Contrariando as expectativas dos contribuintes e gerando perplexidade dos tributaristas, ao julgar em repercussão geral o Tema 1.048, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a tese de que é constitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), o que é antagônico à tese do Tema 69, pela qual o mesmo STF considerou inconstitucional a inclusão do ICMS no cálculo do PIS/Cofins.
A polêmica reside nos diferentes conceitos dados à receita bruta, que também é a base de cálculo das contribuições sociais.
A CPRB foi prevista no revogado parágrafo 13 do artigo 195 da Constituição, e instituída pela Lei nº 12.546/11, pela qual o recolhimento substitutivo sobre a receita bruta, ao invés da folha de salários, era obrigatório para empresas de determinados setores. Em 2015, conforme a Lei nº 13.161, o regime passou a ser facultativo.
Diante de decisões conflitantes e opostas no STF, não se sabe o que esperar para o julgamento das “teses filhotes”
A legislação da CPRB nunca definiu o conceito de receita bruta, até porque tal definição já existe, mas tratou expressamente de excluir da base de cálculo as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.
A Receita Federal, por sua vez, adota como definição de receita bruta, especificamente para o cálculo da CPRB, a do Parecer Normativo n° 03/12, que igualmente autoriza a exclusão das vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, mas também retira as receitas de exportação, o IPI e o ICMS.
Em março de 2017, o STF já havia delimitado o conceito constitucional de receita bruta e faturamento, e na ocasião fixou a tese do Tema 69, pela qual o ICMS não é receita nem faturamento da empresa, mas sim do Estado, eis que apenas transita pela contabilidade/caixa. Na ocasião ficou assentado que incluir o ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins contraria a Constituição Federal, que proíbe a cobrança de tributo sobre tributo.
O STJ, que até 2017 tinha entendimento sumulado e divergente do fixado pelo STF, passou a reconhecer como indevida a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins e revogou as súmulas 68 e 94. Ao apreciar casos sobre a CPRB, em linha coerente que deriva diretamente do entendimento do STF, aplicou para a “tese filhote” (1.048) o mesmo raciocínio do Tema 69, e por recurso julgado em sede de repetitivo, afastou o ICMS da base de cálculo da CPRB.
No entanto, adotando proposta do ministro Alexandre de Moraes, o STF fixou nova e oposta tese, contrária à orientação do Tema 69 e ao entendimento da própria RFB. No julgamento do Tema 1.048, considerou constitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da CPRB. O argumento é que a contribuição sobre a receita bruta é um benefício fiscal, porque a lei deu ao contribuinte a opção de escolher o regime de apuração e recolhimento (sobre a folha de salários ou sobre a receita bruta), e excluir o imposto estadual resultaria em ampliação excessiva do suposto benefício.
Ocorre que o ordenamento foi claro ao possibilitar a substituição/opção da base de cálculo da contribuição previdenciária, da folha de salários para a receita bruta, o que não implica benefício fiscal algum, pois para ter esse caráter, conforme o artigo 111 do Código Tribuário Nacional (CTN), seria necessário suspender ou excluir tributo de forma ampla a todos os contribuintes, e que o regime não fosse obrigatório, como foi até 2015.
Dessa forma, o argumento do voto vencedor, de que a CPRB é um benefício fiscal que não pode ser “ampliado” com a exclusão do ICMS da sua base de cálculo, não possui substrato jurídico suficiente de convencimento.
O que causou mais estranheza ainda foi que o ministro Alexandre de Moraes argumentou que o artigo 12 da Lei 1.598/1977 define receita líquida, como sendo a receita bruta, que desconta, entre outros, os tributos.
Com as vênias de estilo, não há, na decisão do Tema 1.048, relevantes fundamentos jurídicos que expliquem dar à receita bruta, no caso da CPRB, conceito totalmente diverso do que lhe foi dado pela Constituição Federal, pela Receita Federal e pelo próprio STF no julgamento do Tema 69 em 2017, quando prevaleceu decisão pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS no conceito de receita bruta utilizado da Constituição Federal.
Se o ICMS não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, e por essa razão não pode se enquadrar no conceito de receita/faturamento para fins de incidência de PIS/Cofins, é demasiadamente incoerente a tese fixada pelo STF no Tema 1.048, que agora, com lapso temporal de quatro anos, deu por legítima a inclusão do ICMS na base de cálculo da CPRB.
Diante dessas decisões conflitantes e opostas, nada se pode prever para o julgamento das chamadas “teses filhotes”, como a exclusão do ISS da base do PIS/Cofins (Tema 118) e a exclusão do PIS/Cofins das próprias bases (Tema 1067).
A falta de um raciocínio constante e sólido fomenta confusão e incredulidade, gera incerteza e instabilidade jurídica descomunais, que afetam diretamente a livre iniciativa e contribuem para o agravamento da crise econômica do país, afastando investidores.
Lamentavelmente, mesmo diante de embargos de declaração opostos em julho, os ministros não sanaram as omissões e contradições nas quais incorreram no julgamento do Tema 1.048, e a tese, contrária aos contribuintes, transitou em julgado no dia 20.
Com isso, o STF, além de não modular os efeitos da decisão para o período em que a CPRB foi obrigatória, deixou de harmonizar os conceitos de receita bruta e faturamento enquanto bases de cálculo de tributos, prejudicando muitos contribuintes e gerando um perigoso cenário de insegurança jurídica.
Regiane Esturílio é advogada tributária fundadora do escritório Esturílio Advogados Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Valor Econômico- Por Regiane Esturílio, 31/08/2021