O Supremo Tribunal Federal formou maioria nesta quinta-feira (12/12) a favor da tese de que o não pagamento do ICMS, ainda que devidamente declarado, configura crime de apropriação indébita tributária.
O julgamento foi suspenso após pedido de vista do presidente da corte, ministro Dias Toffoli. Até o momento, há seis votos a três para considerar crime a falta de pagamento. Com a decisão, o não recolhimento poderá implicar em processo criminal, com pena de detenção de seis meses a dois anos, além de multa.
Diversos especialistas no assunto se manifestaram contra a decisão, afirmando que ela pode gerar insegurança jurídica e que representa um equívoco por parte da Suprema Corte.
Para a tributarista Ariane Guimarães, sócia do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, “a decisão produz insegurança porque a criminalização do não recolhimento de imposto devidamente declarado não era considerada um risco aos empresários”.
“E apesar de o Supremo ter deixado de fora aquele que eventualmente erra ou está sem pagar por ocasião de uma situação financeira momentânea, nós sabemos que infelizmente a prática do dia a dia não vai necessariamente observar esses critérios. É um receio muito grande que todos passam a ter”, diz.
De acordo com Fernando Scaff, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados, “a maioria do STF se rendeu a argumentos morais e econômicos, abandonando a técnica jurídica e a Constituição”.
“No caso, não se trata de análise de dolo, mas de falta de tipo penal. Não havendo tipo, não há crime. A maioria do STF errou no caso. Tenho esperança que, sendo retomado o julgamento na próxima semana, alguns dos ministros que fizeram esta maioria ocasional revisem seus votos”, conclui.
O tributarista Tiago Conde Teixeira, sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, destaca que a decisão terá grande impacto negativo na economia. “Agora, o pequeno e o médio empresário vão optar por não declarar esse imposto. Porque se declarar ele poderá ser enquadrado num tipo penal. Então ele deixará de declarar e vai simplesmente sonegar o imposto. Aliás, vai ser mais fácil sonegar”, afirma.
O tributarista aponta outra questão que, a seu ver, é extremamente grave. A pressão pela arrecadação vai ser tão grande que, segundo ele, levará os agentes do Fisco a não fazerem distinção entre o contribuinte apenas inadimplente e aquele que tem o intuito de fraudar o Tesouro. “Inadimplência e fraude são conceitos completamente distintos”, lembra.
Prisão por dívida
O criminalista e professor de Direito Penal da EDB (Escola de Direito do Brasil), Fernando Castelo Branco, recorda que o artigo 5, inciso 67 da Constituição Federal, uma cláusula pétrea, determina expressamente que não haverá prisão por dívida, apenas no caso de pensão alimentícia, em uma já consolidada jurisprudência.
Castelo Branco também vê conflito entre as diferentes vertentes do Direito. “O Estado tem meios absolutamente necessários e eficazes para cobrar as suas dívidas, sem a necessidade de fazer uso do Direito Penal, que é a última esfera de proteção social”, opina.
O advogado ainda demonstra preocupação com a cobrança sobre a pessoa física que representa uma pessoa jurídica. “Não se pode atribuir à pessoa física determinada, que representa a pessoa jurídica, a necessidade e a obrigatoriedade de pagar, porque, caso contrário, ela responderá criminalmente por essa sonegação. Essa pessoa, obviamente, zelando pela sua integridade, vai querer pagar o mais rápido possível, para não ter essa mácula criminal em seus antecedentes”.
“Retrocesso sem precedentes”
Para o tributarista Breno Dias de Paula, a interpretação representa “um retrocesso sem precedentes”. “A mera inadimplência não pode ser confundida com sonegação. A Constituição Federal veda a prisão por dívidas. Ademais, não se pode misturar corrupção com sonegação, como concluiu a maioria.”
Para Heloisa Estellita, professora da Fundação Getulio Vargas e advogada do Direito Penal Econômico, a decisão do STF representa uma “distopia política”.
“Custo crer que o STF cometeu um erro como esse. Tempos sombrios. Não só para o ICMS, quaisquer tributos repassados (repercussão econômica) no custo de mercadorias e serviços, declarados regularmente ao Fisco e não pagos, são passíveis, agora, da pena do artigo 2º, II, da Lei 8.137/90. Fizeram, sem perceber (quero crer), o oposto do que apregoavam: legitimaram um sistema tributário injusto, uma fiscalização tributária desaparelhada, um Poder Judiciário Moroso”, publicou nas redes sociais.
De acordo com Pierpaolo Cruz Bottini, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, “os problemas conceituais nos fundamentos jurídicos da decisão foram expostos em plenário pela própria Procuradoria-geral da República, mas não foram considerados pela maioria dos ministros”.
Por Tiago Angelo
Tiago Angelo é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 13 de dezembro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-dez-13/decisao-icms-distopia-juridica-erro-precedente