido pago. Pelo novo método, o tributo pago aqui gera um crédito a ser compensado lá, podendo haver resíduo a ser submetido à tributação, no caso de a carga tributária dinamarquesa ser superior à praticada no Brasil.
O protocolo que alterou a convenção também revogou os parágrafos 5º e 6º do seu artigo 23, que fixavam regras para afastar a dupla tributação. Os dispositivos tratavam, respectivamente, “da não tributação, no Estado contratante, dos lucros não distribuídos e das ações emitidas por empresas S/A do outro Estado, cujo capital pertencer, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes do primeiro”.
A revogação desses dispositivos da convenção deveu-se à pressão do governo brasileiro, “prejudicado” pela prática elisiva de empresas brasileiras, que se planejavam tributariamente (e com base em precedente do Superior Tribunal de Justiça) para evitar a incidência de Imposto de Renda no Brasil sobre lucros obtidos por suas subsidiárias sediadas no estrangeiro.
A 1ª Turma do STJ, ao julgar em 24/4/2014 o Recurso Especial 1.325.709/RJ, relatado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, concluiu que a convenção firmada com a Dinamarca (Decreto 75.106/74), destinada a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão fiscal, proíbe (com base no artigo VII do Modelo de Acordo Tributário da OCDE) que os lucros da empresa de um Estado contratante sejam tributados pelo outro Estado contratante, a menos que ela lá exerça sua atividade por meio de estabelecimento permanente ali situado (dependência, sucursal ou filial).
O relator afirmou que: “No caso de empresa controlada, dotada de personalidade jurídica própria e distinta da controladora, nos termos dos Tratados Internacionais, os lucros por ela auferidos são lucros próprios e assim tributados somente no País do seu domicílio; a sistemática adotada pela legislação fiscal nacional de adicioná-los ao lucro da empresa controladora brasileira termina por ferir os Pactos Internacionais Tributários e infringir o princípio da boa-fé nas relações exteriores, a que o Direito Internacional não confere abono”.
Essa orientação jurisprudencial favorecia as empresas nacionais com atividade no exterior, que, uma vez constituídas formalmente no outro Estado contratante, não poderiam ter seu lucro atingido pela legislação tributária brasileira.
O Decreto 9.851, de 25 de junho de 2019, alterou, de modo absolutamente pontual, a Convenção Brasil-Dinamarca com o objetivo (obviamente não declarado) de contornar a citada jurisprudência e, assim, afastar a possibilidade de as empresas nacionais, valendo-se de planejamento tributário, serem tributadas somente na Dinamarca.
Com a revogação, passa a ter eficácia — nas relações bilaterais entre Brasil e Dinamarca — a norma do artigo 76 da Lei 12.973/2014, que prevê a tributação automática no Brasil dos lucros auferidos pelas controladas no exterior, considerados disponíveis por ficção legal na data da sua apuração.
O Decreto 9.851/2019, ao revogar a regra da convenção, afastou-se da orientação tributária ditada pela OCDE, cujo artigo VII dispõe que os lucros de uma sociedade domiciliada em um determinado Estado só podem ser tributados naquele mesmo Estado.
Essa alteração, além de trazer insegurança jurídica aos contribuintes que têm investimentos na Dinamarca, viola o primado da isonomia, já que as empresas nacionais domiciliadas em outros países — com os quais o Brasil mantém acordo bilateral — continuarão a gozar do regime fiscal favorecido. Além disso, frustra o próprio intento da convenção — o de evitar a bitributação —, já que permitirá ao Brasil tributar rendimentos de empresa controlada domiciliada na Dinamarca e lá também já tributada.
Por Marcos Meira
Marcos Meira é sócio do M. Meira Advogados Associados e Consultoria e procurador do estado de Pernambuco. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pela FGV e graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Revista Consultor Jurídico, 7 de julho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jul-07/marcos-meira-decreto-98512019-gera-tributacao-cascata