Nos últimos dias, ganhou a imprensa a notícia de que o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu não haver direito dos estados e Distrito Federal (bem como dos municípios) às compensações relativas à desoneração do ICMS nas exportações de produtos primários e semielaborados pela Lei Kandir. A justificativa seria o atingimento do termo final determinado pelo artigo 91 do ADCT da Constituição (CRFB/88) que, em seu §2º, determina que a entrega de recursos deve perdurar, “conforme definido em lei complementar”, até que o imposto a que se refere o artigo 155, II (ICMS) tenha o produto de sua arrecadação destinado predominantemente, em proporção não inferior a 80%, ao estado onde ocorrer o consumo das mercadorias, bens ou serviços. Como se pode verificar, o teratológico argumento de que os repasses não seriam mais devidos porque o ICMS já possui mais de 80% arrecadado no estado de destino beira a desarrazoabilidade! Quem recebe o ICMS é, ainda, substancialmente, o estado produtor e não o estado consumidor (apesar das críticas da mais balizada doutrina tributarista). O ICMS brasileiro é, evidentemente, cobrado em essência na origem e não no destino! Isso é evidente!
Como ressabido, com o julgamento da ADO 25 pelo STF, no final de 2016, ficou decidido, por unanimidade, que estados, DF e municípios foram prejudicados pela demora de mais de 10 anos do Congresso Nacional em regulamentar as compensações devidas em razão da desoneração ampla do ICMS na exportações de commodities. A decisão estabeleceu o prazo de 12 meses para o Congresso sanar a omissão, sob pena de o TCU fixar o montante devido pela compensação e a quota parte a que faria jus cada estado e DF.
O prazo dado ao Congresso Nacional, estabelecido na decisão, esgotou-se em 4/12/2017, sem que fosse aprovada a regulamentação pelo Poder Legislativo. A Comissão Mista Especial sobre a Lei Kandir, porém, concluiu, sob a batuta do deputado federal José Priante e do senador Wellington Fagundes, seu fundamentado relatório que foi aprovado por unanimidade, mas que não foi pautado para deliberação em plenário. Mais uma vez, foi o “rolo compressor” da União que, de forma injusta, atropelou os estados. Por isso, foi a própria Comissão Mista que provocou o TCU a se manifestar sobre a questão.
Atualmente, a Receita Federal busca influenciar o TCU e tenta fazer prevalecer uma interpretação absolutamente distorcida do §2º do artigo 91 do ADCT no intuito de minimizar os repasses devidos aos estados e que foram expressamente assegurados pela decisão do STF. Na realidade, a tecnoburocracia financeira, fora dos autos da ADO 25, pretende criar um espaço para questionar o direito à compensação, cuja obrigatoriedade nem mais pode ser discutida, em razão do trânsito em julgado da decisão. É muito evidente que, mais uma vez, os técnicos da Receita Federal e do Tesouro Nacional estão colocando entraves para resolver a omissão, mesmo após o Governo Federal ter se comprometido, em diversas ocasiões, a promover a descentralização de poder no Brasil.
Salta aos olhos que o §2º do artigo 91 não possui eficácia plena, mas reclama lei complementar. Basta verificar a redação do dispositivo (“conforme definido em lei complementar”) para se ter a certeza de que se está diante de um exemplo clássico de “norma de eficácia limitada”, que não pode ser aplicada até que normativo posterior a complete. Como afirma o ministro Gilmar Mendes, essas normas “somente produzem os seus efeitos essenciais após um desenvolvimento normativo a cargo dos poderes constituídos”, portanto, são “normas incompletas”, apresentando “baixa densidade normativa”. Nesse compasso, elas não tem aplicação enquanto a lei não definir os casos em que se justifica a providência.[1] No caso em tela, o dispositivo constitucional menciona expressamente que norma posterior deve regulamentar a metodologia de apuração do termo resolutivo, ou seja, não estabelece qual é o termo final dos repasses da Lei Kandir mas determina que lei complementar posterior deve fazê-lo.
As transferências da lei Kandir devem ser realizadas até que o imposto a que se refere o artigo 155, II (ICMS) tenha o produto de sua arrecadação destinado predominantemente, em proporção não inferior a 80%, ao Estado onde ocorrer o consumo das mercadorias, bens ou serviços. O constituinte derivado, assim, relegou ao legislador complementar estabelecer o teto das compensações, tudo em conformidade com o objetivo da pequena reforma tributária realizada pela EC 42/2003. A expressão “em proporção não inferior” implica uma liberalidade ao legislador complementar que fica limitado apenas pelo piso de 80%. Isso quer dizer que é possível, inclusive, fixar o termo final das compensações para quando o produto da arrecadação do ICMS estiver 100% no destino.
O §2º do artigo 91, assim, traz uma salvaguarda aos estados e municípios, que devem ser compensados até que não necessitem mais de transferências. O legislador complementar deve analisar o saldo de prejuízos no momento da regulamentação e adaptar o termo final das transferências ao objetivo claro da lei. Portanto, nessa norma estão associados o projeto de arrecadar o ICMS no destino, que guiou a EC 42/2003, e o propósito de realizar as compensações justas. Ambos, porém, ainda não aconteceram.
Caso fosse dada a interpretação que a tecnoburocracia financeira federal quer, mesmo antes da promulgação da EC 42/2003, a grande maioria dos Estados já não faria jus às transferências compensatórias. Não é por outra razão que esse argumento jamais foi levantado em juízo, mesmo quando houve a oportunidade de discuti-lo. Ao contrário, foi o próprio STF que, quando do julgamento da ADO 25, atestou a necessidade de se manter as compensações.
Ressalte-se que apenas em razão desse mesmo acórdão é que o TCU foi chamado a apurar o montante dos valores compensatórios devidos pela União e a cota parte de cada Estado. Entretanto, o acórdão da ADO 25 nada menciona acerca do §2º do artigo 91 do ADCT, e nem poderia fazê-lo porque a regulamentação do dispositivo nunca aconteceu e o parágrafo traz uma “norma constitucional de eficácia limitada”. É possível afirmar que o órgão de controle não pode se manifestar sobre o §2º do artigo 91 porque seus poderes estão circunscritos ao que foi determinado pelo Judiciário, nos estritos termos daquilo que foi decidido na ADO 25. É dizer: o TCU, nos termos da decisão exarada pelo STF, está adstrito a missão de realizar as apurações, ou seja, está limitado pelos exatos termos da decisão prolatada pelo STF.
O objeto da ADO era precisamente a necessidade de regulamentar as compensações, partindo da premissa de que elas são devidas, e a Advocacia-Geral da União em momento algum contestou esse ponto. A decisão do julgamento, impondo a regulamentação, por óbvio, declara que a compensação é devida, ou não haveria o que regulamentar. E foi essa decisão que delegou ao TCU a competência para apurar o montante da compensação devida. A questão se torna assim muito simples! Se o TCU deve cumprir a decisão do STF e se a decisão sequer toca o §2º do artigo 91 do ADCT, não há atribuição de competência para o órgão de controle se posicionar a esse respeito. Se o fizer, ou estará legislando (regulamentando o dispositivo para o qual há omissão) ou estará decidindo e extrapolando o que foi firmado pela ADO 25.
O ministro Gilmar Mendes demonstrou a sua preocupação em não inovar e não invadir a competência de outro Poder. Entretanto, a Receita Federal quer que o TCU não apenas extrapole a competência delegada pelo STF mas, também, que fira o princípio da separação dos poderes. Quer que o TCU realize, de ofício, a regulamentação do artigo 91, §2º, legislando efetivamente sobre o termo final das compensações. O dispositivo possui eficácia limitada, portanto, apenas o legislador complementar pode cumprir esse papel.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes recapitula o histórico legislativo da desoneração ampla do ICMS até a EC 42/2003, esclarecendo que a compensação decorreu da necessidade de compensar, em alguma medida, os prejuízos invariavelmente causados aos estados. Entretanto, a proposta inicial da PEC 41/2003 foi bastante recortada. O parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sobre a PEC 74/2003 (PEC 41/2003 na Câmara dos Deputados) não deixa dúvidas quanto à inserção da cláusula resolutiva do §2º a partir da perspectiva de alteração estrutural do ICMS. Como expresso no Parecer, “relativamente à questão origem-destino, do ponto de vista do reequilibramento dos estados consumidores e produtores, dos Estados menos ou mais desenvolvidos, no que se refere à repartição dos recursos arrecadados no âmbito do ICMS, proponho a adoção de transição gradual para a aplicação do princípio de destino, mediante o declínio sucessivo das alíquotas interestaduais, alcançando, num prazo aproximado de dez anos, o nível de quatro por cento.” Segue o parecer afirmando que “idêntico gradualismo deve informar o fundo de compensação das perdas na exportação” cuja estrutura “deveria declinar em simetria com a adoção gradual do princípio do destino.”
O Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) realizou, na ocasião, diversos cálculos para verificar o atingimento da “cláusula resolutória” do §2º, inclusive considerando a Balança Comercial Interestadual. De acordo com a metodologia equivocada invocada agora pela RFB, na ocasião da promulgação da EC 42/2003, apenas 4 Estados não teriam atingido o limite de 80% do produto de arrecadação no destino em 2002. O absurdo fica assim patente porque, obviamente, os Estados e DF jamais teriam aprovado termo resolutório que, desde a origem, já os deixaria de fora da necessária partilha compensatória.
Ainda que o §2º do artigo 91 do ADCT fosse autoaplicável, não há qualquer parâmetro dado pela norma para saber quando esse limite será alcançado. Deverá ser utilizada a arrecadação nacional ou por Estado? Deverão ser consideradas as operações internas ou apenas as interestaduais? As operações com combustíveis, lubrificantes e energia elétrica deverão compor o cálculo? Essas são perguntas que escancaram o fato de que o §2º, assim como o caput do artigo 91 do ADCT, necessitam de regulamentação.
Por óbvio, como aponta o Comitê de Secretários da Fazenda (Comsefaz), cabe uma interpretação objetiva e simples ao “gatilho” do § 2º do artigo 91 do ADCT e o cálculo só pode ser feito com base na diferença entre a alíquota interestadual e a alíquota interna do Estado de destino. O próprio fato de existirem variáveis diversas que podem compor o cálculo exigido pelo §2º do artigo 91 do ADCT reforça as conclusões de que a norma possui eficácia limitada e é necessário que o legislador complementar aponte a sistemática adequada.
Finalmente, o princípio federativo e o reconhecido cenário de omissão legislativa que já perdura por mais de 15 anos não permitiriam que a compensação fosse suspensa. A supressão de parcela do poder de tributar sem a contrapartida adequada e suficiente de transferências interfederativas promove desequilíbrio no pacto federativo, ofendendo, assim, ao princípio federativo. O §2º não pode ser interpretado isoladamente do caput do artigo 91, como não podem os dois dispositivos serem lidos sem considerar o princípio estruturante do federalismo. Todo esse conjunto deve ser coerente. Considerar que as compensações não devem prosseguir porque o §2º do artigo 91 do ADCT estabeleceu termo já alcançado é laborar pela manutenção do desequilíbrio gerado em 1996 e que persiste até hoje, ou seja, o entendimento da Receita Federal afronta os próprios fundamentos da decisão do STF. O §2º do artigo 91 do ADCT, logicamente, complementa o caput, razão pela qual nenhum dos dois dispositivos podem ser interpretados isoladamente. Considerando-se que o artigo 91 nunca foi regulamentado, é evidente que seu § 2º, da mesma forma, também depende de regulamentação, razão bastante e por si suficiente para que ele não produza efeitos.
Em síntese, o entendimento no sentido de que os repasses compensatórios da Lei Kandir devem se encerrar são estapafúrdios! De fato, o país precisa mesmo de mais Brasil e menos Brasília!
[1] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. E-book, p. 78 e 79.
Por Onofre Alves Batista Júnior e Marina Soares Marinho
Onofre Alves Batista Júnior é professor de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-doutor em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.
Marina Soares Marinho é mestre e doutoranda em Direito pela UFMG.
Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-fev-18/onofre-batista-novas-controversias-lei-kandir